Alegorias dramáticas do herói romântico (Parte 2)

Por Leonardo de Magalhaens

© John Martin. Manfred e a bruxa Alpine. 1837.

O Eu-lírico é um ser feito de contemplação – diante da Roma manchada de sangue, respingado sobre colunas, colunatas, arcos do triunfo, arenas, onde morriam os escravos, os gladiadores, os mártires cristãos – numa perspectiva em que a História é um processo de vitórias e derrotas, alternadas e em série, e repetidos,

There is the moral of all human tales:
'Tis but the same rehearsal of the past,
First Freedom, and then Glory--when that fails,
Wealth, vice, corruption--barbarism at last.
And History, with all her volumes vast,
Hath but ONE page,

(“Eis a moral de todos os relatos humanos; / É nada além do mesmo ensaio do passado, / Primeiro Liberdade e então Glória – quando aquela falha, / Riqueza, vício, corrupção, - enfim, barbárie. / E a História, com seus volumes vastos, / Tem nada além de UMA página, [...]” CVIII)

São as obras humanas que se esforçam para resistir ao Tempo – que sobra na peneiragem dos tempos torna-se, então, obra clássica. O Tempo é tanto cicatrizador (healer) quanto vingador (avenger), é efêmero e eterniza os ecos do passado – ruínas, montes de pedras de uma Glória perdida.

É nesse sentimento de finitude que o Romantismo encontra o Barroco – assim como Shakespeare encontra Calderón na temática da efemeridade (“a vida é sonho”) – para ressaltarem o carpe diem – o gozar o dia, antes que a vida acabe.

O que faz compreender a meditação romântica sobre a fragilidade do Existir. Mas, numa metafísica de base religiosa, mais do que filosófica (o que somente o Existencialismo faria após Schopenhauer, Nietzsche, Sartre), o que leva o homem a indagar sobre a vida enquanto penitência, o castigo advindo do pecado, a perdição ou a redenção.

Esta temática está nos dramas filosóficos de Byron – Manfred e Cain – que dialogam com a tradição de Dante, Shakespeare e Goethe – a Literatura a desejar abarcar o mundo – onde o Poeta destila os ensinamentos puritanos da cultura inglesa da época, em contraponto com a própria vida de luxúria. Esta contradição leva ao auto-martírio.

No drama Manfred temos o anti-Fausto, pois ao contrário de Fausto (que deseja saber tudo), Manfred deseja esquecer seu passado de sofrer. Esta presença da consciência (e opressão da consciência) é sinalizada na epígrafe, tirada da peça shakespeariana Hamlet, “Há mais coisas no céu e terra, Horácio, / Que aquelas sonhadas em sua filosofia.” (“There are more things in heaven and earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy.” )

Temos um cenário na Europa Central, nos altos Alpes (aliás, o autor estava na Suíça, em 1816), onde o frio adentra o coração do protagonista. Para Manfred, saber é sofrer e a punição é conhecer a verdade, degustar da Árvore do Conhecimento (Tree of Knowledge), pois a filosofia e a Ciência tornam-se tortura.

Igual a Fausto, aqui Manfred é um mago a invocar Espíritos, que são Agentes da Natureza, forças elementares, o ar, as montanhas, as águas, forças da terra, os ventos, as estrelas. Aos Espíritos, Manfred suplica por esquecimento (forgetfulness, oblivion), e estes respondem com um poema dentro do poema, um Encantamento (Incantation), em sete estrofes de dez versos, com força expressiva e riqueza lírica, as vozes espectrais condenam o mago,

Though thy slumber may be deep,

Yet thy spirit shall not sleep;

(“Apesar de teu sono ser profundo, / Ainda assim teu espírito não deve dormir;”)

É impossível aos Espíritos fazerem com que o Esquecer desça sobre Manfred, condenado a carregar seu passdo, “Compelimos-te / Ti mesmo a ser teu próprio inferno!” (“I call upon thee! and compel / Thyself to be thy proper Hell!”)

Por que? Devido a rebeldia de Manfred, que faz com que ele seja da irmandade de Cain ('brotherhood of Cain') – outro protagonista importante para o Poeta. Então Manfred vai tentar se matar, vai pular do alto da escarpa na montanha – mas é salvo por um caçador,

Manfred:

Adeus, ó céus abertos!
Não olhem reprovadores sobre mim -
Não vos destinais a mim- Terra!
receba estes átomos!

Caçador:

Espere, louco! - apesar de cansado
de tua vida,
Não manche nossos vales puros com o
teu sangue culpado.
Venha comigo – não vou te soltar.

[Manfred]

-Farewell, ye opening heavens!
Look not upon me thus reproachfully--
Ye were not meant for me-- Earth! take these atoms!
[Chamois Hunter]
Hold, madman!-- though aweary of thy life,
Stain not our pure vales with thy guilty blood!
Away with me-- I will not quit my hold.

Mas – com ou sem caçador para salvá-lo – Manfred não pode morrer. É tal um vampiro a carregar a culpa de seu passado, pois não vai esquecê-lo. Sabemos do drama quando Manfred descreve sua aflição ao corajoso caçador. Os remorsos de Manfred fazem com que o fardo do tempo seja redobrado. As lembranças pesam – algo de muito cruel e trágico é o que este homem presenciou ou praticou!

Contudo, Manfred somente revelará seus infortúnios que sobrecarregam o seu passado quando, ao prosseguir suas andanças, ele encontrará (ou invocará) a Bruxa dos Alpes. Diante da Aparição ele o abre o coração – ao pedir não poderes, mas o mesmo, e sabe que em vão, o alívio da tortura da lembrança.

A confissão de Manfred lembra a daquele poema “Alone” de Edgar Allan Poe (escrito trinta anos depois) com a personagem sempre mergulhada em solidão.

[... ] From my youth upwards

My spirit walk'd not with the souls of men,
Nor look'd upon the earth with human eyes;
The thirst of their ambition was not mine;
The aim of their existence was not mine;
My joys, my griefs, my passions, and my powers,
Made me a stranger; [...]

(“Desde a minha juventude / Meu espírito não seguiu com os demais, / Nem olhou sobre a terra com olhos humanos; / A sede de ambição deles não era a minha, / O propósito das existências deles não era o meu; / Minhas alegrias, aflições, paixões, potências / Fizeram-me um estranho;” LdeM)

O jovem Manfred preferia a Natureza, as altas montanhas, os rios. Ou seja, a vida bucólica. Depois, a vida de estudos, a busca do conhecimento (aqui a clara semelhança com Fausto). Até que aparece a mulher amada – bela, suave, igualmente a buscar conhecimentos – mas o amor não traz benefícios, ao contrário, o amor acaba por destruir a amada. Sem humildade para aceitar as próprias falhas, o amor dele abafa o amor dela. E a solidão agora nem é a solidão – mas íntima companhia com a Fúrias – todo o saber é inútil diante do remorso, do desespero.

A Bruxa resolve ajudar o Mago, mas ela exige a mais rigorosa obediência. O Rebelde não é submisso, sua decisão é Non serviam (não servir). As cenas III e IV são povoadas de espíritos e entidades na antecâmara do Gênio do Mal Arimã. Os espíritos reverenciam o Gênio do Mal, quando Manfred se aproxima, mas não se ajoelha. Manfred deseja a invocação do Espectro da Amada – chamada Astarte [nome de deidade semita]. O cenário é de fantasmagoria e alegoria, onde o efeito vale mais que o bom senso. (Partes do Fausto I e II, de Goethe, têm igualmente exageros de fantasmagoria)

No entanto, o espectro de Astarte conserva-se em silêncio, enquanto Manfred se entrega a uma crise de masoquismo, torturando-se. Mas a fantasmagórica Amada, esvanecendo-se, diz que no dia seguinte finda-se a vida terrestre do atormentado, “Manfred! Amanhã finda tuas aflições terrestres. Adeus!” E ele não sabe se foi perdoado...

No Ato III, Manfred encara o fim iminente, a tragédia anunciada. Há uma calma inexplicável – onde toda filosofia é inútil. Mas aparece uma visita: um Abade. O religioso preocupa-se com a salvação da alma do angustiado nobre. Boatos correm sobre as feitiçarias do mago. Manfred não se submete aos 'consolos' religiosos. Por mais que o Abade insista.

Há uma cena patética ao estilo do final do Fausto II – ainda nem publicado, o que ocorreu após a morte de Goethe em 1832 – em que as forças do Bem e as forças do Mal disputam a alma do filho da terra. É onde a força alegórica do Barroco invade a exaltação romântica. E Manfred morre finalmente – acompanhado pelo desolado abade.


© Paolo Guidotti Cain e Abel 1610


Estas temáticas barrocas – isto é, religiosas, - estão presentes ainda mais radicalmente em Cain, onde o mito bíblico (de origem semita) é relido com uma audácia de herege. Trata-se de um poema dramático, em três Atos, datado de 1821, e dedicado a Sir Walter Scott.

Voltamos ao cenário do Gênese, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso (jardim do Éden). Agora o primeiro casal constituiu família. Seus filhos Caim, Abel, Ada, Zila oferecem igualmente sacrifício ao Criador. Todos fazem suas preces bajuladoras – exceto Caim. “Por que eu deveria falar?” Caim nada tem a pedir, e nada a agradecer.

Adão: Mas não vives?

Caim: Não devo morrer?

Caim pensa que se os pais comeram do fruto da Árvore do conhecimento (do bem e do Mal) deviam ter comido também o da Árvore da Vida. Para Adão, isto é blasfêmia!

Adão: Ó meu filho, / Não blasfeme: estas são as palavras da serpente.

Mas para Caim, a serpente disse apenas a verdade, pois “conhecimento é bom, e vida é boa; como podem ser maus?”

Eva reconhece as próprias palavras na fala do filho Caim. Ela se arrependeu – mas teme que o filho repita o pecado. Caim aqui é um livre-pensador. Duvida, ironiza, polemiza. Não segue a moral de rebanho. Caim prefere a solidão – nem sua irmã Ada é companhia desejável. (Aqui uma névoa de incesto: com que os filhos de Adão e Eva se casam? Com as irmãs...) Abel aqui é o mais carola de todos – o mais beato.

Caim não aceita que o pecado dos pais seja transmitido aos filhos.

What had I done in this?—I was unborn: I sought not to be born; nor love the state To which that birth has brought me. Why did he Yield to the Serpent and the woman? or Yielding—why suffer?

(“Que tenho a ver com isso? Nem nascera: / Nem pedi p'ra nascer; nem amo a condição / A qual o nascer me trouxe. Por que ele [Adão] / Se rendeu à serpente e a mulher? Ou / Rendendo-se, por que sofrer?” (Ato I, Cena I)

Vamos abordar aqui o mito hebraico do Jardim do Éden em relação com a mitologia grega (Caim é uma espécie de Prometeu a desafiar os Deuses)

Enquanto Caim pensa, outra personagem adentra (e atenta). É o anjo decaído, o próprio Lúcifer – que aqui parece mais Iago tentando o pobre Othelo. E – numa certa leitura – Lúcifer não é Satanás. Expliquemos.

Para os Luciferianos, o anjo Lúcifer é tal qual um Prometeu, que vem trazer Luz e Liberdade aos Homens – não é, portanto, inimigo dos Homens, tal qual o Satanás da Bíblia – e de John Milton, em Paraíso Perdido (Paradise Lost, 1667 ). Lúcifer, então, era o 'bom', enquanto Deus era o Tirano, o caprichoso Criador que condena a Humanidade e afoga as criaturas, e bombardeia as cidades (vide Sodoma e Gomorra...)

Para o Satanista, o anjo mau, Satanás, não é mais Lúcifer. Satanás odeia Deus, e as criaturas de Deus, os Homens, inclusive. Assim, adorar Satanás é adorar o Mal pelo próprio mal. Um Satanista é um adorador do próprio inimigo? Assim, de certa forma, o Satanismo é ainda baseado no Cristianismo. Enquanto o Luciferianismo é mais complexo, filosófico. Tem raízes cabalísticas e gnósticas. Assim como Prometeu desafiou Zeus, ao dar o fogo aos Homens – Lúcifer desafia Javé, ao tentar a Mulher para cobiçar a Consciência (do Bem e do Mal).

Pois bem, aqui Lúcifer pode conhecer os pensamentos (em outra tradição, o anjo decaído não pode ler os pensamentos, por isso muitos cristãos preferem não orar em voz alta, resguardando-se em oração silenciosa...) Para Lúcifer, os pensamentos são provenientes da parte imortal – assim, os argumentos do Anjo, agora Demônio, são para atrair a confiança do Humano, que logo aceita ter algo de imortal – não apenas tentar, mas revelar. (Interessante este aspecto no Satã Settembrini, o pedagogo que tenta Hans Castorp, em A Montanha Mágica, 1924, de Thomas Mann)

Lúcifer não fala em morte, mas que Caim deve viver. Viver além, em espírito. Não exatamente feliz, mas eterno. Quem é Lúcifer? Ele mesmo diz, “Alguém que desejou ser o que te fez, e / Que não teria te feito o que tu és.” (“One who aspired to be what made thee, and /Would not have made thee what thou art.”)

Mas o Demônio resigna-se com a vitória do Criador, “Ele venceu; deixe-O reinar!” (“He conquer'd; let him reign!”) Aqui a Rebeldia – e a Liberdade – é coisa do diabo! Nada mais cristão, claro! Afinal, o Cristianismo prega a obediência e a resignação. Assim, ser livre (igual ao Sr. Settembrini, na obra de T. Mann) é ofensa à fé. (E não admira que muitos Iluministas tenham sido 'Luciferianos' quando da luta liberal contra a Monarquia Absolutista e contra o Clero, entre os séculos 18 e 19)

O Demônio é assim porque foi um espírito que ousou encarar o Criador. Diz Lúcifer, “Almas que ousaram usar a imortalidade – / Almas que ousaram olhar o tirano Onipotente / em Sua face eterna, e dizer-lhe que / O Seu Mal não é bom;” (“Souls who dare use their immortality— / Souls who dare look the Omnipotent tyrant in / His everlasting face, and tell him that / His evil is not good!”)

Como pode surgir o Mal no domínio do Bem? Como um Ser perfeito pode permitir a imperfeição? Deus é um Criador todo-poderoso e infeliz, “Deixe-o sentar-se em seu vasto e solitário trono, / criando mundos, a fazer a eternidade / menos pesada à Sua imensa existência / e imparticipada solidão; / Deixe-o povoar orbe após orbe: ele está sozinho. / Indefinido, indissolúvel tirano;”

(“But let him / Sit on his vast and solitary throne — / Creating worlds, to make eternity / Less burthensome to his immense existence / And unparticipated solitude; / Let him crowd orb on orb: he is alone / Indefinite, Indissoluble Tyrant;”)

Assim, Anjos (ou Demônios) e Humanos se assemelham na parte espiritual: Anjos só Espíritos, enquanto Humanos são Espíritos dentro de Corpos feitos de barro, e que voltarão ao barro.

Antes Caim não encontrara alguém que conversasse francamente com ele – alguém que simpatizasse com suas dúvidas e angústias. Lúcifer prefere conversar do que tentar – como ele fez no papel de serpente, ao aproximar-se de Eva, no Paraíso, “eu não tento alguém, / Exceto com a verdade: não era a árvore, a árvore / Do Conhecimento? E não era a árvore da Vida / Ainda frutífera?” (“I tempt none, / Save with the truth: was not the Tree, the Tree / Of Knowledge? and was not the Tree of Life / Still fruitful?”)

Claro que há muita Teologia neste drama em versos. Muito fatalismo, calvinismo, livre-arbítrio, condenação eterna. E não há assunto mais entediante do que Metafísica – e nada mais metafísico que a Teologia. (Como se fosse possível às Criaturas estudar o Criador, ou o imperfeito teorizar sobre o Perfeito! É muita imaginação ou muita pretensão!)

Em resumo: por que Caim mata o irmão Abel? No diálogo com Lúcifer, aquelas ideias mais recônditas – e heréticas! – de Caim são reveladas. “Pensamentos inexpressados / povoam a arder em meu peito” (“Thoughts unspeakable crowd in my breast to burning;”) Parece ser a consciência de que Deus é tanto Criador quanto Destruidor

Lúcifer: O Criador – chame-o

Com o nome que desejares: ele cria, porém
para destruir.

A imortalidade é um atrativo para Caim – que teme a Morte. É um atrativo para as ovelhas dos religiosos. A vida eterna enquanto um consolo. (Para outros, é justamente o contrário: a Morte é o consolo. Nada de Céu, ou Inferno, ou Deus, ou Julgamento; mas tão-somente a Noite eterna, o Nada.) Já o tal Lúcifer nada sabe sobre a morte, “Como eu não conheço a morte, / Não posso responder.” (“As I know not death, / I cannot answer.”) Para Caim, temer a morte é “temer o que eu não conheço” (“fear I know not what!”)

Tendo atraído Caim, agora Lúcifer quer ser adorado (“Deves inclinar-te e adorar-me – teu Senhor”) Mas se Caim não reverenciou o Deus Todo-Poderoso, por que deveria se ajoelhar perante um anjo Decaído? Mas Lúcifer admira este Humano que não reverencia a outros. Afinal , é um fiel da máxima non serviam. Um Rebelde não adora nem Deus nem diabo. “És meu adorador: não adorando-O / és meu do mesmo jeito.” (“Thou art my worshipper: not worshipping / Him makes thee mine the same.”)

Ou seja, se o sujeito não acende uma vela para Deus, está torcendo para o diabo. Tudo o que o padre esbraveja na igreja, “Quem não está junto de Deus, está nas garras do diabo!” Caim precisa escolher entre seguir Lúcifer ou se reunir aos irmãos para o próximo sacrifício. Lúcifer trata logo de separar Caim e sua amada irmã Ada, sempre desconfiada diante do Anjo de Luz, que insiste que a serpente traiu a mulher, Eva, com a Verdade: o fruto traz conhecimento, consciência. E a consciência traz o sofrer.

O Autor seguramente 'toma liberdades' com o texto bíblico, ao introduzir esta paixão entre irmão e irmã – traços biográficos (?), é de se perguntar. Mas trata-se de uma alegoria, e o mito religioso sofre uma apropriação autoral – e os Românticos não primavam pelos Cânones, mas pela originalidade, pela re-criação do que era considerado clássico.

O tal Lúcifer não hesita em apontar que o que agora não é pecado – o amor entre irmãos – em breve será – trata-se do 'tabu do incesto', no sentido de desviar o impulso sexual para fora da família e/ou do clã. Ada não entende um pecado que não seja pecado em si mesmo. Como pode algo hoje ser 'certo' e amanhã ser 'errado'. Pecado é pecado, e virtude é virtude. (É que a Humanidade ainda não tinha inventado a História, e a História não era objeto do Historicismo...)

Semelhantes alegorias percebemos no romance O Fauno de Mármore do autor norte-americano Hawthorne, onde o mito da Queda do Homem é encenado, onde o pecado pode unir os cúmplices numa paixão, onde a virtude não aceita a coexistência pacífica com o Pecado.

Ao identificar a Onipotência com a tirania, e a adoração com a bajulação, Lúcifer acaba por embaralhar os valores – algo de iconoclasta aqui! – o que ofende a humana Ada, sempre virtuosa (“Onipotência deve ser completa bondade”, “Omnipotence / Must be all goodness”) e que o tal Anjo de Luz não é exatamente abençoado. Ao que o tal responde, “Se ser abençoado / consiste em ser escravo – não”, onde o argumento é basicamente: ser abençoado é ser cooptado pela Tirania.

A perda dos laços de identificação com a família, e os laços amorosos com a irmã-esposa Ada, enfim, a revelação da completa solidão – ter consciência, saber é não criar laço afetivo. Saber é não amar. Quem tudo sabe há-de amar os ignorantes? (E lembramos o insulto do Cristo crucificado: “Perdoai-vos, pois não sabem o que fazem” (!)) Caim não escolhe o amor – e segue o Anjo Decaído. (Para Ada, a solidão é até pecado. Não se pode ser feliz ao viver sozinho. Ada é o tipo boa mãe de família...)

No Ato II, uma viagem astral – outros mundos, outras alegorias. Eis aqui um Byron metafísico. Vários mundos, vários pecados, várias redenções, várias condenações... O desejo do Poeta é transformar o mito hebraico numa verdadeira tragédia grega – e quase conseguiu. Vide o final do Ato III.

O final é aquele que todos conhecemos. O Anjo Decaído não veio melhorar o drama, e sim acelerar o desenlace. O Rebelde Caim torna-se o primeiro homicida – ao golpear violentamente o irmão Abel, junto aos altares de sacrifício. (Caim: Teu Deus adora sangue!) E o sacrificado será o próprio Abel. Consequência que Caim nem mesmo previra – ele se encontra responsável diante da primeira morte, e morte violenta.

Ligações a esta post:
>>> Acesse a primeira parte do texto, aqui.

Leonardo de Magalhaens (Leonardo Magalhães Barbosa), crítico literário, escritor, tradutor, escreve e traduz desde os 15 anos. Tem 3 volumes de poemas e 3 volumes de contos, todos inéditos, além de dedicar-se a um ciclo de romances em seus columes. Divulga sua contribuição ensaística de crítica literária, especializando-se em autores vivos, demasiadamente vivos. Belorizontino, atualmente estuda Letras na FALE/UFMG, com ênfase em literatura brasileira. Escreve aqui e aqui.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual