Graça infinita, de David Foster Wallace
Por Pablo
Guzman
Serei honesto
por um momento e reconhecerei que não sou capaz de resenhar este livro. Inclusive
irei mais além da honestidade e direi que, no mundo, há pouquíssima gente com a
capacidade de fazê-lo. É uma obra monumental, estranha, densa e complicada; foi
escrita por um autor monumental, estranho, denso e complicado. Por isso, me limitarei
aqui a esvaziar de minha mente tudo o que possa recordar sobre esta experiência
de leitura, com o objetivo de ordenar meus pensamentos e elucidar certas questões.
“Yes, I’m
paranoide – buit am I paranoid enough?”
Recordo que,
quando findei O leilão do lote 49, fiquei
quase fechado em meu quarto. Havia chegado do instituto e faltavam cinquenta
páginas para terminar e queria acabá-las com tranquilidade. Na minha mente se
guardavam teorias e conspirações. Pynchon é um autor único, compreendi
imediatamente. Inclusive recordo haver estado numa aula, nesse mesmo dia, e
haver feito um pequeno diagrama para ordenar o que tinha lido até ali. Não serviu
de nada. Ao terminar o livro senti que o autor, as suas personagens e sua literatura tinham me levado pelo cabelo. Sentia um riso ensurdecedor em meu quarto:
era Pynchon zombando de mim. Na web
há testemunhos semelhantes, por exemplo, de gente que quando termina O arco-íris da gravidade e não sabe o
que fazer com sua vida. Embora não tenha chegado a esse romance, li outras duas obras desse autor e já pude sentir coisa parecida: que Pynchon faz o que quer com a
história, com as personagens, com a prosa e com a literatura em si; que isso o
torna grandioso e onipresente, e que zomba de tudo e todos de igual maneira.
Mais ou menos assim me senti ao acabar Graça
infinita, só que nesse livro, além de tudo, me perguntei se havia valido a
pena atravessar mais de mil páginas da densidade similar à de uma estrela de nêutrons.
E o que é
que eu vou fazer depois do último parágrafo proposto pelo autor? Um, correr até a web e buscar entrevistas com David
Foster Wallace em que tenha feito alusão à sua obra magna; dois, entrar em fóruns
de leitores da obra com guias do livro e, inclusive, diagramas sobre as personagens;
três, questionar-me absolutamente sobre tudo o que li no livro. Algumas coisas
passaram no romance, outras pareceram passar, outras são produtos da imaginação esquizofrênica
do pobre leitor que tenta desesperadamente permanecer como alguém atrás de cada
página lida. Ao ler certas análises me dei conta de que minhas interpretações não
estiveram assim tão equivocadas, mas havia passado por alto certos detalhes
de grande importância. Um problema com Graça
infinita: em meio a torrente de informações que o autor nos entrega, em ocasiões
de maneira quase enferma, é fácil ver certos detalhes do alto. Mas, em outras não.
Então, fica um conselho: utilizar marcadores. Muitos marcadores. Não apenas
para destacar citações, passagens, páginas e capítulos memoráveis, mas para
assinalar quando são introduzidas novas personagens, ou quando se faz descrições
que parecem ser importantes no futuro.
As primeiras trezentas páginas são especialmente
difíceis porque David Foster Wallace desenvolve tramas e linhas de enredos ora numa
ora noutra direção. Ao final, todas confluem, sem dúvidas, o que é um resultado
esmagador entrar no romance. Não mentirei ao dizer que há páginas chatas. Há passagens
especialmente longas em que se aprofunda em temas que pouco interessam ao
leitor. Serei honesto ao dizer que não gosto de tênis, assim as descrições de
jogadas e táticas me aborreceram. Assim, isso é meu ponto de vista, sobretudo para esse
aspecto, o que faz dessa minha opinião radicalmente subjetiva e não tem valor de desmerecimento
da obra. O que está ali, está por alguma razão. Como disse, tudo conflui. Mas
se julgo a meu favor o meu interesse pelo mundo dos medicamentos, portanto as notas e subnotas sobre farmacêutica e farmacodinâmica não me
pareceram insuportáveis, algo que poderá parecer complicado para outros leitores.
Invoco novamente Pynchon para fazer um segundo paralelo: em seus romances sinto que em poucas páginas acontece muito; com David Foster Wallace, em especial neste romance, senti o contrário: que em muitas, inclusive às vezes demasiadas páginas, se conta pouco. Em meio de descrições intermináveis sobre pequenos aspectos do ambiente em que se movem as personagens é fácil perder o interesse e a concentração. Mas, por outra parte, me encontrei com passagens que, por si só, fizeram valer a pena todo o esforço de atravessar esses momentos mais complicados. É como se um alpinista tivesse de, para contemplar a paisagem do alto, empenhar-se a subir uma montanha.
Invoco novamente Pynchon para fazer um segundo paralelo: em seus romances sinto que em poucas páginas acontece muito; com David Foster Wallace, em especial neste romance, senti o contrário: que em muitas, inclusive às vezes demasiadas páginas, se conta pouco. Em meio de descrições intermináveis sobre pequenos aspectos do ambiente em que se movem as personagens é fácil perder o interesse e a concentração. Mas, por outra parte, me encontrei com passagens que, por si só, fizeram valer a pena todo o esforço de atravessar esses momentos mais complicados. É como se um alpinista tivesse de, para contemplar a paisagem do alto, empenhar-se a subir uma montanha.
Graça infinita é um romance que “desata paixões”
por excelência. Sublime para muitos; uma
das grandes obras de língua inglesa nos últimos cem anos, e considerada uma
história excessivamente extensa carregada de pretensões e escrita com certa arrogância.
Harold Bloom, um dos críticos mais importantes da literatura atual, talvez o
maior, nunca deu muito crédito à obra. Seus argumentos são, ao menos,
interessantes. Pessoalmente, eu não sei
como me posicionar. Por um lado, sim, me parece uma obra de monumental
complexidade, repleta de temas que abarcam desde o tênis à depressão, passando
por matemática, adolescência, vida adulta, adições etc; por outro, posso
entender o que dizem ser excessivamente longa. Talvez esse “ser longa” seja
parte da essência desse romance: uma história com histórias com personagens que
mencionam personagens que menciona mais personagens para logo descrever coisas
que estão dentro de outras coisas que rodeiam um protagonista circunstancial
que interage com o narrador do momento quando vive certas coisas. Talvez tudo
isso seja parte da graça infinita de
David Foster Wallace.
Devo falar
das personagens em si? Não. Há vários motivos: primeiro, são muitos, segundo, são
muitos, e terceiro, são poucos. Mas se eu tiver de citar um grupo, este seria o
da família Incandenza. Finalmente, a história passa por eles. Temos James Incandenza, gênio, cineasta,
doutor e cegonha louca; Avril, uma mulher sugestiva, canadense, ligeiramente
promíscua e obcecada por gramática; seus filhos – Orin, jogador de futebol e
sedutor de mulheres (muitas), Mario, cineasta em potencial, disforme e sensível;
Hal, promessa do tênis, superdotado e membro da Academia Enfield de Tenis (AET), instituição criada
por seu pai. O que funciona na obra, especificamente? De um filme gravado e
dirigido por James, “Graça infinita”, o poder de enlouquecer, ou de perturbar
ou talvez até matar todo aquele que o veja. Para obter distintas organizações ingressam
na história, cada uma com motivações próprias, desde o terrorismo ao
contraterrorismo. Por que? Porque a América tal e como conhecemos mudou, e
agora se encontra organizada pela ONAN (Estados Unidos, México e Canadá num acrônimo
quiromaníaco para Organizações das Nações da América do Norte) em constante
disputa com o movimento contra-ONAN de Quebec.
Muitas coisas têm mudado, além disso. Desde o rol da tecnologia
audiovisual na vida das pessoas à organização do tempo (agora, os anos são nomeados por produtos
específicos). Muitos outros aspectos ficam sem nomear, é verdade, mas acreditem
quando digo que não comentei nem a mínima parte dessa leitura.
Mas entre todos
os temas tratados pelo romance, seguramente o mais emocionante, para mim, foi a
depressão e os transtornos mentais. Há reflexões desgarradoras que só poderiam
ser escritas por quem sofre delas como David Foster Wallace. A solidão em seus
níveis distintos e formas de compreendê-la – um dos elementos desencadeadores
da depressão – se manifesta na narrativa e em suas personagens de forma diversa. Poderia
definir Graça infinita como um
romance de gente entregue à solidão. A impressão que tenho é que David Foster
Wallace não pintou a si mas o nosso
tempo e justo por isso é um romance necessário aos de hoje. Agora nem todos estarão
à vontade. É um romance, é um ensaio, é um texto sobre sociologia, é um tratado
sobre as adições. É muita coisa. Mas, sobretudo, não mais que uma graça, uma
obra infinita, tão grande como o mesmo filme que dá nome à obra ou vice-versa. Se gostei? Sim. Muito? Sim. Não.
Possivelmente. Ninguém sai com certezas (nem são) de um livro desses.
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