“Renuncio à toda responsabilidade, exceto quando opino sobre Literatura” – Michel Houellebecq



No centro dos atentados a Charlie Hebdo, o escritor Michel Houellebecq foi responsável por uma celeuma: seu novo romance Soumission (Submissão) volta a um tema caro para o seu país, tanto quanto o que ensaiou em Partículas elementares (obra que chegou a ser adaptada para o cinema). O livro de 2015, o sexto da sua carreira literária, aborda o futuro da França e o papel do islã.

Ambientado em 2022, a narrativa traz um país agitado por problemas que correm misteriosamente: a mídia, por exemplo, é a grande responsável por espalhar o caos ao fazer-se de desentendida quanto a seu exercício de manipulação. Nesse cenário, em poucos meses, um líder de um partido muçulmano de criação recente é eleito presidente. Na noite de 5 de junho, na segunda rodada das eleições gerais – a primeira fora anulada por fraude eleitoral – Mohammed Ben Abbes vence oportunamente Marine Le Pen com o apoio tanto dos socialistas como da direita.

Numa entrevista exclusiva para The Paris Review, o escritor francês responde sobre quais razões levaram à escrita desse romance, como foi o processo de escrita, e opina sobre uma série de questões que dizem respeito não apenas ao seu país, afinal, o período é conturbado para todos os países ao redor do mundo, quando assistimos cada vez mais ganhar forma os ritos de intolerância e o poder de manipulação descarada da mídia e do capital. A entrevista é de poucas semanas antes da apresentação do romance na França e dos atentados à Charlie Hebdo. Sobre o poder de intervenção de sua obra, Houellebecq acreditava naquela ocasião que seu “livro não teria nenhum efeito”, dada que a questão a que se dedica já passava por uma exacerbada exploração pela mídia francesa. E a discussão se acalora quando é colocado em pauta a distinção entre racismo e antissemitismo, dois conceitos revisitados pelo olhar diferenciado do escritor francês.

***

Por que fez esse romance?

Por várias razões. Em primeiro lugar, creio, é este meu trabalho, embora a palavra não seja de meu gosto. Percebi algumas grandes mudanças quando voltei a morar na França, mesmo que tais mudanças não sejam especificamente francesas, mas do ocidente como um todo. Creio que a segunda razão é que meu ateísmo não sobreviveu diante da quantidade de mortes que tive enfrentar recentemente. De fato, começou a parecer-me insustentável.

A morte de seu cachorro, de seus pais?

Sim, foram muitas coisas num curto período de tempo. Parte disso pode ter sido porque, ao contrário do que eu pensava, nunca fui de um todo ateu. Era um agnóstico. Normalmente essa palavra funciona como disfarce do ateísmo, mas creio que não é o meu caso. Quando, à luz de tudo o que sei, reexamino a questão de se existe um criador, uma ordem cósmica, esse tipo de coisas, me dou conta de que o certo é que não tenho uma resposta.

Como classificaria este livro?

O gênero ficção política não está mal. Não creio que tenha lido muitos exemplos similares, mas em qualquer caso, li alguns, mais de literatura inglesa que francesa.

Em que títulos foi pensado?

Num sentido, em certos livros de Conrad. Ou de John Buchan. E outros livros mais recentes, não tão bons, que são mais como thrillers. Um thriller pode desenvolver-se num cenário político, nem sempre tem que estar ligado ao mundo dos negócios. Mas há uma terceira razão porque escrevi este livro: porque gostava bastante como começava. Escrevi a primeira parte, até a página 26, praticamente de uma só sentada. E o achei muito convincente, porque me parece fácil imaginar-me como um estudante encontrando um amigo em Huysmans e dedicando sua vida a ele. Isso não se passou comigo. Li Huysmans muito mais tarde, creio que quando tinha quase trinta anos, mas definitivamente havia gostado de lê-lo. Creio que havia sido um amigo verdadeiro para mim. De modo que, depois de escrever essas vinte e seis páginas, não fiz nada durante um tempo. Isso foi em janeiro de 2013, e devo ter regressado ao texto no verão de 2014. Mas, no início, meu projeto era muito diferente. Não ia se chamar Soumission; o primeiro título era A conversão. E em meu projeto original o narrador também se convertia, mas ao catolicismo. O que quer dizer que seguiu os passos de Huysmans um século depois, abandonando o naturalismo para fazer-se católico. E eu não foi capaz de fazê-lo.

Por que não?

Não funcionava. Em minha opinião, a cena-chave do livro é essa em que o narrador faz uma última visita à Madona Negra de Rocamadour, sente um poder espiritual, como ondas, e de repente ela se desvanece até ao passado e ele regressa ao estacionamento, só e basicamente desesperado.

Dias antes de chegada de Soumission às livrarias o escritor foi caricaturado para capa do Charlie Hebdo
 

Este é um romance satírico?

Não. Talvez uma pequena parte do livro satirize os jornalistas políticos, e aos políticos um pouquinho também, para ser sincero. Mas os personagens principais não são satíricos.

De onde tirou a ideia de uma eleição presidencial em 2022 que materializa em Marine Le Pen e o líder de um partido muçulmano?

Bem, Marine Le Pen me parece uma candidata real para 2022, inclusive para 2017... O partido muçulmano é mais... Aí está o núcleo do assunto, na verdade. Tentei colocar-me no lugar de um muçulmano e me dei conta de que, na verdade, estão numa situação totalmente esquizofrênica. Porque em geral aos muçulmanos não interessam os temas econômicos, seus grandes temas são os que hoje em dia chamamos sociais. Mas, mesmo nestes temas, evidentemente, estão situados muito longe da esquerda e mais longe ainda dos Verdes. Só há que pensar no casamento gay para entender o que quero dizer, mas se pode dizer o mesmo de toda uma série de temas.  E tampouco se vê razões para que voltem a votar pela direita, e muito menos pela extrema direita, que é rejeitada desse plano. Por isso que se um muçulmano quer votar, o que se supõe que tem de fazer? A verdade é que está numa situação impossível. Não tem representação nenhuma. Seria um erro dizer que sua religião não tem nenhuma consequência política: sei que tem. Essa representação também tem o catolicismo, certamente, até mesmo os católicos têm sido mais ou menos marginalizados. Por essas razões, me parece, um partido muçulmano tem muito sentido.

Mas imaginar que um partido como esse possa estar em situação de ganhar umas eleições presidenciais dentro de sete anos...

Estou de acordo, não é muito realista. Por duas razões, na verdade. Primeiro, e isto é o mais difícil de imaginar, os muçulmanos teriam que conseguir se dá bem entre eles. Para isso, faz falta alguém extremamente inteligente e com um extraordinário talento político, qualidades que eu dou ao meu personagem Ben Abbes. Mas um talento extremo é, por definição, um fenômeno raro. E alguém supondo que este personagem existisse, o partido poderia decolar, mas levaria mais de sete anos. Se nos fixamos em como é feito os Irmãos Muçulmanos, vemos redes regionais, obras de caridade, centros culturais, centros de oração, centro de trabalho, serviços sanitários, algo que se assemelha ao que fez o Partido Comunista. Eu diria que num país em que a pobreza vai seguir em crescente, este partido poderia atrair a gente muito mais além dos muçulmanos médios, se é que posso chamá-los assim, posto que, na verdade, já não existe um muçulmano médio desde que temos a gente que não é de origem norte-africana convertendo-se ao Islã. Mas um processo como este levaria várias décadas. O sensacionalismo da mídia exerce um papel negativo, é verdade. Por exemplo, a encantou a história do tipo que vivia num povoado da Normandia, que era tão francês como qualquer um, e nem sequer vinha de uma família desestruturada, que se converteu e marchou para fazer a jihad na Síria. Mas é razoável pensar que, por cada sujeito como aquele, há várias dezenas de sujeitos que não fazem nada nem remotamente similar. Depois, ninguém não faz a jihad por diversão, esse tipo de coisas só interessa a gente que se sente muito motivada por exercer a violência, coisa que significa que, necessariamente é só uma pequena minoria.

Também poderíamos dizer que o que realmente o interessa é ir a Síria, mais que converter-se.

Não estou de acordo. Creio que existe uma necessidade de Deus real e que o regresso da religião não é um slogan mas uma realidade, e que está claramente em promoção.

Essa hipótese é fundamental para o livro, mas sabemos que muitos pesquisadores levam muitos anos desacreditando sobre ela, demonstrando que na realidade ao que estamos assistindo é uma progressiva secularização do islã, e que a violência e o radicalismo deveriam entender-se como os estertores do islamismo. Esse é o argumento defendido por Olivier Roy, e muitas outras pessoas que trabalham nesta questão há mais de vinte anos.

Isto não é o que eu tenho observado, embora na América do Norte e na América do Sul o islã tem se beneficiado em menor quantidade que os evangélicos. Este não é um fenômeno francês, em todo caso, é uma questão global. Não conheço o caso da Ásia, mas o da África é interessante porque aí tem os dois grandes poderes religiosos em ascensão: o cristianismo evangélico e o islã. Em muitos sentidos sigo sendo um comtiano, e não creio que uma sociedade possa sobreviver sem religião.

Mas por que decidiu contar estas coisas de uma maneira tão dramaticamente exagerada inclusive reconhecendo que a ideia de um presidente muçulmano em 2022 é pouco realista?

Isso deve ser de meu lado marcado das massas, meu lado thriller.

Não o chamaria seu lado Éric Zemmour?

Não sei, nunca li seu livro. O que é que diz exatamente?

Ele, e uns quantos escritores, se sobrepõe, apesar de suas diferenças, descrevendo uma França contemporânea que a mim me parece essencialmente fantasiosa, em que a ameaça do islã se abre sobre a sociedade francesa e é um de seus elementos principais. Na trama de seu romance, me parece, aceita isso como premissa e promove a mesma descrição da França contemporânea que encontramos no trabalho desses intelectuais hoje.

Não sei, só conheço o título do livro de Zemmour (O suicídio francês), e isso não é em absoluto o modo como eu vejo as coisas. Não creio que estejamos assistindo a um suicídio francês. Creio que o que estamos vendo é praticamente o contrário. É a Europa que está cometendo um suicídio e, no meio da Europa, a França está tentando sobreviver desesperadamente. É quase o único país que luta por sobreviver, o único país cuja demografia permite sobreviver. O suicídio é uma questão demográfica, é a melhor e a mais eficaz maneira de suicidar-se. Mas a França não está se suicidando totalmente. E mais, que a gente se converta é um sinal de esperança, não uma ameaça. Digo isso, mas não creio que a gente se converta por razões sociais, as razões de sua conversão são mais profundas, inclusive mesmo que meu livro me contradiga ligeiramente, sendo Huysmans o caso clássico de um homem que se converte por razões que são puramente estéticas. Na verdade, os assuntos que preocupam a Pascal deixam Huysmans frio. Nunca os menciona. Até me custa imaginar um esteta assim. Para ele, a beleza é a prova. A beleza de uma rima, de um quadro, da música, provava a existência de Deus.

Isto nos devolve à questão do suicídio, posto que Baudelaire disse de Huysmans que a única relação que tinha a seu alcance era entre o suicídio e a conversão...

Não, quem fez esse comentário foi Barbey d’Aurevilly, e tinha certo sentido, especialmente depois de ler À rebours. Li-o cuidadosamente e, ao final, realmente é cristão. É assombroso.



Por voltar ao assunto de seus exageros pouco realistas, em seu livro descreve, de uma forma muito turva e vaga, vários acontecimentos mundiais, e sem dúvidas, o leitor nunca termina de saber ao certo o que são. Isto nos leva ao reino da fantasia, não é verdade? À política do medo.

Sim, talvez. Sim, o livro tem um lado temível. Utilizo as táticas do medo.

Como é imaginar o panorama do islã apoderando-se do país?

Na verdade não está claro de que se supõe que temos medo, se dos nativistas ou dos muçulmanos. Isso deixo sem resolver.

Se fiz a pregunta a você qual poderia ser o efeito de um romance baseado nesta hipótese?

Nenhum. Nenhum efeito em absoluto.

Não acredita que contribuirá para reforçar a imagem da França que acabou de descrever, em que o islã sufoca sobre nossas cabeças como a espada de Dâmocles, como a mais terrorífica de todas as coisas?

Em qualquer caso, os meios não falam de outra coisa, não poderiam falar disso mais. Seria impossível falar disso mais do que já fazem, de forma que meu livro não terá nenhum efeito.

Não lhe dá vontade de escrever sobre algum outro tema para não unir-se à manada?

Não, parte de meu trabalho é falar sobre aquilo que todo mundo fala, objetivamente. Pertenço a minha própria época.

Você comenta em seu romance que os intelectuais franceses tendem a evitar sentir responsabilidades, mas se pergunta a si próprio sobre sua própria responsabilidade como escritor?

Mas é que não sou um intelectual. Eu não tomo partido, não defendo nenhum regime. Renuncio a qualquer responsabilidade, reclamo a irresponsabilidade total, exceto quando dou minha opinião sobre literatura em meus romances, então me comprometo aí como crítico literário. Mas são os ensaios os que mudam o mundo.

E os romances não?

Por suposto que não. Embora suspeite que este livro de Zemmour seja realmente demasiado grande. Creio que O capital de Marx é demasiadamente grande. Na verdade o que se leu e mudou o mundo foi O manifesto comunista. Rousseau mudou o mundo, às vezes sabia como ir diretamente ao grande tema. É sensato, se você quer mudar o mundo, tem que dizer, “Assim é como é o mundo é e é isso o que vou fazer”. Não se pode perder em considerações romanescas. É ineficaz.

Mas não faz falta que eu lhe diga como pode usar um romance como ferramenta epistemológica. Esse foi o tema de O mapa e o território. Neste livro sinto que você adota categorias de descrição, oposições, que são mais duvidosas, o tipo de categorias empregadas pelos editores de Causeur ou Aalin Finkielkraut, Éric Zemmour ou mesmo Renaud Camus. Por exemplo, a ‘oposição’ entre o antirracismo e o secularismo.

Ninguém não pode negar que haja aí uma contradição.

Eu não a vejo. Ao contrário, as mesmas pessoas muitas vezes são antirracistas militantes e fervorosas defensoras do secularismo, com as formas de pensar fundando suas raízes na Ilustração.

Olhe, a Ilustração está morta, que descanse em paz. Um exemplo chamativo? A candidata de esquerda na cédula de Olivier Besancenot, que usava véu, aí tem uma contradição. Mas apenas os muçulmanos estão realmente numa situação esquizofrênica. A nível do que chamamos valores, os muçulmanos têm mais em comum com a extrema direita que com a esquerda. Há uma oposição mais fundamental entre um muçulmano e um ateu que entre um muçulmano e um católico. Isso também me parece óbvio.

Mas não compreendo a conexão com o racismo…

Isso é porque não há. Se falarmos objetivamente, não há. Quando me julgaram por racismo e me absolveram, há uma década, o juiz comentou corretamente que a religião muçulmana não é um atributo racial. Isto hoje em dia tem sido mais evidente. De forma que ampliamos o reino do “racismo” inventando o delito da islamofobia.

Talvez a palavra esteja mal escolhida, mas sim existem formas de estigmatizar grupos ou categorias de pessoas, o que são formas de racismo...

Não, a islamofobia não é um tipo de racismo. Se há algo que se saiba muito claramente é isso.

A islamofobia serve como bandeira de um tipo racismo que já não se pode expressar porque vai contra a lei.

Eu creio que isso é falso, simplesmente. Não estou de acordo.

Você emprega outra dicotomia duvidosa, a oposição entre o antissemitismo e o racismo, quando na verdade podemos assinalar vários momentos da história em que essas duas coisas hão caminhado no mesmo lado.

Creio que o antissemitismo não tem nada a ver com o racismo. Dada a circunstância que há tempo levo tentando compreender o antissemitismo. Alguém sente um primeiro impulso de conectá-lo ao racismo. Mas de que tipo de racismo estamos falando quando uma pessoa não poder adivinhar se alguém é judeu ou não é judeu porque a diferença não pode ser vista? O racismo é mais elementar que tudo isso, é uma diferença na cor da pele...

Não, porque o racismo cultural leva muito tempo entre nós.

Mas agora você está pedindo às palavras que signifiquem as coisas que não significam. O racismo é simplesmente quando não se gosta de alguém porque pertence a outra raça, porque não tem a mesma cor de pele que a sua, ou as mesmas feições etc. Não pode estirar a palavra para dar-lhe um significado mais elevado.

Mas, posto que, desde o ponto de vista biológico, as “raças” não existem, o racismo é, necessariamente, cultural.

Mas o racismo existe, aparentemente, por todas as partes. É evidente que existiu desde o momento em que as raças começaram a se misturar pela primeira vez... Seja honesto Silvain! Vocês sabe muito bem que um racista é alguém a quem lhe gosta outra pessoa porque tem a pele negra ou cara árabe. Isso é o que é o racismo.

Ou porque seus valores ou sua cultura são...

Não, isso é um problema diferente, desculpe.

Porque é polígamo, por exemplo.

Ah, bom, a ninguém pode escandalizar a poligamia sem ser nem um pouco racista. Isso deve ser o caso de muita gente que não é racista totalmente. Mas voltemos ao antissemitismo, porque nos desviamos do tema. Vendo que ninguém nunca pode adivinhar se alguém é judeu apenas por seu aspecto ou por seu modo de vida, posto que para quando realmente se desenvolveu o antissemitismo poucos judeus tinham uma forma de vida judia, assim o que poderia significar o antissemitismo? Não é uma espécie de racismo. A única coisa que se pode fazer é ler os textos para que você se dê conta de que o antissemitismo não é mais que uma teoria da conspiração: há gente oculta que é responsável de toda a infelicidade do mundo, que está conspirando contra nós, há um invasor entre nós. Se o mundo vai mal, é por culpa dos judeus, por culpa dos bancos judeus... É uma teoria da conspiração.

Mas em Soumission não há também uma teoria da conspiração:  a ideia de que tem lugar uma “grande substituição”, que os muçulmanos estão se fazendo para ganhar o poder?

Não conheço muito bem esta teoria da “grande substituição”, mas assumo que tem a ver com a raça. Mesmo que em meu livro não se mencione a imigração. Esse não é o tema.

Não é necessariamente racial, pode ser religiosa. Neste caso, seu livro descreve uma substituição da religião católica pelo islã.

Não. Meu livro descreve a destruição da filosofia herdada da Ilustração, que já não tem sentido para nada, apenas para pouquíssima gente. O catolicismo, em troca, não vai nada mal. Eu manteria que uma aliança entre católicos e os muçulmanos é possível. Já o vimos acontecer no passado, poderia voltar acontecer no presente.

Você, que se converteu em agnóstico, pode observar isso com alegria, e ver como se destrói a filosofia da Ilustração?

Sim. Tem que acontecer em algum momento e bem poderia ser agora. Neste sentido também sou comtiano. Estamos no que ele chama de a etapa metafísica, que começou na Idade Média, e cujo sentido geral era destruir a fase precedente. Em si mesma, não pode produzir nada, só vazio e infelicidade. De forma que sim, sou hostil à filosofia da Ilustração, isso necessito deixar perfeitamente esclarecido.

Por que elegeu situar seu romance no mundo acadêmico? Porque encarna a Ilustração?

Creio que não sei. A verdade é que queria que houvesse uma subtrama larga que versasse sobre Huysmans, e aí foi onde me ocorreu a ideia de fazer com que minha personagem fosse um acadêmico.

Sabia desde o princípio que escreveria este romance em primeira pessoa?

Sim, porque era um jogo com Huysmans. Foi assim desde o princípio.

Huysmans, o evocado por Houellebecq em Soumission

De novo, você escreveu um personagem que é em parte um autorretrato, não de todo, mas... está lá a morte de seus pais, por exemplo.

Sim, utilizei coisas, mesmo que os detalhes sejam bastante diferentes. Meus personagens principais nunca são autorretratos, mas sempre são projeções. Por exemplo, e se houvesse lido Huysmans jovem, e houvesse estudado literatura e houvesse sido professor? Me imagino em vidas que não vivi.

Permita-me, ainda a tempo, que acontecimentos reais se inserem em suas vidas de ficção?

Utilizo momentos que me afetaram a vida, sim. Mas, cada vez mais tenho de transpô-los. Neste livro, o único acontecimento que é realidade é o elemento teórico, o fato (a morte de meu pai) mas logo todos os detalhes são diferentes. Meu pai era muito diferente deste tipo, sua morte não sucedeu assim de uma vez. A vida só me dá as ideias básicas.

Ao escrever este livro teve a sensação de ser uma Cassandra, um profeta da catástrofe?

Realmente este livro não se pode descrever como uma predição pessimista. Ao fim, as coisas não saem tão mal na realidade.

Não saem tão mal para os homens, mas para as mulheres...

Sim, esse é um problema totalmente diferente. Mas, a mim me parece que o projeto de reconstruir o império romano não é tão estúpido, se reorientas a Europa ao sul a coisa começa a cobrar certo sentido, mesmo que agora não o tenha. Politicamente alguém até poderia alegrar-se com esta mudança, na realidade não há nenhuma catástrofe.

E sem dúvidas o livro finda extraordinariamente triste.

Sim, tem uma forte tristeza subjacente. Em minha opinião, a ambiguidade culmina na última frase: “Não tinha nada porque guardar luto”. Na verdade ninguém poderia sair do livro sentindo exatamente o contrário. O personagem tem duas coisas porque guardar o luto: Myriam e a Madona Negra. Mas não lamenta sua perda. O que faz com que o livro seja triste é uma espécie de ambiente de resignação.  

Como situaria este romance em relação com seus outros livros?

Poderia se dizer que fiz coisas que levava muito tempo querendo fazer, coisas que não havia feito nunca antes. Como ter um personagem muito importante que não vê nada nunca, que é Ben Abbes. Também penso que é o final mais triste de uma trama de amor que nunca havia escrito, porque é a mais banal: olhos que não vêm, coração que não sente. Tinham sentimentos. No geral, há uma sensação de entropia muito mais forte que em meus outros livros. Tem um lado sombrio, crepuscular, que explica a tristeza do tom. Por exemplo, se o catolicismo não funciona é porque já deu de si o que tinha de dar, parece pertencer ao passado, se venceu por si mesmo. O islã é uma imagem do futuro. Por que se esgotou a ideia de Nação? Porque abusaram dela durante demasiado tempo.

Não há aqui nenhum rastro de romantismo, muito menos de lírica. Temos passado a decadência.

Isso é verdade. O feito de que parti de Huysmans deve ter algo a ver com isto. Huysmans não podia voltar ao romantismo, mas para ele seguia sendo possível converter-se ao catolicismo. O ponto de conexão mais claro com meus outros livros é a ideia de que a religião, do tipo que seja, é necessária. Essa ideia está aí em muitos de meus livros. Neste também, só que agora é uma religião existente.

Qual é o lugar do humor neste livro?

Há personagens cômicos aqui e ali. Eu diria que na verdade é o mesmo de sempre, com o mesmo número de personagens ridículos.

Temos falado muito sobre as mulheres. Uma vez mais atrairá críticas por esse meio.

Desde já uma feminista não vai se encantar com este livro. Mas eu não posso fazer nada sobre isso.

E você ainda se surpreende com o que as pessoas definem A ampliação do campo de batalha como misógina. Este livro não vai lhe ajudar nesse sentido.

Sigo pensando que eu não sou um misógino, de verdade. Diria que, em todo caso, isto não é o importante. O que talvez possa fazer mal às pessoas é que demonstro como o feminismo está condenado pela demografia. De modo que a ideia subjacente, que sim, poderia molestar de verdade as pessoas, é que a ideologia não importa muito, comparada com a demografia.

Este livro não é uma provocação?

Acelero a história, mas não, não posso dizer que é o livro seja uma provocação; sempre que isso signifique dizer coisas que considero fundamentalmente incertas, apenas posso colocar as pessoas um tanto nervosas. Condenso uma evolução que, em minha opinião, é realista.

Quando escrevia ou relia o livro antecipou algumas das reações à sua publicação?

Sigo sem poder predizer estas coisas. 

Alguns poderia surpreender-se que você tenha elegido ir nesta direção quando seu último livro foi recebido como um triunfo de tal calibre que silenciou seus críticos.

A resposta verdadeira é que, francamente, eu não o elegi. O livro começou com uma conversão ao catolicismo que haveria tido lugar, mas não teve.

Não tem algo de desesperado este gesto, que você realmente não escolheu?

O desespero vem dizer adeus a uma civilização, por antiga que seja. Mas ao final o Corão resulta ser muito melhor do que eu pensava, agora que o reli – ou melhor, li. A conclusão mais óbvia é que os jihadistas são maus muçulmanos. Obviamente, como todo texto religioso há espaço para a interpretação, mas uma leitura honesta chegará à conclusão de que, em geral, não se prova a guerra santa de agressão, e que apenas a reza é válida. Assim que se poderia dizer que mudei de opinião. Mas isso não sinto que estive escrevendo sobre o medo. Sinto, sim, que podemos ir nos preparando para tanto. As feministas não poderiam fazê-lo, se temos de ser completamente honestos. Mas eu e outras muitas pessoas, sim, poderemos.

Poderia substituir a palavra feministas por mulheres, não?

Não, não se pode substituir a palavra feministas por mulheres. De verdade que não. Eu deixo claro que as mulheres também podem falar. 

***

Ligações a esta post:
>>> Leia aqui mais detalhes sobre Soumission

Tradução livre para entrevista publicada inicialmente em The Paris Review.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual