O músculo amargo do mundo, de Vera Lúcia de Oliveira
Por Alexandre
Bonafim
Poesia descarnada, visceral,
poesia desnuda em palavras agudas e precisas, é o que encontramos em O músculo
amargo do mundo, novo livro de Vera Lúcia de Oliveira. Assim como em obras
anteriores, podemos vislumbrar, nesse volume, uma fecunda lucidez ante a
realidade atroz do homem pós-moderno, enclausurado na solidão e em um mundo
dessacralizado, universo deserto de deuses e ética. Em seu novo livro, a escritura
da autora torna-se um canto de denúncia, um canto de resistência em tempos em
que as utopias se pretendem mortas ou quase mortas.
Poeta
sensível à condição humana no que ela tem de amargo e terrível, no que ela tem
de sensível e belo, Vera enfrenta, pelo seu lirismo cru e muitas vezes áspero,
a árdua condição mortal do homem. Todavia, para a escritora, não é somente a
morte em si um tema capital de sua escrita. Sua reflexão sobre a existência vai
além de tal temática, atingindo-a, porém, pelo cerne. Para ela, o que lhe
importa é o fenômeno humano em sua totalidade. Por isso, a vida e suas mazelas,
o cotidiano, o surgimento do próprio existir, esse mistério, e, sobretudo, a
dor, esse fardo que perfura a carne e a alma, precária nudez do homem, são os
temas centrais de seu lirismo. Daí o irromper da fome, da indigência, como
fardo de um existir sensibilíssimo ao dom da vida:
nasceu de um
fundo de fome
que lhe foi
mascando o cerne
nasceu desse
dente branco de leite
nasceu desse
morder e mascar
nasceu dessa
fome e sempre foi
comendo e
sempre foi sentindo
o dente
sentir fome – p.23
A fome, assim, ganha um estatuto
ontológico. Somos, como a filosofia e a psicologia da existência apregoam,
seres da falta, minguantes, em perpétua realização jamais acabada. Nunca
estamos prontos. Tornamo-nos, ao longo do tênue fio do existir, indivíduos em
permanente realização, imersos no tempo. Por isso a fome, como o desejo, é
entranha, cerne, nossa realidade mais crua. A fome, signo de nossa impureza,
mas também do louvor à perene busca do conhecimento, torna-se, para a autora, a
verdade vital que a impele rumo à poesia, à ação e faz dela uma escritora de
vibrante linguagem, de contundentes verdades.
Vera Lúcia de Oliveira é uma
poeta que vive, assim, seu ofício, com uma sinceridade plena, o que a torna uma
importante escritora brasileira no cenário de nossa atual literatura. Isso se
confirma, por exemplo, em outros textos:
entrou a
fome na fome
não essa de
alimento
não essa de
ser saciado
por sêmen
fome de quem
se come
pelo dentro
e só tem no
corpo
o próprio
alimento – p. 31
Esse admirável poema, lapidar,
conciso, restrito na amplidão de uma verdade impactante, mais uma vez nos faz
perceber que a escrita de Vera é, sobretudo, catártica, um salto sem medo, sem
proteção, no próprio âmago da condição humana.
No constante trabalho poético,
no ofício de tecer a trama textual, pacientemente, buscando as palavras mais
agudas, mais desafiantes, Vera coliga, pela metáfora da teia de aranha, o homo
faber, típico artesão, ao homo viator, peregrino por uma reta feita de tempo e
angústia. Assim, o poeta, como o inseto, penetra a trama (o texto) e, nesse
jogo perigoso, descobre a própria morte. Toda textualidade, conforme Maurice Blanchot,
é um pequeno rito fúnebre, a descoberta plena e nua da precariedade da
linguagem, do eu e do próprio corpo:
viu o fiapo
da teia
e na ponta o
inseto
lutando para
viver
o corpo
emaranhado
quanto mais
preso
mais se
debatia
pensou em
salvar o bicho
lidou com o
fio pegajoso
e o animal
caiu
mas não voou
já estava
dentro da morte
e não sabia
– p. 36
Para desvelar verdades tão
cruas, a autora, exímia artesã, escolhe as sonoridades duras, travadas como o
próprio ato de mastigar, conforme vimos no primeiro poema aqui citado. Dessa
forma, a expressão linguística vibra em harmonia com os significados expressos.
Estamos, assim, diante de uma poesia cuja natureza despida de grandiloquências,
de retórica aflorada, afiada na dura lição da pedra cabralina, torna-se
cortante e, paradoxalmente, bela. Uma beleza plena, pois sincera e, como toda
grande arte, fiel às verdades humanas mais essenciais.
***
Colunista do Letras in.verso e re.verso; é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (2012).
Atualmente é professor adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa da
Universidade Estadual de Goiás, unidade de Morrinhos. Tem experiência na área
de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa e Brasileira, atuando
principalmente nos seguintes seguimentos: poesia portuguesa, literatura
portuguesa, literatura brasileira, poesia brasileira.
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