O tornar-se pessoa de Violette Leduc
Por Rafael Kafka
Nas cartas de amor escritas a Nelson Algren, Simone cita uma “amiga
feia”, apaixonada por ela, de comportamento neurótico e com sérias crises
existenciais, tendo apenas como motivo para sobreviver a literatura à qual se
entrega como um grande descarrego de sua consciência perturbada. Os encontros
das duas eram frequentes, pelo menos uma vez por mês, e Simone se desesperava
demais por não poder corresponder àquele sentimento, imaginando que a qualquer
momento a amiga viria a cometer suicídio.
Vendo o filme Violette de Martin Provost, lançado em
2013, consegui perceber que a tal amiga feia seria Violette Leduc, uma
escritora cuja cinebiografia é narrada de forma primorosa com atuação de
Emanuelle Devos no papel de Violette. A história do filme começa nos anos
finais da Segunda Guerra Mundial, mostrando Violette em um casamento arranjado
com um escritor homossexual que se utilizou da tão comum manobra na época para
fugir das obrigações militares.
Abandonada,
Violette acaba indo parar em Paris e lá ouve falar de Simone de Beauvoir.
Conhece a obra da autora e, inspirada pelas memórias e romances da ícone
feminista, decide-se a engajar-se em sua própria obra literária. Logo, surge
uma forte amizade entre as duas escritoras, que acaba pendendo para o lado da
paixão nos sentimentos de Violette. Simone fala demais no começo do último tomo
de suas memórias sobre como a base afetiva gerada pela família é importante
para se criar um ego forte na criança e no futuro adulto. Com sérios problemas
de relacionamento com a mãe e rejeitada pelo pai, Violette cresce com uma forte
carência afetiva que a transforma em um ser dramático e necessitado do amor de
uma pessoa.
Muito do amor nutrido por Simone é alimentado pelo
seu passado repleto de desamor e a literatura se torna mais do que labor em uma
verdadeira missão de salvação. A princípio, Violette faz de seus escritos um
diário pessoal pelo qual ela procura acertas as contas com seu passado.
Impulsionada por Simone, Violette começa a adquirir condições de se manter e
aos poucos a liberdade econômica obtida dessa forma começa a mostrar à
escritora a capacidade tida por ela de controlar os próprios rumos de sua
existência.
Há na narrativa de Violette um belo complemento de O
segundo sexo. Por meio das peripécias da “amiga feia” de Simone, é-nos
possível entender de forma bastante detalhada um pouco da profundeza do
comportamento lésbico ligado à necessidade de um ser em encontrar um amor para
justificar sua vida. Não que o amor lésbico se reduza a isso, mas é
interessante notar como para Violette Leduc a sexualidade se mostra como um
imperativo importante e por demais categórico: sentir-se desejada para ela é a
salvação, sentir-se bela é sentir-se como um ser humano não rejeitado.
As cenas de choro da escritora declarando-se para a
filósofa são comoventes e é muito interessante o modo como Simone freia essa
paixão que poderia colocar toda uma relação humana abaixo. Em nenhum momento,
Simone dá lições de moral. Ela apenas exorta à amiga a servir-se da escrita
como uma forma de superação de si mesma, de concretização do projeto de ser de
Violette, a qual após muitos tropeços entende a mensagem da amiga, que não é em
si uma mensagem, mas uma atitude perante a vida, a atitude de quem vê a
realidade como algo inacabado e disposto a ser investido por nossa vontade.
A cena final com Simone (muito bem interpretada
Sandrine Kiberlain) dando um discurso no rádio,falando do modo como Violette
conseguiu se salvar por meio da literatura, enquanto esta vai para uma região
de campo sozinha (hábito adquirido após muito tempo de crises de choro), as
abre as janelas, sente o sol sob seu rosto e decide-se sentar em uma área
arborizada para escrever, é das mais lidas já vistas por mim em minha vida de
cinema. Uma cena que usa toda a carga semântica da linguagem verbal e da
linguagem não-verbal para mostrar aos espectadores que o ser humano está muito
além de qualquer dependência de um outro, como o patriarcado tão combatido por
Simone, fez-nos acreditar até hoje.
Por sinal, a atriz que interpreta Simone me fez ver
ali a autora que desde 2008 considero a escritora mais talentosa de todos os
tempos. Vi meia hora de Os amantes do
Café do Flore e achei a Simone dali muito forçada, sem a vida apaixonante
que a escritora que produziu Os mandarins
demonstra ter em todos os seus escritos. A Simone de Violette tem a força poética e ontológica da Simone que aprendi a
ver seja nos ensaios filosóficos, seja nas cartas de amor ao crocodilo
americano que a tomou nos braços por quase vinte anos.
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Um conceito importante defendido por Simone em seus
textos é o de tornar-se pessoa. Tal conceito é melhor abordado pela terapia
centrada na pessoal, uma escola psicológica a qual, mesmo ainda conhecendo bem
pouco, acho por demais interessante. A corrente de pensamento centrada na
pessoa prega, grosso modo, uma terapia cujo foco seja a capacidade do paciente
de reagir às demandas mostradas pela existência de um modo que ele se torne, a
cada momento, mais autônomo enquanto ser. Há muita influência recíproca entre a
terapia centrada na pessoa e correntes de pensamento como o existencialismo
sartreano e a pedagogia da autonomia. Ambas pregam o empoderamento do
ser-para-si para que ele não fuja das suas responsabilidades enquanto ser para
uma existência cheia de inautenticidade e impessoalidade, para usarmos termos
de Heidegger.
Tornar-se pessoa é justamente o ato de a pessoa
perceber-se enquanto ser capaz de tomar decisões e assumir responsabilidades,
não se tornando vítima de si mesma e procurando racionalizar sobre os mais
variados fatores que afetam a sua existência. O tornar-se ser autônomo é um
processo constante e que nunca finda, exceto com a morte. Um exemplo bem
simples é o tornar-se leitor autônomo. O professor, ou mediador de leitura,
deve trabalhar com o intuito de fomentar no jovem leitor o desejo de sempre ler
mais e mais, esperando que após um processo de empoderamento do hábito leitor
daquele indivíduo o mesmo nunca seja interrompido.
Simone usa demais o termo referente a tornar-se
pessoa em seus ensaios, pois, no geral, mulheres não eram vistas enquanto seres
humanos plenos. Elas eram vistas como um
outro em si cujo sentido de vida era determinado pelo homem, esse sim visto
como ser-para-si e com todos os direitos do mundo no tocante determinar os
rumos de sua existência. Para Simone, falar sobre a condição da mulher de um
ponto de vista existencial significava desconstruir mitos que prendiam as
mulheres em uma condição imutável, de coisa viva, disposta ao homem como provedora
de prazer sexual e de continuidade de um legado vivo para além da morte na
forma de descendência. Simone se utilizava da lógica básica de que se os seres
humanos são condenados a serem livres, então as mulheres, como humanos, também
deveriam serem objeto da máxima sartreana. A partir disso, ela desconstrói
todos os mitos existentes sobre o ser feminino e prega uma existência na qual a
mulher possa realmente se tornar pessoa, ou seja, alguém livre para ser o que
desejar ser dentro de suas possibilidades de ser.
Uma coisa que fica implícita do acima descrito é o
fato de que o patriarcado prega na forma do amor romântico uma necessária
dependência entre homem e mulher. Enquanto provedor, o homem precisa da mulher
enquanto guardiã do lar e do amor fraternal. Por isso mesmo, mulheres as quais
cometem adultérios ou ousam ter uma vida sexual mais aberta são facilmente
alvos das mais sérias violências físicas e verbais possíveis de se imaginar. Enquanto
guardiã do lar e do amor fraternal, a mulher precisa do homem aventureiro e
empreendedor para mantê-la e aos filhos. A ele é concedido desvios da rota,
inclusive uma vida sexual mais aberta, pois esse é o preço de ser homem e ser
livre: o de cair fora da estrada em alguns momentos e dever contar com a
complacência alheia.
Violette Leduc no filme que narra sua história tem
seu sofrimento por não se enquadrar nisso exposto. Feia, com trejeitos lésbicos
e fortemente carente, Violette não consegue se sentir pessoa por não ter outra
pessoa ao seu lado. Apenas com a ajuda de Simone e de outras pessoas, como o
polêmico Jean Cocteau, a escritora consegue transcender a si mesma e se torna
um ser humano pleno, alguém capaz de agir por conta própria e age de forma
natural do ato angustiante que é existir.
O final do filme, com Violette Leduc recebendo o sol
sobre si e tomando a decisão de escrever sob as árvores se torna uma verdadeira
ode à liberdade humana, não apenas do outro, mas de um discurso que nos condena
a ser do outro e dar a ele a cura de todos os nossos problemas e crises.
Violette se torna pessoa no momento em que percebe como deve gerir a sua vida
por meio de seus desejos, sem sucumbir à espera por alguém. As suas aventuras e
desventuras muito revelam da existência feminina, todavia no tocante a abordar
temáticas profundamente ligado ao ser-para-outro, a nossa coexistência com as
demais pessoas neste mundo, ela se torna protagonista de uma história
universal.
Violette me lembrou demais um filme
muito belo e singelo visto por mim há alguns anos com o nome de Em boa companhia. Nele, temos um
personagem que após um amor fracassado começa a viver uma vida mais plena e não
tão presa ao cotidiano de um yuppie. O final também é muito belo com o rapaz
que até então só fazia exercícios em uma esteira em local fechado correndo à
beira da praia, fazendo de um final que tinha tudo para ser previsível e bobo
uma verdadeira redenção do ser que sem um amor resolve fazer de sua existência,
ao menos por enquanto, uma ode à existência.
São os dois filmes
lembrados por mim os quais me fazem pensar nesse tema da libertação da
necessidade de se ter um outro. Somos bombardeados diariamente por uma série de
discursos midiáticos e tradicionais cujo conteúdo central é uma exortação à
procura do outro e à fuga de nós mesmos. A crença de que só seremos felizes ao
nos depararmos com o outro é algo com que devemos conviver constantemente e,
como já deixou claro Michel Foucault em diversos de seus escritos, os discursos
têm uma imensa capacidade de moldar subjetividades e gerarem comportamentos e
formas de se pensar a realidade. Vivemos em uma época pós-moderna que a cada
momento se torna mais perturbadora e mais romântica, pois somente no romantismo
podemos nos sentir, de alguma forma, plenos e seguros dos perigos existentes lá
fora.
Mesmo a série mais
querida por mim nos últimos tempos, How I
Met Your Mother, é irritantemente carregada de um discurso romântico. A procura de Ted
por sua “the one”, pela mulher com a qual ele terá filhos e uma vida em
conjunto, chega a ser aborrecedora em diversos momentos. Acabo esquecendo dos
aborrecimentos pelo nível de atuação tão bom e pelo roteiro que mesmo
conservador, do ponto de vista moral, em diversos pontos consegue ser bem
inteligente e tramado.
Poderia citar
muitas outras produções para televisão e para o cinema que sempre terminam com
o feliz final do casal apaixonado indicando que o idílio apaixonado chegou e
tudo ficará bem a partir de agora. O amor em nossos tempos se tornou uma
obsessão cuja meta é mostrar como um mundo tão feio pode se tornar belo do
nada...
De repente, se as
pessoas, como Violette e Simone, decidissem a se engajar em um processo de auto
exploração e de descoberta do mundo que as rodeia e começassem a pensar de
forma autônoma e não apenas reificando comportamentos e sentimentos, viveriam
formas mais intensas de amor e formas mais complexas de poesia romântica. Algo
como o que foi dito por Henry Perron, um dos protagonistas de Os mandarins: não quero que o amor seja
o sentido de minha vida e sim que ele seja um dos muitos projetos existentes
nela, um de seus muitos sentidos. (Paráfrase.)
Para mim, a frase
do jornalista é a coisa mais romântica já lida por mim. E Violette mostra, em
sua história de salvação ao sol, que aprendeu muito bem.
Comentários
Concordo ainda com a comparação que fez entre os dois filmes que mostraram a vida de Simone.