Um romance fascinante de Lídia Jorge: "Combateremos a sombra"
Por Alfredo Monte
Enfim, temos
uma edição brasileira (pela Leya) de Combateremos a sombra, de Lídia Jorge1,
cujo final (e peço de saída desculpas por revelá-lo) me lembrou a
atmosfera dos romances de Leonardo Sciascia (1921-1989): Osvaldo Campos, após
descobrir duas frentes conspiratórias e mafiosas no curso de alguns poucos
meses que se seguem à virada do milênio, e ingenuamente arvorar-se em
denunciador (mandando cartas a agências internacionais, à órgãos de imprensa e
até à presidência e preparando um dossiê com nomes e dados), é assassinado
— tentam, de forma canhestra, encenar um pretenso suicídio para encobrir o crime,
o que não dá muito certo.
O assassinato, já aguardado pelo leitor como aqueles finais inexoráveis das
tragédias, de um protagonista que sucumbe a um labirinto conspiratório, foi exercitado
com maestria por Sciascia em A Trama (1971), porém Osvaldo Campos me
lembra mais o incauto professor Laurana de A Cada Um o Seu (1966). Não
que ele seja enganado por alguma mulher (o autor siciliano usa magnificamente o
clichê do cherchez la femme no seu romance), ou que viva com antolhos,
cego para a realidade à volta. Mas porque seu heroísmo esbarra na impotência e
na falta de um possível fio de Ariadne, hoje em dia, para desenovelar-se do
labirinto de desmoralização ética à nossa volta. Isso me faz invocar Lukács e
sua problematização da ação épica no romance enquanto gênero: para que o épico
exista, a ação do herói deve ser necessária (mesmo que não reconhecida a
princípio pela comunidade) e possível. A ação de Osvaldo Campos seria
necessária e, mais ainda, possível?
Para responder à pergunta, voltemos ao
princípio do grande romance de Lídia Jorge, um dos mais lindos que li nos
últimos tempos: Combateremos a sombra se inicia justamente na
virada do milênio. Em meio ao frenesi geral dessa data-pop, Osvaldo deixa
a burguesíssima senhora sua esposa, Maria Cristina, muito irritada porque
resolve ir ao seu consultório (no Prédio Goldoni, o 75 da Avenida de Santa
Pulquéria, em Lisboa) com o fito de terminar um artigo, para uma revista
especializada, sobre o tema “Quanto pesa uma alma?”. Após batalhar com o
texto (enquanto evita os incessantes telefonemas de seus pacientes-dependentes,
entre os quais tomamos conhecimento de nomes que adquirirão peso no
transcorrer da trama, como Maria London e Lázaro Catembe), crendo,
aliviado, que chegaria a tempo ao Grande Hotel do Guincho para a recepção
de réveillon (num autismo surpreendente, pois como não imaginar o trânsito do
fim de ano?). Há a aparição inesperada de um ex-paciente, um jornalista
veterano “dançado”, Elísio Passos, a princípio aparentemente “normal”, a
lhe anunciar que fora envenenado nessa última noite do século e do velho
milênio por um dos ovos de Salazar:
“Pois talvez
o senhor não saiba que Salazar tinha um galinheiro em São Bento, há quarenta
anos atrás, e que aí criava galinhas, e que as galinhas punham ovos que ele
mesmo vendia… Eram ovos envenenados. Estramônio puro. E sabe o que fazia ele,
depois, a esses cestos? Não sabe? – Mandava-os entregar no Supremo Tribunal de
Justiça, na Assembleia Nacional, enviava-os à Nunciatura [etc etc]… Eu
resisti desde criança, desde o dia em que o meu pai escarrou por cima do fato da
Mocidade Portuguesa que a minha mãe me tinha comprado e eu assisti… O
jornalista fez uma pausa, um suspiro— Mas passado todo este tempo, sabe o que
aconteceu, professor? Passado todo este tempo de vigilância, distraí-me e esta
noite comi um…”
Osvaldo Campos fica surpreendido consigo mesmo por não ter vislumbrado a
loucura do antigo paciente, que lhe pede companhia para ser atendido num
Pronto-Socorro. O que o psicanalista mais deseja é se livrar do doido e chegar
a tempo de fazer as pazes com a mulher. Ele se livra do doido numa esquina,
porém seu casamento acaba aquela noite, na qual ele toma ciência de que Maria
Cristina mantinha um caso com seu colega e ex-sócio, Navarra, um psicanalista
muito cortejado pela mídia, tendo sido matéria até da Times; aliás, Navarra foi
o primeiro terapeuta a tratar de Maria London.
Dias depois, intimado pela polícia, fica
sabendo que o jornalista “caíra morto” naquela noite mesmo de réveillon — e
após a leitura completa do romance nos perguntamos se Elísio Passos não pode
ter sido assassinado, e se seu destino não prefigura o de Campos, até na
exaltação meio que fora do compasso da vida ordinária, a sugerir delírios e
loucura, sem contar o mergulho obsessivo numa “teoria da conspiração”.
Após a tumultuada separação (disvórcio, uma das inúmeras ‘brincadeiras” com a
linguagem que forma um capítulo à parte da beleza de Combateremos a sombra),
Osvaldo Campos, o qual até aí se assemelha muito ao típico herói “em crise” do
romance burguês tradicional, passa a residir no seu consultório, e entramos
então na sua rotina de psicanalista, auxiliado pela inesquecível Ana Fausta,
secretária que quase rouba o livro. Vemos aí como até numa narrativa de feitio
mais minimalista, um escritor consumado, sagaz, de mão cheia, consegue nos
oferecer um vislumbre de totalidade através de um universo inteiramente
“mobiliado”2, inclusive nos mais corriqueiros detalhes, até nos
clientes “pagantibus” (anotados a caneta) e “gratuitos” (anotados a lápis),
cuja desproporção (em favor crescente dos segundos) preocupa tanto a aflita
funcionária.
A “paciente magnífica” de Osvaldo Campos é Maria London, que lhe conta sonhos compridíssimos
e bem encadeados, sempre com a onipresença de navios de cruzeiros que parecem
cidades imensas, autossuficientes, no interior dos quais predominando a
degradação, a exploração humana, um submundo triunfante, enquanto a nau avança
num oceano de corpos mortos. Como o foco narrativo também nos permite dar uma
espiada na mente de Maria London, ficamos sabendo que ela, filha de um
“magnata”, está na expectativa de uma reação do analista, uma pergunta, algo
que rasgasse o véu de mitomania, histeria e labilidade. Apesar da “atenção” de
Campos, ele está muito preso ao seu referencial minimalista para pressentir a
Grande Narrativa que se esconde nos relatos oníricos de Maria London, assim
como achara apenas um delírio a “teoria da conspiração” do jornalista que
morreu na virada do milênio. Voltarei à questão das Grandes
Narrativas em breve.
II
“Quem me diz
que eu desço até Alcântara e não encontro uma coisa dessas, com o nome
escrito no convés, exatamente assim–ALEXANDRIA? Pode imaginar o que pensaria eu
de si, se fosse pela manhã a correr lá embaixo e deparasse com uma das
suas fantasias a andar por ali, ao vivo? Tenho-lhe dito muitas vezes, Maria
London, que é preciso respeitar o real, acima de tudo…”
Tendo cristalizado uma certa rotina na sua vida dupla de morador e profissional
no consultório do Prédio Goldoni, Campos gosta de correr de manhãzinha. Um dos
aspectos mais gritantes do “trabalho do sonho” de Maria London (que, aliás,
mora num loft em frente ao Prédio Goldoni, e é testemunha das vigílias e da
insônia do seu analista) é que os paquetes não só são descritos luxuriosamente,
como os seus nomes avultam significativamente. Pois bem, numa de suas corridas,
nosso herói dá de cara com um dos paquetes dos sonhos de Maria London. Pior
ainda, a presença desse navio não está registrada em nenhum canto, é como se
fosse uma alucinação do próprio psicanalista: ninguém reconhece que aquele
paquete esteve em Lisboa (mais tarde, ele verá a paciente, levada pelo pai,
embarcar em outro, após tê-la espreitado sorrateiramente).
A partir daí a visita noturna da paciente
magnífica, sobre quem ele acalentava o sonho de escrever um memorial do caso,
nos moldes dos famosos casos freudianos, ganha novos contornos, em que ela
fornece informações sobre uma rede internacional de tráfico de drogas e sabe
mais lá o quê da qual ela participa e o pai é um dos mandantes (as informações de
Maria formam uma das fontes do dossiê que Osvaldo prepara depois e por causa do
qual é morto).
Por
outro lado, desde a noite do réveillon, ele conhecera uma mulher angolana
(filha de um italiano e uma local), alojada no Prédio Goldoni, no apartamento-matadouro
de um conhecido de Osvaldo, um sujeito poderoso e repelente. Aos poucos, muito
aos poucos, ele e Rossiana vão se envolvendo, se apaixonando e ela revela que
não é manteúda de ninguém, mas uma fotógrafa que registrou imagens de
trabalhadores ilegais, que presenciou uma mula de tráfico (chamadas ali de cagões,
com a proverbial sutileza lusitana) morrer por ter engolido saquinhos em
demasia (ela nessa época era técnica de raio X na clínica onde os cagões vinham
defecar sua carga); enfim, mais portas para o submundo, de certa forma
tangenciando o obscuro mundo do pai de Maria London. Era para Rossiana ter sido
eliminada, entretanto um dos seus executores a conhecia de outros tempos
(fotografavam juntos) e ele a poupa, deixando-a “de molho” no terceiro andar do
Goldoni (Osvaldo ocupa o quinto andar).
O que impressiona é o aspecto pífio que
reveste o heroísmo de Osvaldo Campos. A princípio, e ainda mais com o
narrativamente anticlimático final (com o óbvio assassinato), embora não
pudesse haver outro final, creio eu, incomodou-me bastante a falta de grandeza
dos personagens principais de Combateremos a sombra, especialmente o
protagonista, Rossiana e Maria London, nenhum dos quais desperta grande empatia
nem são inesquecíveis (a linguagem do narrador é que o é). Esse estofo
diminuído das personagens, no entanto, é uma qualidade mimética, no final das
contas: para dar conta da virada do milênio, Lídia Jorge nos dá as personagens
possíveis dessa virada.
Perguntei acima se a ação do herói era necessária
e possível. Sem dúvida, necessária, sempre o é (apesar de cada vez menos
reconhecida pela sociedade, é evidente). Mas possível? Ao herói do milênio que
começou parece só restar preparar dossiês que se confundirão com outros dossiês
(há uma jornalista combativa e passional que diz a Osvaldo que só ela tinha em
mãos uns cinco dossiês “daqueles”) e mandar cartas. Pelo menos, ele saiu do
refúgio minimalista e se deu conta de que a teoria da conspiração pode ser uma
fantasia delirante (Elísio Passos, mesmo assim evocando a última Grande
Narrativa de Portugal, o período salazarista, antes de ser engolido pela
comunidade europeia como a raspa do tacho) ou uma visão de um submundo que de
alguma forma rege nossas vidas. E não deixa de ser sumamente irônico que aquilo
que num romance de crime e submundo exigiria espaços diversos, perseguições e
aventuras desenfreadas, passe tudo por um consultório médico num quinto andar
de um prédio. É um triunfo do romance de Lídia Jorge essa contradição, um lance
de mestre. O que Osvaldo Campos vislumbra, no âmbito de seu pequeno heroísmo
malogrado, como os resignados e derrotados heróis sciascianos, é a
presença das superestruturas na nossa vida.
E este que aqui escreve, que cada vez
mais considera fundamentais as Grandes Narrativas de Freud e Marx, mesmo
que todos os indícios e todos os proclamas indiquem seu óbito (talvez
não passe de uma mula empacada, de uma besta quadrada), pensa que, se
não estiver redondamente enganado, esse é o ingrediente que torna “Combateremos
a Sombra” um romance particularmente fascinante: do homem que, resignado
com o fim do casamento, se satisfaz com a filosofia de um paciente, “Professor,
navego por dia mares de trampa, para conseguir caçar um, dois peixes…” (trampa, que
pode ser merda ou logro), a qual não deixa de ter a sua pequena verdade, se
torna o comovente-quixotesco-cômico homem que a jornalista Marisa
Octaviano conhece pouco antes da sua morte: “… se sentira tão
sensibilizado pela atenção de Marisa Octaviano que se tinha lembrado de
proceder com o seu pai, diante das mulheres que respeitava –Quando a veterana
lhe estendeu a mão, ele beijou-lha. Um sinal de gratidão. Mesmo que as suas
diligências desembocassem em nada, Osvaldo Campos sentia-se a partir
daquele instante a fazer parte dum grupo, duma seita subversiva a que também
pertencia aquela veterana. Um reconhecimento profundo. A Passionaria não sabia
do que se tratava e riu — Deixe-me dizer-lhe que você, além do mais, até é
cômico. – E desapareceu na porta, levando o material consigo”.
III
A propósito da beleza da linguagem de Combateremos
a sombra e da sua mágica com as palavras mais simples e singelas, uso
como exemplo uma das minhas passagens favoritas do romance: como já se
viu, Osvaldo Campos passa a morar no seu consultório e como não consegue dormir
muito, na madrugada fica ouvindo um programa radiofônico chamado “Gracias a la
vida”, como na canção de Mercedes Sosa.
Entre os vários depoimentos de madrugadores
por que dariam “gracias a la vida”, aquele que intriga e pouco a pouco encanta
o psicanalista é o da mulher que afirma: “Gracias a la vida, o meu bubu
beijou-me”: “O que era um bubu? Um bubu que beijava?” Ele pergunta a
si mesmo se seria um pássaro, um cão, e o que poderia ter acontecido para que
fosse tão especial esse beijo, nessa manhã, do tal bubu: “Ou talvez um amante.
Talvez um amante que demora a revelar-se. Talvez bubu fosse o diminutivo
guardado no silêncio da espera e até ao momento em que o amante beijasse, e a
destinatária, uma mulher de voz bem timbrada, cuja idade não se revela, só
o timbre acima da idade, essas vozes maravilhosas que são a própria alma desencarnada
da voz, que pairam acima do tempo, naquele caso viesse agradecer sob
anonimato, chamando a um homem amado, nas ondas da madrugada, bubu. A sua
ideia, definitiva, era pois que, à semelhança de tudo, o bubu fosse o nome
de um outro nome. A sua ideia era de que tudo tinha um rosto visível e um
outro estava escondido. A própria voz de Sosa era isso. Uma promessa. A beleza
era uma promessa. O que era maravilhoso atrás da palavra bubu era a coisa
maravilhosa que lá não estava e não era palavra. Passava a vida a escutar
histórias de bubu — Osvaldo Campos disse em voz alta o nome do seu bubu – Rossiana.”
Notas:
1 Publicado
em Portugal pela Dom Quixote (2007).
2 Termo
que roubei do Umberto Eco de Pós-escrito ao Nome da Rosa.
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