O concerto interior – evocações de um poeta, de António Osório (Parte II)

Por Pedro Belo Clara



Muito naturalmente, a infância extrapola-se e a adolescência, primeiro, e a idade adulta, depois, aguardam a sua justa vez. Tais capítulos existenciais seriam para o nosso autor etapas que não se veriam desfloradas das maiores virtudes de carácter aprendidas junto de seus pais, dos quais a compaixão e a prestabilidade diante de terceiros se sobressaem como exemplo.

Os tempos de liceu também merecem destaque, pois revelaram-se o berço do encontro com os (ainda) jovens Cristovam Pavia (celebrado em poema por Ruy Belo) e Pedro Tamen, dois nomes de vulto da poesia contemporânea portuguesa. Sobre a época, em prosa escreveu (“Vozes Íntimas”, 2008):

«Na pequena roda de amigos, eu seria talvez um dos mais próximos (…). Estes encontros, que buscavam o prazer, o encanto da amizade e a beleza, (…) com a presença de Cristovam, discretamente irradiante, estes encontros constituem uma das mais gratas recordações da minha adolescência».

De igual modo, seguindo a toada central, Osório homenageia neste volume os tios António e Henrique, graças ao qual enveredou pelo caminho do Direito.

Louvadas as virtudes e recordadas as generosidades obtidas, base segura sobre a qual um homem pode afirmar plenamente a sua sincera gratidão, faz de sua tia Dulce, conhecida artisticamente por Maria Valupi, foco de atenção. Neta do pintor Miguel Ângelo Lupi (o quadro Contraluz ainda hoje se considera uma obra-prima da pintura portuguesa), revela-se aos olhos do leitor uma pessoa deveras interessante. Não só pelo amor às artes ou pela incursão através dos caminhos poéticos (publicou dois livros em francês), mas também pela fiel amizade que mantinha com Cecília Meireles, famigerada poetisa brasileira que em tão bela expressão definira a amiga portuguesa: «és uma coisa entre menina e anjo» (missiva de Novembro de 1936). Osório esforçou-se durante anos para garantir a publicação da correspondência trocada entre as duas «grandes mulheres», mas em vão.    

Efectivamente, os nomes citados são deveras numerosos, pelo que uma abordagem aos mesmos, ainda que sumária, se tornaria fastidiosa, levando este artigo para territórios que não são a sua primordial incumbência. Destacaremos, contudo, antes nos referirmos às mais directas, duas figuras femininas do princípio do século XX: a prima Rachel Bastos, cantora lírica de renome fugaz e autora de obras já algo esquecidas (apesar do enorme valor de conteúdo) entre as décadas de trinta e cinquenta, e Ana de Castro Osório, sua tia, proeminente feminista e autora de livros infantis, género cuja implementação em Portugal a crítica lhe outorga.

Sobram, portanto, os seus pais, na fase terminal desta obra recordados em elegias profundas. Sem entrarmos em definições obsoletas ou suposições infundadas, deixaremos ao leitor os poemas remanescentes. Que eles tudo digam.

Ao lado do corpo de meu Pai
chorava esta pobre carne.
E de repente chegou a tua
e minha felicidade:

A teu lado estou
sorrindo a chamar-te,
espero que regresses a casa,
ansiosamente corro para a porta.

(…)

Assim te amo agora sem lágrimas.
Que deste modo teus netos
um dia se recordem de mim,
na tua, minha e deles
pura ignorância da morte.

(“In Memoriam”, 1972)


Mãe que levei à terra
como me trouxeste no ventre,
que farei destas tuas artérias?
(…)

Mãe que levei à terra
como me acompanhaste à escola,
o que herdei de ti
além de móveis, pó, detritos
da tua e outra casas extintas?
(…)

Que fizeste do teu sangue,
como foi possível, onde estás?

(“Mãe que levei à terra”, 1978).

É um dos mais pungentes textos de Osório, como o próprio admite nesta obra, e aí se espelha o carácter essencial da sua poesia, se com a devida minúcia nele atentarmos. Não deixa assim de ser curioso o facto de como um poema, fazendo as vezes de uma elegia, consegue em seu corpo reunir os elementos essenciais das temáticas abordadas e dos estilos desenvolvidos por quem o escreveu. Ainda para mais, estando ele dedicado a uma figura tão especial para o autor quanto a sua mãe, Giuseppina, o fora. Será caso para afirmar: um poema assim tão completo e representativo de um universo pessoal é a mais justa homenagem possível ao indivíduo que em entrelinhas homenageia?

Continuando o relato da sua existência, o autor faz-nos viajar pelos tempos da fundação da revista Anteu, de 1954, que dirigiu, pelas viagens a Itália e das influências aí colhidas, do contacto com o existencialismo francês (Sartre, Camus, Beauvoir) e o encontro com os brasileiros Carlos Nejar e Mário Quintana, introduzindo sabiamente, aqui e acolá, os poemas que surgiram de tais vivências.

Como a faceta de jurista caminhou a par-e-par com a de escritor (durante a década de oitenta seria inclusive Bastonário da respectiva ordem), destacamos ainda a confissão que a respeito António Osório assinou, sempre ciente de que a parca publicação de originais literários deveu-se em muito à exigência temporal do seu outro amor – o Direito.

«Devo confessar que seria muito difícil para mim abandonar a profissão. O Direito foi sempre a minha vida. (…) A nossa [dos advogados] capacidade de dedicação é ilimitada. Prefiro que continuem em coabitação o Direito e a Poesia, que são coisas dignas de andarem lado a lado».

(Boletim da Ordem dos Advogados, 1991)

Para a parte final deste trabalho, António Osório guarda um bem precioso: seus filhos e sua esposa, entretanto falecida. Elege o próprio o poema “A Meus Filhos”, de 1972, como um dos mais belos do seu primeiro livro («A meus filhos / desejo a curva do horizonte.»), e o tristemente melancólico “A Dor que regressa”, escrito após o falecimento de sua esposa, episódio que o autor confessa tê-lo deixado «desfeito» (como naturalmente se compreenderá).

Não quero, meu Amor,
que sejas cremada.
Desejo-te a meu lado,
ampara o sofrimento.

«Não posso mais viver»,
disseste-me, e eu não
entendi, nem pude
afastar-te desse mal.

Num dia solar de Maio,
que enegreceu os olhos
dos dois, a morte
passou entre vivos e mortos.

Covas abertas
na terra espessa e dolorosa.
Não te queria aí – sai,
meu Amor, regressa.

Por diversas ocasiões, ao longo do artigo, dispôs o caro leitor da hipótese de privar de perto, caso ainda não tivesse tido tal oportunidade, com o essencial, a nível de estilo e de substância, da poesia de António Osório. Detemo-la em percepção por profundamente humana, generosa, fraterna, luminosa, exacta e minuciosa, erguida em termos de árduo labor e cuidado extremo, sem nunca perder a veia que a liga à pintura e às maiores composições do género, irrigando sobejamente a estética dos trabalhos que produz. Nesta obra, encontra-se resgatada em nome da complementaridade: vida e obra unidas e contextualizadas em páginas de índole biográfica.

É provável que alguns seguidores do autor lamentem os poucos trabalhos editados desde a década de setenta, quando se iniciou, até aos dias de hoje. Osório, de facto, edita pouco. Menos até do que será provável que escreva. Questões de disponibilidade pessoal à parte (antes frisadas), poder-se-á extrair da figura do autor o  seu carácter exigente, ao qual a maturação dos trabalhos só poderá se gratificar. Em todo o caso, O Concerto Interior, de 2012, surge como uma excelente oportunidade para todos os seguidores de Osório conhecerem, da boca do autor, a génese de alguns dos poemas mais emblemáticos, além do percurso de vida mais detalhado (com encontros, desencontros, viagens e influências em destaque) de um autor que apreciam em boa medida. Para aqueles que ainda pretendem se iniciar nas suas temáticas, ou simplesmente desconheciam o trabalho do autor, têm na obra uma utilíssima ferramenta de introdução ao universo osoriano, talhada pela mão do próprio. E não poderemos afirmar, de boamente, que oportunidades tais abundem no mundo da literatura.

«Porque será que a velha glicínia segue o ritmo das jovens roseiras, essas lindas raparigas? E porque luzem na hora certa, como as constelações? De tudo resulta um concerto interior, preenchendo a alma e tornando-a digna de voltar».

(Uma vida, Prefácio da presente obra, 2012)

Ligações a esta post:
Para ler a primeira parte do texto, clica aqui.

 ***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).

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