Querido Diário
Por Rafael Kafka
Não sei ao
certo por onde começar esse texto. Eu quero falar de liberdade hoje. Não sei se
escrevo de uma forma mais poética ou de uma forma mais presa a algum contexto
político que tem me incomodado demais. Mas algumas cenas me vêm à mente e dizem
que devem ser comunicadas hoje na forma dessa crônica que, provavelmente, irá
descambar consideravelmente para a prosa poética.
Uma cena
que me vem à mente na verdade é uma frase que ouvi de Chico Anysio em um vídeo
gravado com entrevista dele. Nessa entrevista, ele dizia não ter medo de
morrer. E sim pena. Quando ouvi aquilo, eu estava provavelmente afundado no
tédio existencial que me acometia com frequência pelos tempos em que ele
faleceu, porém tal frase mexeu comigo e desde então penso sempre em uma outra
cena a qual não me deixa um dia sem sua visita. Algumas vezes, tal visita
demora mais, outras vezes ela é rápida, mas sempre impactante.
Em tal
cena, eu me imagino em meu leito de morte, lúcido, consciente de que a qualquer
momento eu posso vir a falecer e sem saber ao certo se irei para um plano
superior ou para o mais pleno nada existencial. Talvez, eu não pense muito no
para onde irei, mas reflita demais acerca de onde vim e me questione se
aproveitei minha vida. Se estou com pena de morrer ou feliz por isso ter
acontecido finalmente.
Penso nos
suicidas agora. Sempre me instigou demais os motivos de uma pessoa se matar.
Cheguei a pensar nessa possibilidade algumas vezes em minha vida e em tempos
não muito idos. Nas vezes em que cogitei o suicídio, não como um desejo mas
como uma possibilidade, eu pensava que o faria se chegasse à conclusão de que
nada em minha vida mudaria e de que eu seguiria em algum estágio constante de
infortúnio. O suicídio é a desesperança materializada em ato. Se covarde ou
não, não sei. Apenas penso que uma pessoa se mata pela certeza de que nada
mudará, de que a vida é absurda e o suicídio é um último grito de rebeldia
perante essa dor absurda que não conseguimos encaixar dentro do absurdo global
da existência humana.
A frase de
Chico Anysio muito me tocou. Desde então, decidi que faria de tudo para que no
leito de minha morte eu olhasse para as pessoas e dissesse o quanto eu
lamentava ter de partir desse plano para outro. Ou para o nada, não sei. Mas que
estava feliz pelo prazer de ter conhecido todas aquelas criaturas maravilhosas,
de ter lido todos os livros que pude, de ter me eternizado em todos os livros
que escrevi, de fecundado semente de conhecimento em filhos, netos, amigos mais
jovens, alunos e ex-alunos. Estava feliz de ver que consegui realocar o meu
absurdo pessoal dentro do absurdo maior da vida e assim consegui com
engenhosidade viver a vida que escolhi.
A liberdade
é nossa maior maldição. Há uma música de Chico Buarque de seu último disco que
gosto demais chamada “Querido Diário”. Ela me lembra demais os versos
desencontrados de Ana Cristina César que me ensinaram a ler de verdade um
poema: sem procurar nele uma mensagem e sim apenas sentir sua substância
semântica. Assim como os poemas de Ana, essa música me faz pensar na liberdade
que permeia uma caminhada na rua com a vida solitária sendo lamentada pelos
outros enquanto nós a amamos do jeito que está, ou pelo desejo de amar uma
mulher sem o desejo sexual e apenas com o amor puro e casto que desejamos sem
desejar, ou ainda quando encontramos o amor em toda a sua trama absurda e ainda
assim o queremos sentir. Tal música me faz pensar realmente nas páginas
desencontradas de um diário, bem como as tortuosas linhas de Ana Cristina
César, onde nós somos o que somos: desencontrados e livres de fórmulas. Acabei
de ouvir essa música e decidi escrever sobre a liberdade, sobre como é difícil
ser livre, sobre como é difícil encarar o fato de que a nossa frente temos
apenas a nós para encararmos no final do caminho de nossas existências e nos
perguntarmos: isso tudo valeu a pena?
**
Albert
Camus afirma em seu livro sobre o mito de Sísifo que existem três atitudes
filosóficas diante do absurdo da existência: o suicídio, já citado acima, a
esperança e a revolta. A esperança é rechaçada pelo pensador por ela afastar o
seu humano da concretude da realidade. Na esperança, perdemo-nos em devaneios
tolos que apenas nos tirarão nossa liberdade. Os sonhos produzidos pela
esperança são apenas sonhos fantasiosos que visam a disfarçar o gosto amargo do
absurdo da realidade.
A revolta é
para ele a resposta correta, mesmo depois a atitude revoltada passando por um
crivo crítico muito interessante em O homem revoltado. A atitude de revolta
para o Camus do Sísifo é viver a existência em sua concretude absurda e não
querer dar nenhum sentido à existência. Quando li isso, achei poético e belo,
mas percebi que estou longe de ser um homem revoltado. Sou bastante esperançoso
até. Vivo a me pegar em devaneios sobre como será minha vida quando eu tiver um
relacionamento sexual e intelectualmente intenso, uma vida cheia de viagens e
descobertas, um filho e uma filha para educar, aulas para planejar na
universidade com o fito de provocar os meus estudantes a mudarem o mundo em algo,
mesmo que na forma da criação de grupos intelectuais que preguem a leitura como
salvação do mundo. Penso em uma série de coisas e não consigo não pensar em
como quero que a minha existência seja. Sou projetivo demais e gosto de ser
assim: faz-me me sentir menos inconsequente.
A revolta
em minha vida é uma esperança em não devaneio. Procuro avaliar bem a minha
existência e o que estou a fazer dela. Não quero sonhar e esperar que os sonhos
aconteçam por si só. Quero fazer de meus sonhos a minha vida do futuro
concretizada hoje. Camus era lírico demais, poético demais e afirmo ser esse um
dos motivos de sua crise com Sartre. Este era mais ligado ao que se passava ao
seu redor. Um belo dia percebeu que não poderia brincar de casal aventureiro ao
lado de Simone de Beauvoir e decidiu-se que não poderia mais ignorar o que se
passava ao seu redor. Aplicou o existencialismo ao marxismo e morreu fazendo de
sua liberdade um serviço aos trabalhadores.
Quando
entro em sala, não me contento apenas em dar uma aula de língua portuguesa bem
feita. Acho que tenho muito de Keating, o professor de Sociedade dos poetas mortos, filme que vi, acreditem, quando estava com 19 anos no dia em que recebi
o meu resultado da primeira aprovação em Letras, lá em 2008. Eu que sempre fui
impressionável demais pela arte, decidi que seria um professor daquele jeito e
até hoje não consigo me desvencilhar dessa sina. Ainda bem, apesar de todos os
riscos que isso pode me trazer.
Não acho
que sei tudo nessa vida, apesar de algumas pessoas terem me dito recentemente
que sou alguém que se acha o dono da razão. O que sei é que geralmente quem me
diz isso é alguém que lê apenas o que é mandado pela mídia ou pelo professor e
não tem aquele espírito indomável de leitor livre que sai para ler sem parar e
começa a ter a angústia de o tempo todo correr atrás de novas fontes de
verdades. O preço da liberdade é a angústia e é mais fácil nos fecharmos em
verdades prontas e nos gabarmos como inteligentes sabedores da verdade que
acusam os outros de quererem ser os donos da verdade do que assumirmos que
vemos pouco do mundo e temos medo de ir mais adiante. As pessoas pensam que
acho que sei demais, mas na verdade eu sei bem pouco e é por isso que resolvo
não colocar a culpa apenas em uma única pessoa ou partido pelos problemas ao
meu redor: eu procuro entender o imenso contexto político e histórico de nosso
mundo para ter ao menos o direito de dar uma opinião. Sou inquieto e quero
levar essa inquietude aos meus alunos. Se ele passar no vestibular, ou não, não
me importa tanto: mas se ele se torna alguém consciente da imensa dialética que
o rodeia e se ele resolve encarar a angústia da poesia que é escolher ser dono
de sua própria existência absurda, esperançosa e revoltada, eu me sinto
profundamente feliz.
**
Falei de
algumas cenas no começo desse texto que me fizeram querer falar sobre
liberdade. Todas elas se passam no centro de Belém, que mesmo com todos os
problemas do mundo é uma cidade que inspira sensações existenciais profundas.
Quem ler Dalcídio Jurandir na fase urbana de seu ciclo do extremo norte vai
entender do que falo. Muitas dessas cenas têm a ver com andanças com pessoas
queridas, em especial Hamilton e Kárita. Eu os conheci no mesmo ano, em 2009, e
tornei-me demais amigo de ambos, nutrindo logo uma forte paixão por Kárita, que
mais parece uma versão amazônica de Julie Delpy, em especial a Julie daquele
filme A liberdade é branca, com um terrífico charme meigo que irradia de um
rosto doce e provocativo. Hamilton mais parecia um Max Brod acompanhando um Kafka
perturbado com crises existenciais e sendo uma reserva de equilíbrio não muito
presente em mim e me salvando da loucura em diversas situações.
Lembro de
diversas tardes com os dois em andanças pelas ruas dos bairros centrais de
nossa cidade, rumo a cinemas, praças, bancos, bares, para ficarmos falando
apenas de nossas existências e nossos anseios que aos poucos. Sinto que em
breve me verei distante dos dois e isso muito me deixa preocupado. Penso se
essa cidade ainda terá o mesmo gosto de liberdade sem os dois. O certo é que
olhar para as mangueiras e sentir o sol queimando tudo ao meu redor faz-me
lembrar de momentos muito poéticos nos quais ambos, separados ou juntos,
estiveram presentes.
Outra cena
que vem à minha mente é a de minha mãe, quando eu tinha 17 anos, tirando-me da
cama e levando-me ao médico. Eu estava entregue a mim mesmo e talvez me
deixasse morrer ali dominado pela tuberculose, como algum poeta romântico,
apenas para ter algum sentido em minha vida. Diante de mim havia um muro que minha
analfabeta arrebentou e me levou para cuidar de mim. Eu lembro bem do gosto de
plástico que aquele remédio deixava em minha boca, eu lembro bem da náusea, eu
lembro bem de como não deixei meus estudos e passei a ter uma grande ansiedade
para chegar a qualquer lugar somente para dar a ela orgulho. Minha mãe me
ensinou a nunca desistir, mesmo que isso signifique ser arrastado por alguém
sem rumo a qualquer lugar, desde que a gente não fique parado. Desde que a
gente não se mate.
Agora eu me
vejo com Helisama embaixo de uma árvore na UFPA enquanto uma batida na madeira
da árvore se repete incessantemente. Olhamos para cima e ela está empolgada por
ter passado em Letras e eu vejo nela uma grande professora com humanidade e
charme que levará muitos estudantes loucos a escreverem poemas apaixonados para
aquela professorinha de ar juvenil que parece eterno. Acima de nós um pica-pau
procura por insetos na madeira e a gente se lembra da infância quando víamos o
desenho. O sol está forte, a baía mesmo poluída segue limpa, as árvores da ilha
do outro lado do rio me chamam dizendo que preciso começar a poupar dinheiro dos
livros para comprar passagens de avião e ônibus. Eu abraço Helisama e é um
abraço que na verdade é um abraço em todos os seres amados. A vida de repente parece
eterna.
Eu penso
nas pessoas que ainda não conheci. Em especial Pedro, o camarada que edita esse
blog. Penso na quantidade de projetos que ele tem a fazer, nas coisas em que
ele se engaja. É assim que quero ser quando crescer. Penso também em Nilo,
coordenador do grupo de estudos do qual faço parte e penso que no dia em que
defender uma tese de doutorado vou querer os dois ali presentes e depois uma
cerveja no bar com as pessoas acima citadas, apesar de Helisama não beber e
minha mãe precisar descansar.
Eu penso
nessas pessoas e penso em diversas coisas que gosto de fazer. Eu me vejo
andando rumo ao CENTUR para tentar ler algo ou escrever alguma coisa decente.
Eu me vejo vendo gente da qual eu me afastei e não deveria ter me afastado, eu
escuto os pássaros ao redor de mim no quintal enquanto na casa ao lado há um
maldito martelo que me irrita por acabar com toda aquela harmonia. Eu paro para
pensar em minha vida e vejo que ela foi e está sendo algo interessante: aos
poucos eu aprendo que ela é minha e que de alguma forma ela deve se tornar
ainda mais minha com o passar do tempo. Eu penso nas vezes em que procurei
fugir de mim mesmo no amor e lamento não ter tido os olhos mais abertos, em um
zen budismo que contagiaria Clarice e Kerouac, para me sentir mais em contato
comigo mesmo, mais pleno em minha própria companhia, mais consciente de que o
tempo em minha existência não corre ao sabor do acaso e sim ao sabor do que
quero que ele corra.
Eu penso
nas pessoas acima e em diversas outras pessoas e penso que elas são o sabor de
minha liberdade. Penso que todas me ensinaram algo e têm relativa parcela de
amor e afeto de mim. E mais uma cena vem a minha cabeça e de novo é a de meu
leito de morte. Hoje eu já me vejo sorrindo nele, ainda não plenamente satisfeito
com o que lembra, mas já cônscio de que as coisas começaram a melhorar. Talvez
seja um incentivo para dormir menos e me engajar em mais coisas, desde estudar
inglês vendo séries até estudar a contribuição da escola marxista para a
crítica literária. Acho que a vida tem tido um sabor mais parecido com o da
arte e isso tem me feito feliz.
E aos
poucos eu percebo que a morte me atormenta ainda pelo medo de morrer sem ter
aproveitado a chance de fazer da existência, minha e dos outros, algo melhor.
Não por ensinamentos e sim por presença, como diria Heidegger: pela simples
beleza da presença de alguém encantador. Aos poucos, esse temor de morrer se
torna em pena, pois a vida tem se tornado a cada dia uma existência mais
esperançosamente revoltada e cheia de sentido.
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