Alegorias dramáticas do herói romântico (Parte 2)
Por Leonardo de Magalhaens
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O Eu-lírico
é um ser feito de contemplação – diante da Roma manchada de sangue, respingado
sobre colunas, colunatas, arcos do triunfo, arenas, onde morriam os escravos, os
gladiadores, os mártires cristãos – numa perspectiva em que a História é um
processo de vitórias e derrotas, alternadas e em série, e repetidos,
There is the moral of all human tales:
'Tis but the same rehearsal of the past,
First Freedom, and then Glory--when that fails,
Wealth, vice, corruption--barbarism at last.
And History, with all her volumes vast,
Hath but ONE page,
(“Eis a moral de todos os relatos humanos; / É nada além do mesmo ensaio do
passado, / Primeiro Liberdade e então Glória – quando aquela falha, / Riqueza,
vício, corrupção, - enfim, barbárie. / E a História, com seus volumes vastos, /
Tem nada além de UMA página, [...]” CVIII)
São as obras
humanas que se esforçam para resistir ao Tempo – que sobra na peneiragem dos
tempos torna-se, então, obra clássica.
O Tempo é tanto cicatrizador (healer)
quanto vingador (avenger), é efêmero
e eterniza os ecos do passado – ruínas, montes de pedras de uma Glória perdida.
É nesse sentimento de finitude que o Romantismo encontra o Barroco – assim como
Shakespeare encontra Calderón na temática da efemeridade (“a vida é sonho”) –
para ressaltarem o carpe diem –
o gozar o dia, antes que a vida acabe.
O que faz compreender a meditação romântica sobre a fragilidade do Existir. Mas,
numa metafísica de base religiosa, mais do que filosófica (o que somente o
Existencialismo faria após Schopenhauer, Nietzsche, Sartre), o que leva o homem
a indagar sobre a vida enquanto penitência, o castigo advindo do pecado, a
perdição ou a redenção.
Esta temática está nos dramas filosóficos
de Byron – Manfred e Cain – que dialogam com a tradição
de Dante, Shakespeare e Goethe – a Literatura a desejar abarcar o mundo – onde
o Poeta destila os ensinamentos puritanos da cultura inglesa da época, em
contraponto com a própria vida de luxúria. Esta contradição leva ao auto-martírio.
No drama Manfred temos o anti-Fausto,
pois ao contrário de Fausto (que deseja saber tudo), Manfred deseja esquecer
seu passado de sofrer. Esta presença da consciência (e opressão da consciência)
é sinalizada na epígrafe, tirada da peça shakespeariana Hamlet, “Há mais coisas no céu e terra, Horácio, / Que aquelas
sonhadas em sua filosofia.” (“There are more things in heaven and earth,
Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy.” )
Temos um cenário na Europa Central, nos altos Alpes (aliás, o autor estava na
Suíça, em 1816), onde o frio adentra o coração do protagonista. Para Manfred, saber é sofrer e a punição é conhecer a
verdade, degustar da Árvore do Conhecimento (Tree of Knowledge), pois a
filosofia e a Ciência tornam-se tortura.
Igual a Fausto, aqui Manfred é um mago a invocar Espíritos, que são Agentes da
Natureza, forças elementares, o ar, as
montanhas, as águas, forças da terra, os ventos, as estrelas. Aos Espíritos,
Manfred suplica por esquecimento (forgetfulness, oblivion), e estes respondem
com um poema dentro do poema, um
Encantamento (Incantation), em sete estrofes de dez versos, com força
expressiva e riqueza lírica, as vozes espectrais condenam o mago,
Though thy slumber may be deep,
Yet thy spirit shall not sleep;
(“Apesar de teu sono ser profundo, / Ainda assim teu espírito não deve
dormir;”)
É impossível aos Espíritos fazerem com que o Esquecer desça sobre Manfred, condenado
a carregar seu passdo, “Compelimos-te / Ti mesmo a ser teu próprio inferno!” (“I
call upon thee! and compel / Thyself to be thy proper Hell!”)
Por que? Devido a rebeldia de Manfred, que faz com que ele seja da irmandade de
Cain ('brotherhood of Cain') – outro protagonista importante para o Poeta.
Então Manfred vai tentar se matar, vai pular do alto da escarpa na montanha –
mas é salvo por um caçador,
Manfred:
Adeus, ó céus abertos!
Não olhem reprovadores sobre mim -
Não vos destinais a mim- Terra!
receba estes átomos!
Caçador:
Espere, louco! - apesar de cansado
de tua vida,
Não manche nossos vales puros com o
teu sangue culpado.
Venha comigo – não vou te soltar.
[Manfred]
-Farewell, ye opening heavens!
Look not upon me thus reproachfully--
Ye were not meant for me-- Earth! take these atoms!
[Chamois Hunter]
Hold, madman!-- though aweary of thy life,
Stain not our pure vales with thy guilty blood!
Away with me-- I will not quit my hold.
Mas – com ou sem caçador para salvá-lo – Manfred não pode morrer. É tal um
vampiro a carregar a culpa de seu passado, pois não vai esquecê-lo. Sabemos do
drama quando Manfred descreve sua aflição ao corajoso caçador. Os remorsos de
Manfred fazem com que o fardo do tempo seja redobrado. As lembranças pesam –
algo de muito cruel e trágico é o que este homem presenciou ou praticou!
Contudo, Manfred somente revelará seus infortúnios que sobrecarregam o seu
passado quando, ao prosseguir suas andanças, ele encontrará (ou invocará) a
Bruxa dos Alpes. Diante da Aparição ele o abre o coração – ao pedir não
poderes, mas o mesmo, e sabe que em vão, o alívio da tortura da lembrança.
A confissão de Manfred lembra a daquele poema “Alone” de Edgar Allan Poe
(escrito trinta anos depois) com a personagem sempre mergulhada em solidão.
[... ] From my youth upwards
My spirit walk'd not with the souls of men,
Nor look'd upon the earth with human eyes;
The thirst of their ambition was not mine;
The aim of their existence was not mine;
My joys, my griefs, my passions, and my powers,
Made me a stranger; [...]
(“Desde a minha juventude / Meu espírito não seguiu com os demais, / Nem olhou sobre
a terra com olhos humanos; / A sede de ambição deles não era a minha, / O
propósito das existências deles não era o meu; / Minhas alegrias, aflições, paixões,
potências / Fizeram-me um estranho;” LdeM)
O jovem
Manfred preferia a Natureza, as altas montanhas, os rios. Ou seja, a vida
bucólica. Depois, a vida de estudos, a busca do conhecimento (aqui a clara
semelhança com Fausto). Até que aparece a mulher amada – bela, suave,
igualmente a buscar conhecimentos – mas o amor não traz benefícios, ao
contrário, o amor acaba por destruir a amada. Sem humildade para aceitar as
próprias falhas, o amor dele abafa o amor dela. E a solidão agora nem é a
solidão – mas íntima companhia com a Fúrias – todo o saber é inútil diante do
remorso, do desespero.
A Bruxa resolve ajudar o Mago, mas ela exige a mais rigorosa obediência. O
Rebelde não é submisso, sua decisão é Non
serviam (não servir). As cenas III e IV são povoadas de espíritos e
entidades na antecâmara do Gênio do Mal Arimã. Os espíritos reverenciam o Gênio
do Mal, quando Manfred se aproxima, mas não se ajoelha. Manfred deseja a
invocação do Espectro da Amada – chamada Astarte [nome de deidade semita]. O
cenário é de fantasmagoria e alegoria, onde o efeito vale mais que o bom senso.
(Partes do Fausto I e II, de Goethe, têm igualmente exageros
de fantasmagoria)
No entanto, o espectro de Astarte conserva-se em silêncio, enquanto Manfred se
entrega a uma crise de masoquismo, torturando-se. Mas a fantasmagórica Amada,
esvanecendo-se, diz que no dia seguinte finda-se a vida terrestre do
atormentado, “Manfred! Amanhã finda tuas aflições terrestres. Adeus!” E ele não
sabe se foi perdoado...
No Ato III, Manfred encara o fim iminente, a tragédia anunciada. Há uma calma inexplicável – onde toda filosofia
é inútil. Mas aparece uma visita: um Abade. O religioso preocupa-se com a salvação da alma do angustiado nobre.
Boatos correm sobre as feitiçarias do mago. Manfred não se submete aos
'consolos' religiosos. Por mais que o Abade insista.
Há uma cena patética ao estilo do final do Fausto II – ainda nem publicado, o que ocorreu após a morte de
Goethe em 1832 – em que as forças do Bem e as forças do Mal disputam a alma do filho da terra. É onde a força alegórica do Barroco invade a
exaltação romântica. E Manfred morre finalmente – acompanhado pelo desolado
abade.
© Paolo Guidotti Cain e Abel 1610 |
Estas
temáticas barrocas – isto é, religiosas, - estão presentes ainda mais
radicalmente em Cain, onde o mito
bíblico (de origem semita) é relido com uma audácia de herege. Trata-se de um
poema dramático, em três Atos, datado de 1821, e dedicado a Sir Walter
Scott.
Voltamos ao cenário do Gênese, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso
(jardim do Éden). Agora o primeiro casal constituiu família. Seus filhos Caim,
Abel, Ada, Zila oferecem igualmente sacrifício ao Criador. Todos fazem suas
preces bajuladoras – exceto Caim. “Por que eu deveria falar?” Caim nada tem a
pedir, e nada a agradecer.
Adão: Mas não vives?
Caim: Não devo morrer?
Caim pensa que se os pais comeram do fruto da Árvore do conhecimento (do bem e
do Mal) deviam ter comido também o da Árvore da Vida. Para Adão, isto é
blasfêmia!
Adão: Ó meu filho, / Não blasfeme: estas são as palavras da serpente.
Mas para Caim, a serpente disse apenas a verdade, pois “conhecimento é bom, e
vida é boa; como podem ser maus?”
Eva reconhece as próprias palavras na fala do filho Caim. Ela se arrependeu –
mas teme que o filho repita o pecado. Caim aqui é um livre-pensador. Duvida, ironiza,
polemiza. Não segue a moral de rebanho.
Caim prefere a solidão – nem sua irmã Ada é companhia desejável. (Aqui uma
névoa de incesto: com que os filhos de Adão e Eva se casam? Com as irmãs...)
Abel aqui é o mais carola de todos –
o mais beato.
Caim não aceita que o pecado dos pais seja transmitido aos filhos.
What had I done in this?—I was unborn: I sought not to be born; nor love the
state To which that birth has brought me. Why did he Yield to the Serpent and the
woman? or Yielding—why suffer?
(“Que tenho a ver com isso? Nem nascera: / Nem pedi p'ra nascer; nem amo a
condição / A qual o nascer me trouxe. Por que ele [Adão] / Se rendeu à serpente
e a mulher? Ou / Rendendo-se, por que sofrer?” (Ato I, Cena I)
Vamos abordar aqui o mito hebraico do Jardim do Éden em relação com a mitologia
grega (Caim é uma espécie de Prometeu a desafiar os Deuses)
Enquanto Caim pensa, outra personagem adentra (e atenta). É o anjo decaído, o
próprio Lúcifer – que aqui parece mais Iago tentando o pobre Othelo. E – numa
certa leitura – Lúcifer não é Satanás. Expliquemos.
Para os Luciferianos, o anjo Lúcifer é tal qual um Prometeu, que vem trazer Luz
e Liberdade aos Homens – não é, portanto, inimigo dos Homens, tal qual o
Satanás da Bíblia – e de John Milton, em Paraíso
Perdido (Paradise Lost, 1667
). Lúcifer, então, era o 'bom', enquanto Deus era o Tirano, o caprichoso
Criador que condena a Humanidade e afoga as criaturas, e bombardeia as cidades
(vide Sodoma e Gomorra...)
Para o Satanista, o anjo mau, Satanás, não é mais Lúcifer. Satanás odeia Deus,
e as criaturas de Deus, os Homens, inclusive. Assim, adorar Satanás é adorar o
Mal pelo próprio mal. Um Satanista é um adorador do próprio inimigo? Assim, de
certa forma, o Satanismo é ainda baseado no Cristianismo. Enquanto o
Luciferianismo é mais complexo, filosófico. Tem raízes cabalísticas e
gnósticas. Assim como Prometeu desafiou Zeus, ao dar o fogo aos Homens –
Lúcifer desafia Javé, ao tentar a Mulher para cobiçar a Consciência (do Bem e
do Mal).
Pois bem, aqui Lúcifer pode conhecer os pensamentos (em outra tradição, o anjo
decaído não pode ler os pensamentos, por isso muitos cristãos preferem não orar
em voz alta, resguardando-se em oração silenciosa...) Para Lúcifer, os
pensamentos são provenientes da parte
imortal – assim, os argumentos do Anjo, agora Demônio, são para atrair a
confiança do Humano, que logo aceita ter algo de imortal – não apenas tentar,
mas revelar. (Interessante este
aspecto no Satã Settembrini, o pedagogo
que tenta Hans Castorp, em A Montanha Mágica, 1924, de Thomas Mann)
Lúcifer não fala em morte, mas que
Caim deve viver. Viver além, em
espírito. Não exatamente feliz, mas eterno. Quem é Lúcifer? Ele mesmo diz,
“Alguém que desejou ser o que te fez, e / Que não teria te feito o que tu és.”
(“One who aspired to be what made thee, and /Would not have made thee what thou
art.”)
Mas o Demônio resigna-se com a vitória do Criador, “Ele venceu; deixe-O
reinar!” (“He conquer'd; let him reign!”) Aqui a Rebeldia – e a Liberdade – é
coisa do diabo! Nada mais cristão, claro! Afinal, o Cristianismo prega a
obediência e a resignação. Assim, ser livre (igual ao Sr. Settembrini, na obra
de T. Mann) é ofensa à fé. (E não admira que muitos Iluministas tenham sido
'Luciferianos' quando da luta liberal contra a Monarquia Absolutista e contra o
Clero, entre os séculos 18 e 19)
O Demônio é assim porque foi um espírito
que ousou encarar o Criador. Diz Lúcifer, “Almas que ousaram usar a
imortalidade – / Almas que ousaram olhar o tirano Onipotente / em Sua face
eterna, e dizer-lhe que / O Seu Mal não é bom;” (“Souls who dare use their
immortality— / Souls who dare look the Omnipotent tyrant in / His everlasting
face, and tell him that / His evil is not good!”)
Como pode surgir o Mal no domínio do Bem? Como um Ser perfeito pode permitir a
imperfeição? Deus é um Criador todo-poderoso e infeliz, “Deixe-o sentar-se em
seu vasto e solitário trono, / criando mundos, a fazer a eternidade / menos
pesada à Sua imensa existência / e imparticipada solidão; / Deixe-o povoar orbe
após orbe: ele está sozinho. / Indefinido, indissolúvel tirano;”
(“But let him / Sit on his vast and solitary throne — / Creating worlds, to make
eternity / Less burthensome to his immense existence / And unparticipated
solitude; / Let him crowd orb on orb: he is alone / Indefinite, Indissoluble
Tyrant;”)
Assim, Anjos (ou Demônios) e Humanos se assemelham na parte espiritual: Anjos
só Espíritos, enquanto Humanos são Espíritos dentro de Corpos feitos de barro,
e que voltarão ao barro.
Antes Caim não encontrara alguém que conversasse francamente com ele – alguém
que simpatizasse com suas dúvidas e angústias. Lúcifer prefere conversar do que
tentar – como ele fez no papel de
serpente, ao aproximar-se de Eva, no Paraíso, “eu não tento alguém, / Exceto
com a verdade: não era a árvore, a árvore / Do Conhecimento? E não era a árvore
da Vida / Ainda frutífera?” (“I tempt none, / Save with the truth: was not the
Tree, the Tree / Of Knowledge? and was not the Tree of Life / Still fruitful?”)
Claro que há muita Teologia neste drama em versos. Muito fatalismo, calvinismo,
livre-arbítrio, condenação eterna. E não há assunto mais entediante do que
Metafísica – e nada mais metafísico que a Teologia. (Como se fosse possível às
Criaturas estudar o Criador, ou o
imperfeito teorizar sobre o Perfeito!
É muita imaginação ou muita pretensão!)
Em resumo: por que Caim mata o irmão Abel? No diálogo com Lúcifer, aquelas
ideias mais recônditas – e heréticas! – de Caim são reveladas. “Pensamentos
inexpressados / povoam a arder em meu peito” (“Thoughts unspeakable crowd in my
breast to burning;”) Parece ser a consciência de que Deus é tanto Criador
quanto Destruidor
Lúcifer: O Criador – chame-o
Com o nome que desejares: ele cria, porém
para destruir.
A imortalidade é um atrativo para Caim – que teme a Morte. É um atrativo para
as ovelhas dos religiosos. A vida eterna enquanto um consolo. (Para outros, é justamente o
contrário: a Morte é o consolo. Nada de Céu, ou Inferno, ou Deus, ou
Julgamento; mas tão-somente a Noite eterna, o Nada.) Já o tal Lúcifer nada sabe
sobre a morte, “Como eu não conheço a morte, / Não posso responder.” (“As I
know not death, / I cannot answer.”) Para Caim, temer a morte é “temer o que eu
não conheço” (“fear I know not what!”)
Tendo atraído Caim, agora Lúcifer quer ser adorado (“Deves inclinar-te e
adorar-me – teu Senhor”) Mas se Caim não reverenciou o Deus Todo-Poderoso, por
que deveria se ajoelhar perante um anjo Decaído? Mas Lúcifer admira este Humano
que não reverencia a outros. Afinal , é um fiel da máxima non serviam. Um Rebelde não adora nem Deus nem diabo. “És meu
adorador: não adorando-O / és meu do mesmo jeito.” (“Thou art my worshipper:
not worshipping / Him makes thee mine the same.”)
Ou seja, se o sujeito não acende uma vela para Deus, está torcendo para o
diabo. Tudo o que o padre esbraveja na igreja, “Quem não está junto de Deus,
está nas garras do diabo!” Caim precisa escolher entre seguir Lúcifer ou se
reunir aos irmãos para o próximo sacrifício. Lúcifer trata logo de separar Caim
e sua amada irmã Ada, sempre desconfiada diante do Anjo de Luz, que insiste que
a serpente traiu a mulher, Eva, com a Verdade: o fruto traz conhecimento,
consciência. E a consciência traz o sofrer.
O Autor seguramente 'toma liberdades' com o texto bíblico, ao introduzir esta
paixão entre irmão e irmã – traços biográficos (?), é de se perguntar. Mas
trata-se de uma alegoria, e o mito religioso sofre uma apropriação autoral – e os Românticos não primavam pelos
Cânones, mas pela originalidade, pela re-criação do que era considerado
clássico.
O tal Lúcifer não hesita em apontar que o que agora não é pecado – o amor entre
irmãos – em breve será – trata-se do 'tabu do incesto', no sentido de desviar o impulso
sexual para fora da família e/ou do clã. Ada não entende um pecado que não
seja pecado em si mesmo. Como pode
algo hoje ser 'certo' e amanhã ser 'errado'. Pecado é pecado, e virtude é
virtude. (É que a Humanidade ainda não tinha inventado a História, e a História
não era objeto do Historicismo...)
Semelhantes alegorias percebemos no romance O
Fauno de Mármore do autor norte-americano Hawthorne, onde o mito da Queda
do Homem é encenado, onde o pecado pode unir os cúmplices numa paixão,
onde a virtude não aceita a coexistência
pacífica com o Pecado.
Ao identificar a Onipotência com a tirania, e a adoração com a bajulação,
Lúcifer acaba por embaralhar os valores – algo de iconoclasta aqui! – o que
ofende a humana Ada, sempre virtuosa (“Onipotência deve ser completa bondade”,
“Omnipotence / Must be all goodness”) e que o tal Anjo de Luz não é exatamente abençoado. Ao que o tal responde, “Se
ser abençoado / consiste em ser escravo – não”, onde o argumento é basicamente:
ser abençoado é ser cooptado pela
Tirania.
A perda dos laços de identificação com a família, e os laços amorosos com a
irmã-esposa Ada, enfim, a revelação da completa solidão – ter consciência,
saber é não criar laço afetivo. Saber é não amar. Quem tudo sabe há-de amar os
ignorantes? (E lembramos o insulto do Cristo crucificado: “Perdoai-vos, pois
não sabem o que fazem” (!)) Caim não escolhe o amor – e segue o Anjo Decaído.
(Para Ada, a solidão é até pecado. Não se pode ser feliz ao viver sozinho. Ada é
o tipo boa mãe de família...)
No Ato II, uma viagem astral – outros mundos, outras alegorias. Eis aqui
um Byron metafísico. Vários mundos, vários pecados, várias redenções, várias
condenações... O desejo do Poeta é transformar o mito hebraico numa verdadeira
tragédia grega – e quase conseguiu. Vide o final do Ato III.
O final é aquele que todos conhecemos. O Anjo Decaído não veio melhorar o
drama, e sim acelerar o desenlace. O Rebelde Caim torna-se o primeiro homicida
– ao golpear violentamente o irmão Abel, junto aos altares de sacrifício. (Caim:
Teu Deus adora sangue!) E o sacrificado será o próprio Abel. Consequência que
Caim nem mesmo previra – ele se encontra responsável diante da primeira morte,
e morte violenta.
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* Leonardo de Magalhaens (Leonardo Magalhães Barbosa), crítico literário, escritor, tradutor, escreve e traduz desde os 15 anos. Tem 3 volumes de poemas e 3 volumes de contos, todos inéditos, além de dedicar-se a um ciclo de romances em seus columes. Divulga sua contribuição ensaística de crítica literária, especializando-se em autores vivos, demasiadamente vivos. Belorizontino, atualmente estuda Letras na FALE/UFMG, com ênfase em literatura brasileira. Escreve aqui e aqui.
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