Anjos da desolação, de Jack Kerouac
Por Rafael Kafka
Jack Kerouac não era um primor como escritor. Isso é perceptível em seu
clássico mais comentado, On the road. Mas
sempre cabe a tentativa de procurar entender em que contexto, em qual
parâmetro, Kerouac não era um primor de escritor. Realmente, se olharmos os
clássicos e suas escritas trabalhadas com sintaxe profunda e perfeita, veremos
nele um escritor amador, movido apenas pela empolgação. Mas se olharmos
os parâmetros literários do século XX, em que a escrita se torna menos formal e
mais apaixonada, veremos Kerouac como o que ele realmente é: um Buda da escrita
espontânea.
Em meu último
texto, fiz uma comparação um tanto que colocando Kerouac contra a parede: a
comparação citada no começo do meu texto sobre O ano da Morte de Ricardo Reis (leia aqui) focava no aspecto pouco político da
obra de Jack que era reflexo de seu temperamento até mesmo alienado diante das
questões políticas que pululavam no período pós Segunda Guerra. Porém, para ser
justo, devo assumir que mesmo não vendo em Kerouac esse desejo de ser engajado
politicamente, sempre reconheci nele uma figura muito importante para o debate
de questões sociais relevantes, como o papel da arte e da literatura em
especial na libertação do indivíduo e a valorização da cultura negra e
oriental.
Kerouac era
extremamente influenciado pelo jazz e é mais do que batido que suas obras eram
tentativas de imitar, na prosa e no verso, o ritmo da música negra marcada pela
velocidade e pelo improviso. On the road é
mesmo um hino ao jazz, com direito a vários momentos de pura descrição de
sentimentos causados pela batida do ritmo. O jazz em sua melodia representa o
espírito inquieto que caracterizava o autor considerado pai da Geração Beat.
Tal espírito inquieto se manifestava na forma de várias aventuras amorosas,
sexuais e psicodélicas vividas com amigos e amantes; viagens e mais viagens ao
redor dos Estados Unidos e do mundo; e um ritmo de escrita pulsante, febril,
sem interrupção.
Para Kerouac, em
quem faltava, talvez, um pouco de talento imaginativo, o que importava era a
capacidade de transformar a vida em arte. Todos os livros lidos dele por mim
são fatos vividos e transformados em uma literatura que mescla elementos do
jazz, da cultura oral e do desejo de descoberta e paz herdado do budismo. É bem
provável que Kerouac tenha superado Simone de Beuavoir na quantidade de fatos
biográficos usados na feitura de livros. Podemos considerar que o que há de
mais literário em seus textos é o cuidado quase infantil de disfarçar as
pessoas do mundo real em pseudônimos usados mesmo nas cartas com Allen Ginsberg
e a empolgação de relatar tais fatos em um ritmo frenético de sensações e
ideias.
Todos os livros de
Kerouac seguem esse mote de fazer arte da vida, mas Anjos da desolação tem algo a mais de visceral: a sua escrita é bem
crua, quase sem edição, truncada em alguns momentos, corrida em outros,
despretensiosa sempre. O livro é uma transcrição dos diários de Jack e seria
originariamente duas obras separadas: a primeira parte da obra, que seria o
primeiro livro, fala do período em que Jack foi vigia de incêndios no
Desolation Peak e ali se viu sozinho consigo mesmo, sem drogas de qualquer tipo. Essa parte do livro lembra demais um dos trechos do Livro do Desassossego de Bernardo Soares
(Fernando Pessoa) e mostra o autor em um constante exame de si mesmo,
relembrando fatos passados, falando de impressões de, dos amigos e da
vida, além de tecer aforismos sobre a vida e sobre sua fé, verdadeiro
sincretismo entre a crença católica e o budismo zen. Já a segunda parte do
livro, lembra mais o que foi feito em relatos como os presentes em On the road e Vagabundos iluminados e falam das andanças de Jack pelo México, por
Paris, por Tanger, Londres e Nova York. Aqui o zen budismo sai um pouco de cena
e vemos o autor se envolvendo em casos amorosos confusos, em orgias, em
bebedeiras e outras cenas comuns na vida dos escritores marginais que marcariam
a cultura americana.
O livro todo é
escrito em uma forma fragmentada, sem enredo fixo, como uma espécie de diário
de viagem cuja principal função é registrar os fatos e impressões de um
determinado período da vida do escritor. Além disso, vemos o mote de outras
histórias surgirem aqui e mesmo com os pseudônimos fica fácil de saber quando
estamos diante de Allen Ginsberg, Gregory Corso, Neal Cassady e outros autores.
Kerouac mesmo revelando uma grande preocupação em ser considerado um ícone de
uma geração de novos escritores (a mesma preocupação, creio eu, que levaria
Kurt Cobain a se matar em 1994), sempre demonstra empolgação com o espírito
irrequieto de seus amigos e em todos os momentos está a trocar ideias sobre a
natureza profunda da arte e sobre o desejo de levar uma vida tranquila na qual
possa escrever em paz.
Há em Kerouac muito da aspiração à transcendência pela arte
típica dos poetas simbolistas. A diferença do autor beat é que havia nele a
vontade de compartilhar a verdade profunda da arte e entre seus amigos existia
uma grande comunidade de escritores/leitores vorazes que ajudavam-se mutuamente
a desenvolverem e publicarem os seus escritos. Para Jack, em cada ser havia um
poeta em particular e o incentivo à produção escrita era mais do que uma
aparência e sim a procura por algo essencial, sublime: a paz interior.
Por isso o susto
presente ao se perceber como porta-voz de uma geração de escritores: a coisa
ficara séria demais e agora ele não sabia ao certo qual o sentido de tudo
aquilo. Em Big sur o desespero diante de uma tarefa que agora parecia
vã (a de escrever) chega a um extremo assustador e a desesperança nos faz olhar
uma simples sombra daquele escritor vibrante que balançou a América.
Talvez, Kerouac
tenha morrido sem perceber ao certo a sua importância para o cenário cultural
como um todo. Mesmo Allen Ginsberg tendo uma importância política mais sólida,
haja vista o seu papel de ativista político, Jack foi o provocador de novas
formas de leitura e escrita e da descoberta de um outro lado da sociedade
americana até então ignorada. Há no comportamento de Duluoz (o alter ego de
Kerouac no presente livro) muito do comportamento de Perron, personagem central
de Os Mandarins de Simone de
Beauvoir: Duluoz também sente medo de se ver esmagado pelas demandas de
questionamentos sociais profundos e sem tempo para escrever. O seu
individualismo pode soar mesquinho em alguns momentos, mas é natural diante de
um mundo que saiu cada vez mais incerto do pior de todos os conflitos bélicos
já vistos por nós, quando se esperava que tudo ficaria bem e em paz.
É esse
individualismo de Kerouac que o tornou em um autor importante, mesmo com tantas
limitações técnicas. Livros como Anjos da desolação mostram que mais do que a técnica o que define a boa literatura é
a paixão contida em suas linhas e entrelinhas. Tal paixão está presente tanto
nas linhas tortas destinadas a falar de alguma amante em potencial quanto para
falar de alguma figura marginal conhecida, como o viciado Old Bull, que ele
conhece no México, ou ainda prostituta Tristessa, que gerou um mote para outra
história a qual em breve estarei a ler e a falar por aqui. Anjos parece uma conversa
franca entre o escritor cuja meta ainda é uma fama que se concretizará cada vez
mais e lhe tirará sua tranquilidade espiritual e seu leitor ávido por respostas.
Em alguns momentos do livro, tal ritmo de conversa é assumido francamente pelo
narrador que parece estar ciente de que escreve para entreter e desassossegar,
como diria Saramago. Tais momentos do romance/diário/relato de viagens lembram
por demais o manifesto desvairista escrito por Mário de Andrade, no qual ele
diz não querer ser mestre de ninguém, pois ser mestre de alguém implica em ser
mestre de cópias sem pensamento próprio.
O medo de Kerouac,
e o de Kurt, era esse: ver seus amigos reduzidos a cópias de si mesmo, ou ver a
si mesmo como cópia de um mito criado contra sua vontade. Escrever para
desassossegar é escrever sem a pretensão de dar conselhos, pois, como bem
mostrou Sartre em O Existencialismo é um
Humanismo, dar conselhos é apenas a confirmação de uma verdade previamente
tácita. Escrever para desassossegar é sentir a vontade de provocar no leitor o
desejo de ser escritor e contar suas histórias para provocar novos leitores a
serem novos escritores até que o máximo possível de pessoas queira escrever as
suas verdades sem se preocuparem em absorver verdades alheias prontas. Dessa
forma, quem sabe, tenhamos um mundo melhor, mais amoroso e mais belo, como
Kerouac sonhava.
Mesmo ingênuo do
ponto de vista político, talvez esmagado pelo susto diante deste mundo complexo
e bizarro de agora, Jack foi capaz de causar uma reviravolta no mundo cultural
dos Estados Unidos e do Ocidente como um todo. Há muito do desvairismo de Mário
de Andrade nele nessa vontade de experimentar formas e mais formas de escrever
sobre qualquer temática e de levar aos outros o desejo de ler mais e escrever
mais. Diria que Kerouac é uma leitura obrigatória tanto para o jovem que quer
descobrir o mundo quanto para o professor que quer incentivar um jovem
estudante a gostar de ler.
Tal paixão pela
leitura, pela escrita e pela verdade vemos em todos os seus livros. Por isso
que falar de um texto dele é ao mesmo tempo falar de todos, pois a literatura
em Kerouac sempre está se renovar. Seja pelo fato de novas vivências, seja por
máximas artísticas, filosóficas ou religiosas novas, a escrita de Jack seguirá
um padrão mutante o tempo todo. E por mais limitações que ela encontre, ela
sempre dará um jeito de falar de uma forma que toca no fundo da alma de
qualquer leitor que queira andar pela estrada da existência sem medo.
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