Meu encontro com José Saramago
Por Pedro Fernandes
Somos
muitos. E talvez aquilo de que somos feitos compreenda, então, o princípio
dessa diversidade: as opiniões que temos; a alimentação que preferimos; as
roupas que consideramos melhor nos servir; as músicas, os filmes, os livros.
Somos ideias e objetos. E por isso, os livros, quando nos tornamos um leitor
assíduo, são, muito provavelmente, a melhor matéria de nossa forma heterogênea.
Por duas razões. Uma, por sua heterogeneidade. Depois por ser objeto de ideias.
Sinceramente
não lembro – e fiz as buscas que fiz para conseguir lembrar quem disse, mas sem
sucesso – quem disse que o bom livro é aquele que nos instiga a conhecer
pessoalmente quem o escreveu. Quem disse talvez estivesse noutra posição de
ser-leitor, muito diferente da minha quando tive contato com a obra de José
Saramago. Já muito tenho contado essa história e devo, enquanto viver e sempre
que necessário, como em ocasiões dessa natureza, repeti-la. É uma história que
sempre vem numa e noutra entrevista ou mesmo numa conversa informal. Como você
conheceu a obra de José Saramago?
Ao que respondo: estava na graduação em Letras, naquele momento crucial de decidir sobre qual área
de estudos eu deveria escolher para me dedicar. Até então fora aluno dedicado a
conhecer os trâmites e o funcionamento do texto pelo que nas Letras chamamos de
Linguística Textual, mas, confesso, estava um tanto farto de modelos prontos.
Nunca um texto se revelou para mim apenas como estrutura, mas, sim, espaço que
permite ao leitor uma posição crítica sobre seu lugar no mundo; ou mesmo possibilidade
criativa sobre o lido. Deveria, portanto, com urgência, me dedicar aos estudos
literários – embora, entremos num tempo em que as más línguas de grande
parcela, inclusive de estudantes de literatura, tenha a noção da
não-necessidade de tais estudos. Uma afirmativa perigosa e que desperta outras incursões.
Mas, ao
decidir por uma área como a dos estudos literários, com qual autor me
identificaria e dedicaria, dali, como rumo acadêmico. Foi algum tempo de muitas
peregrinações a bibliotecas para encontrar, na última parte de uma estante no
fim de todas as estantes de obras literárias, a coluna de um livro onde se lia O evangelho segundo Jesus Cristo – José
Saramago. Obra do acaso como aqueles acasos costumeiros nos vários romances do
escritor português. E comecei a ler o livro ali mesmo entre as estantes para
entender quase nada sobre o que tinha nas mãos. Tomei o livro emprestado e devo
ter lido as primeiras páginas umas quatro, cinco vezes até conseguir, como
criança que dá o primeiro passo, aprumar-me no texto e conseguir dar forma a um
novo leitor. Cada obra pede um leitor, nas de Saramago, o leitor é quase sempre
o mesmo. Isso significa dizer que desarnou num dos romances, conseguirá
encantar-se rápido com os demais, até andar por eles com a mesma facilidade com que andamos nos textos cuja estrutura é mais simples. É como andar de bicicleta; tomba-se muito no início, mas depois, torna-se numa coisa tão prazerosa que, mesmo sem necessidade às vezes, queremos ficar pedalando tardes inteiras.
Entre perdas
de prumo e retornos findei o livro já decidido, muito provavelmente desde às
primeiras páginas, a estudar a obra de Saramago. E por uma razão muito simples:
estava diante de uma obra que me desafiava o pensamento e a capacidade de me
relacionar com o texto narrativo. Tenho afeição rápida a textos que me desafiam
porque parecem não subestimar a capacidade do leitor. Sim, é verdade que outros
nomes já haviam proporcionado isso; o Grande
sertão: veredas, por exemplo. Mas, houve com Saramago, um impulso afetivo
desde as primeiras linhas do primeiro romance lido.
Agora, quem
era Saramago? Confesso nunca ter, de imediato, essa curiosidade desenfreada por
saber quem era o autor porque quem me pegou pelo braço e convidou-me a entrar no seu texto foi o próprio texto; até ali não tinha noção onde está a obra está o autor – repetindo uma forma desenvolvida pelo próprio escritor português. Até ali, o breve resumo biográfico lido às pressas no fim do
livro já me era suficiente. Queria mesmo era saber que outros livros ele havia
escrito. E voltei aO evangelho mais
vezes; uma de minhas primeiras aventuras a escrever um texto de natureza
acadêmica foi a leitura sobre a construção da personagem nesse romance. E precisou
de uma quantidade generosa de livros – O
conto da ilha desconhecida, Ensaio
sobre a lucidez, Ensaio sobre a
cegueira, O homem duplicado – para
me dedicar a fazer o que todos hoje fazem quando quer descobrir outra pessoa:
ir à rede mundial de computadores. Aí vou descobrindo o Saramago interventor,
suas opiniões sobre muitos temas, sua vida, de onde veio, como se tornou o
escritor que se tornou; e se confirmava, então, no que descobria, o alargamento
de minha simpatia ou afeto pela figura.
Mas, por
ingenuidade, respeito, distanciamento ou mesmo qualquer ausência do espírito tiete nunca me despertou a curiosidade de
conhecer pessoalmente José Saramago. Talvez eu ainda estivesse muito ligado a
certo espírito acadêmico que traz um respeito quase santificado pelo autor e
este é uma entidade pouco dada ao convívio com seus leitores. Embora, com
Saramago, desde o princípio, tenha tido a consciência plena, seja por tudo que
eu lera da obra e sobre ele, que estava diante de uma obra e de uma pessoa rara
no mundo e, claro, alguém que não era peça de altar ou de difícil acesso pessoal. E isso, claro está, se afasta, por completo do respeito santificado
para se mostrar como incompatibilidade entre autor e leitor de experiências sobre o mundo. Recordo do encontro envergonhado de estudantes numa cena de José e Pilar e me vejo na mesma pele daqueles personagens; o que eu, ingenuamente, conversaria com Saramago?
Também não
posso dizer que a vontade por conhecê-lo nunca tenha se manifestado.
Tardiamente, mas se manifestou. Tardiamente ou na hora certa? Fico com a segunda opção: na hora certa. Na
hora certa se manifestou. Já então havia sido criada a Fundação que leva seu
nome, e com acesso à internet mais constante, tinha contato direto com esse
mundo de afazeres do escritor. Depois veio a escrita diária de um blog, cuja
assiduidade de leitura mantive até a última postagem. E foi nesse exato momento
que me veio a necessidade de conhecer Saramago. Esteve no Brasil para
apresentação de A viagem do elefante
e enchi-me de interesse por ir vê-lo. Talvez nunca me aproximasse. Mas o veria
pessoalmente e já seria o suficiente. As condições financeiras, entretanto, ainda eram
outras. Eram tempos difíceis e tudo ficou na vontade. Depois, com as recaídas de saúde, veio-me
quase a certeza de nunca puder vê-lo; dormiu em mim a vontade. Era-me suficiente a
companhia dos livros e talvez já me desse conta, imaginariamente, que neles estava José. Era-me suficiente ler suas opiniões sobre toda a sorte de
questões.
Toda essa
história passada para o papel agora não tem servido apenas para responder a
pergunta “Como você conheceu a obra de Saramago?” Já rodou como um filme todas
as vezes quando estive em contato com a morte de Saramago; quando estive a
caminho para encontrar-me com Pilar del Río; a caminho de Portugal; depois a
caminho da Casa dos Bicos, atual sede da Fundação e, claro, antes de contada,
em todas essas ocasiões essa história foi repassada mentalmente com uma
quantidade sem fim de variantes.
Diante da
oliveira onde está depositada a certeza de que não subiu para o céu se à terra
pertencia não tive outra reação se não a de um profundo abraço com Saramago.
Foi o primeiro lugar onde fui quando cheguei à Lisboa. Não poderia ir a nenhum
outro. Talvez pelo tempo adormecido da vontade de um encontro pessoal, tinha
uma urgência, como se o escritor estivesse todo esse tempo à minha espera e eu
não poderia mais tardar. Estive, no segundo dia de visita sentado ao lado da
oliveira quase centenária trazida de Azinhaga: na ocasião, tinha passado por
uma poda costumeira e trazia no tronco flores tão vivas. A oliveira veio da
aldeia de onde veio Saramago; de Lanzarote, onde viveu o escritor grande parte
de sua vida, a terra que alimenta; do Memorial
do convento, “Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia”. Aí estão
as cinzas do escritor depositadas pelas mãos de seu maior amor, Pilar, quem marcou, como reiteradas vezes disse o próprio Saramago, um antes e um depois na
sua vida.
Sempre achei
que esse encontro nesse cenário me deixaria debulhado em lágrimas. Mas não. Ali foi um encontro de gratidão. Para agradecer pelo que Saramago fez indiretamente por mim, sem nunca saber que eu existi. Era um encontro entre leitor apaixonado e escritor. As
lágrimas vieram depois como se ainda as últimas peças guardadas de quando
chorei sua morte. Estava já diante da quantidade de materiais a que tem acesso os
visitantes da Fundação na exposição permanente dedicada a seu nome: “A semente
e os frutos”, projetada por Fernando Gómez Aguilera. Exposição que traz ao
leitor as várias faces de Saramago alinhadas com o afeto e a dedicação de um
curador. Afeto do curador que é somado às outras doses de afeto deixadas pelos
leitores toda vez que visitam-na. Aí estão as origens do escritor, as recordações
dos avós que como leitor aprendi a amar e respeitar como se também figuras de
minha estima – Jerónimo e Josefa –, embriões de textos, materiais de estudo e
preparação dos romances, os manuscritos e datiloscritos de romances, os livros
escritos, o que já disseram deles, as traduções que fez, fotografias, trechos
de obras, recortes de jornais, objetos do escritor, a reconstituição de seu
primeiro gabinete de trabalho... É um lugar para ver e reparar, traçar entre as
sementes e os frutos, o homem que foi Saramago.
Não apenas
pela quantidade de afazeres a que me dediquei na breve estadia em Lisboa, todos
os dias estive em visita à Fundação. Era meu encontro diário com o escritor.
Conhecer de perto a memória da instituição: os livros, as ações, amigos de um
círculo mais próximo ao escritor, gente que o conheceu e conviveu pessoalmente,
reencontrar a Pilar no caloroso e terno abraço como se ali estivesse
concretizando-se o abraço que recebera de Saramago na ocasião em que me
encontrei diante da oliveira. Tudo foram gestos simples, mas tão
significativos, porque talvez sejam estes, também o elemento mais significativo
com os quais nossos eus se amalgamam.
Refirmei a visão
que uma vez me levou a escrever por aqui, Pilar é força motriz empenhada em
tornar essa existência no mundo menos escusa. Isso precisa ser repetido sempre não como gesto de reconhecimento apenas, mas como exemplo para outros que são tocados pelo desânimo a desistir de apostar na arte como elemento de subsistência do homem. Tem uma dedicação de extremado
zelo, de quem está no mundo não para ser mais um indivíduo. Nisso, sua
personalidade se confunde com a do companheiro Saramago. Seu empenho está em grande parte refletido na
organização e no trabalho desenvolvido pela instituição que representa; serve
de forma para o mundo e, repito, para os já
cansados a repetir e repetir o gesto de sobreviver; a confirmar que, sim,
necessitamos, para não perecer, da arte. Que a cultura é nosso maior patrimônio
– aquilo que, como a água é essencial ao funcionamento do organismo, é
essencial ao nosso espírito, ao humano que somos. Como instituto ativo, não vi
na Fundação o triste papel desempenhado por outras instituições do gênero,
apenas a de ser lúmen ou fachada para que não pereça a memória de quem representa. Não. A
Fundação mantém viva a memória e o legado intelectual de José Saramago; é já parte
fundamental na memória cultural portuguesa, a ponto de ser, não somente centro
de interesse a leitores assíduos da obra saramaguiana, mas lugar de necessária visita
a todo viajante.
A Casa dos
Bicos tem na natureza de sua construção já as bases de uma obra de arte e seu
interior sempre se confundirá, pela forma labiríntica, com certos espaços da
própria obra de José Saramago. Dificilmente, quando foi construída, em 1523, se
imaginaria que num futuro tão depois se tornaria um lugar de promoção à vida.
Pelos registros históricos, quem projetou erguer o edifício muito próximo ao Rio
Tejo, foi Brás de Albuquerque, filho do vice-rei da Índia, após uma viagem a
Ferrara, na Itália, depois de se apaixonar pelo Palácio dos Diamantes. Com tanta
história por contar, o espaço já foi de tudo: desde a tentativa não alcançada de
uma fachada de diamantes, porque se a gente simples no seu tempo viu apenas bicos
os visitantes de hoje, talvez já levados pelo nome, não enxergarão os tais
diamantes de Brás de Albuquerque, a armazém de bacalhau quando a casa teve grande parte destruída no terremoto de 1755. Só anos mais tarde foi reconstruída.
E muito antes, mesmo de ser a Casa dos Bicos, passava pelo local a muralha
pertencente à cerca moura, que foi destruída para sua construção. Antes da
grande reforma na década de oitenta, as escavações revelaram os vestígios desse
passado até hoje preservado no piso térreo como núcleo arqueológico sobre a
história de Lisboa.
Agora volto
a heterogeneidade nossa para dizer que nós também somos as viagens que fazemos.
Quantas não terão sido as que construí pela memória de estar na Fundação;
grande parte delas nunca poderão sair para passear num papel como este, mas,
ficaram, certamente, como peças significativas entre o que eu era antes da
viagem e aquilo que me tornei depois dela.
Comentários
Chorei debaixo da oliveira, chorei vendo sua escrita original...
Lindo teu texto .Obrigada.