O panteão texano dos escritores

Gabriel García Márquez revisa Cem anos de solidão. Foto: Guillermo Angulo


Todas as memórias de Gabriel García Márquez ocupam 2,6m cúbicos. São umas 40 caixas de papelão atadas com plástico sobre dois apoios de madeira. Era sua coleção pessoal, as coisas que guardava em sua casa na Cidade do México. Uma vida. Assim chegou em 16 de dezembro de 2014 ao Harry Ransom Center, no campus de Austin da Universidade do Texas, Estados Unidos. Dezoito pessoas ajudaram a abrir as caixas. Tardará um ano para catalogar todo material e, muito possivelmente, dois anos para estudá-lo.

García Márquez morreu no dia 17 de abril em sua casa no México aos 87 anos. Teve a entrada proibida nos Estados Unidos durante décadas por sua atividade pró-comunista, embora logo tenha se reunido, por exemplo, com o presidente Bill Clinton em 1994. E, no dia 24 de novembro, o Harry Ransom Center anunciou a compra do arquivo pessoal do Nobel colombiano. Uma pergunta percorreu a América Latina nessa ocasião: Texas? É sério? O objetivo é situar-se no mapa acadêmico do continente latino-americano.

A venda havia começado a negociar-se em dezembro de 2013 por iniciativa da família e terminou por concretizar-se em julho de 2014. No dia seguinte de receber o material, Stephen Ennis, diretor da instituição, disse em vários meios: “Adquirimos o arquivo para torná-lo acessível”. A instituição fundada em 1957 com vocação de centro de pesquisa leva, desde sua construção, construindo com suas aquisições um grande mausoléu de humanidades. O lugar existe para se estabelecer como um grande centro de importância ao redor do mundo.

Compõe o catálogo cinco bíblias completas de Gutenberg que existem nos Estados Unidos, três cópias do Primeiro Fólio de Shakespeare, o arquivo de James Joyce. O nível foi sempre esse. Além desses materiais, que foram os primeiros a chegar na instituição, hoje são mais de 40 milhões de documentos, entre eles 38.000 caixas de manuscritos. Uma das razões para a aquisição de todo esse material é que na Universidade do Texas reúne o maior ambiente acadêmico dos Estados Unidos que mantém também a maior quantidade de especialistas na América.

Uma visita aos arquivos do Harry Ransom Center tem algo de mágico. Megan Barnard, diretora de aquisições, vive rodeada de arquivos e a abrir qualquer um deles é descobrir um tesouro num cofre. De uma pasta de cartão sai um manuscrito com soneto que Jorge Luis Borges dedicou ao Texas. As linhas são tortas e a caligrafia é gorda e tosca. Borges estava cego quando escreveu este papel. Ao lado, descobre-se outro manuscrito com caligrafia em maiúscula e quadriculada – um arquivo de igual também do escritor argentino, só que de anos antes.

Manuscrito de Cem anos de solidão.


Depois, um caderno com o primeiro rascunho de Watt, de Samuel Beckett. Não apenas está cheio de supressões, mas de desenhos que talvez fosse essa a maneira que tinha para ajudar-lhe a pensar. Mais: a primeira versão do primeiro capítulo de Morte à tarde, de Ernest Hemingway. O primeiro parágrafo também está riscado por inteiro. Ou ainda quatro versões diferentes do início de Vida e época de Michael K, de J. M. Coetzee, que já em vida doou todos os seus papeis para a instituição. Comparando as versões, se aprecia que Nobel sul-africano começou o romance com a mãe de Michael K falando em primeira pessoa. Logo trocou pela criança falando em primeira pessoa. Depois, como uma narrativa. Numa versão, a mulher não era a mãe do protagonista, mas sua avó. Neste lugar de Austin pode-se entrar numa sala de leitura e pedir que tudo isso lhe seja mostrado; para isso lá estão.

Essa é a missão da Universidade do Texas. Não se trata de impressionar mitómanos. Mas de colocar à disposição do público o interior do processo criativo dos autores mais aclamados. Um pesquisador abre isso e pode passar horas estudando o processo criativo de um autor. Imagine a utilidade que é para os estudantes. Coetzee não fez isso logo de cara, testou várias vezes até que deu com a forma de escrevê-lo. E, o Harry Ransom Center recebe cerca de 10.000 pesquisadores do mundo inteiro por ano em sua sala de leitura.

Notas datiloscritas para O general em seu labirinto, de Gabriel García Márquez


Poderia se dizer que já existe um nível entre os escritores ou personagens históricos: o nível Austin. Que teus objetos pessoais se conservem e se possam consultá-los nesta universidade. Assim se explica que desde há anos as aquisições já estejam em negociação ainda com os escritores vivos. Coetzee é um exemplo. Norman Mailer começou a enviar seus papeis dois anos antes de morrer. Em 2009, o ator Robert de Niro, doou 1.300 caixas de recordações que guardava em sua casa: guias anotados, fotos com provas de maquiagem, trajes de seus filmes, a licença de taxista que tirou para Taxi Driver. Aí também estão os originais com que Bob Woodward e Carl Bernestein investigaram o escândalo Watergate. Aí se pode consultar suas cadernetas de repórteres, repletas de telefones e notas riscadas.

Neste sentido, os papéis do jornalista e Nobel colombiano serão um imã para os pesquisadores, especialmente latino-americanos. Stephen Enniss, um dos que participaram do processo de aquisição do arquivo, relembra a viagem que fez ao México para falar com a família e fazer uma cotação dos papeis. Com ele viajou José Montelongo, especialista em literatura mexicana. Esteve um dia na casa do escritor separando papeis. Entre os livros, há uma primeira cópia de Cem anos de solidão, o romance que o consagrou em 1976. O rascunho do discurso de aceitação do Prêmio Nobel, em 1982. Várias versões de Crônica de uma morte anunciada e O amor nos tempos do cólera. As 10 versões de seu romance inacabado Em agosto nos vemos; a última delas segue tendo correções, por isso que ele não considerava tão cedo em lista para publicação. E, especialmente interessante é o material de documentação sobre Simón Bolívar que ele utilizou para a escrita de O general em seu labirinto, classificado com ele o deixou.

A missão do Harry Ransom Center é dizer como um escritor rascunhou, pensou, descartou, quantas vezes se aventurou num começo ou num fim para uma história até encontrar uma forma. Ou mesmo como se constituiu seu estilo de escrita. O plano é que todo esse material esteja, para breve, à disposição mesmo dos pesquisadores em qualquer parte do mundo que mesmo não tenha acesso à visitação in loco dos arquivos. No caso do arquivo de García Márquez, por exemplo, parte dele estará digitalizado antes de dois anos.

E nem só de papeis vive o arquivo da Harry Ransom; do autor de Cem anos de solidão o centro adquiriu ainda outros objetos pessoais, como passaportes, cartas, fotografias e três máquinas de escrever eletrônicas Macintosh de épocas diferentes.  Afinal, nem só de papeis se faz a memória de um escritor.


GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ NO HARRY RANSOM CENTER

A memória documental do escritor Prêmio Nobel de Literatura em 1982 é o paraíso para muitos que mergulham na sua obra em busca de tesouros. São, como falamos fotografias, pequenos textos e rascunhos de várias obras conhecidas do escritor, cartas enviadas a nomes como Jimmy Carter e Salman Rushdie; cadernetas de trabalho e anotações para romances. 

No arquivo online, cada peça aparecerá descrita minuciosamente e não haverá apenas materiais em língua espanhola mas documentos em francês, holandês, alemão, italiano, japonês, português, russo e sueco. Há muitas peças inéditas e estas, apesar de registradas no inventário não serão disponibilizadas online. São papéis de entre 1930 e 2014 como a obra inacabada En agosto nos vemos e as duas últimas partes de suas memórias Viver para contá-la.

O arquivo é organizado em quatro grupos: Atividades literárias (1948-2009); Álbuns de fotografias e livros de recortes (1930-2011); Correspondência (1961-2013); e Documentos pessoais e profissionais (1952-2014). Soma-se a Coleção Plinio Apuleyo Mendoza sobre Gabriel García Márquez, uma grande quantidade de volumes encadernados e fitas cassetes com áudios, material em vídeo, vários disquetes, computadores e máquinas de escrever. 

Ligações a esta post:
>>> Todas as homenagens para Gabriel García Márquez quando da morte do escritor, aqui.
>>> No Tumblr do Letras algumas galerias de arquivos digitalizados pelo Harry Ransom


* este texto é uma versão livre para "El panteón tejano de los escritores", de Pablo Ximénez de Sandoval publicado no El País.


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