A traição ao anonimato papeleiro: os cem anos da primeira edição de “Triste fim de Policarpo Quaresma”
Por Alfredo
Monte
Cena da adaptação de O triste fim de Policarpo Quaresma para o cinema |
"Meu senhor,
exclamou ele no tom mais cortante, onde acredita estar? Desconhece a tal ponto
os procedimentos adequados? O senhor deveria antes de mais nada apresentar sua
demanda ao encarregado de serviço. Este deveria encaminhá-la na boa e devida
forma ao chefe da repartição, o chefe da repartição ao chefe da divisão, o
chefe da divisão ao meu secretário, o qual afinal a submeteria à minha
apreciação" (trecho de O capote, de Nikolai Gógol)
Um dos textos mais brilhantes e lúcidos da
nossa ficção, Triste fim de Policarpo Quaresma teve sua primeira edição em
livro há cem anos, embora escrito nos primeiros meses de 1911 (a partir de
agosto até outubro, saiu em folhetins na edição da tarde do Jornal do
Commercio). Foi a segunda obra que Lima Barreto (1881-1922) conseguiu publicar
em sua tumultuada carreira, seis anos após Recordações do escrivão Isaías
Caminha.
Muitos veem o herói, Policarpo Quaresma,
como um Dom Quixote nacional, mas se pensarmos em algumas figuras da Primeira
República cheias de projetos nacionalistas utópicos, como o escritor gaúcho
João Simões Lopes Neto, dos Contos gauchescos, Quaresma não chega a ser um
caso tão peculiar. Ele é um funcionário público quarentão que se entupiu de
livros e abraçou um ideal absoluto de nacionalidade, e que começa a cometer
“loucuras” para o senso comum, como propor à Assembleia Legislativa a adoção do
tupi-guarani como língua oficial do país.
Há nele o mesmo desencontro entre o mundo
vislumbrado nos tomos e tomos que leu e a vida social ao seu redor, e a mesma
traumática tomada de consciência da “realidade”, destruindo o ideal, ao final,
quando recobra-se do fervor patriótico ao ser preso por protestar contra os
desmandos da ditadura de Floriano Peixoto a aviltar os direitos humanos após a
repressão da Revolta da Armada (1893), um episódio a um só tempo sombrio e
emblemático da nossa nascente era republicana.
Os embates de Quaresma têm decerto seu lado
cômico, contudo há a grandeza pressentida pela afilhada, Olga: “Sentia
confusamente nele alguma coisa de superior, uma ânsia de ideal, uma tenacidade
em seguir um sonho, uma ideia, um voo enfim para as altas regiões do espírito
que ela não estava habituada a ver em ninguém o mundo em que frequentava”.
E é nesse diferenciar-se da mediocridade
imperante que podemos ver também (e sobretudo) a influência secreta de
Flaubert, mais nítida ainda do que a de Cervantes, que considero mais superficial.
Pois se Olga não está habituada a ver em ninguém a grandeza, mesmo que
submetida ao ridículo, de seu padrinho, é porque Lima Barreto enfatiza para o
leitor as mesquinharias e mazelas, a bêtise [estupidez] triunfante na
vida social na última década do século passado, concentrando-se na vida
suburbana e dos pequenos funcionários (na primeira parte), depois mostrando a
vida rural, quando Quaresma tenta tornar produtivo um sítio na cidadezinha de
Curuzu (na segunda parte, digna do flaubertiano Bouvard e Pécuchet), e, mais
tarde, ao mostrar o jogo de interesses que preside o “patriotismo”, o
sentimento nacionalista, quando explodem as revoltas contra Floriano. Tudo se
mostra pequeno, acanhado, acachapante, a própria Olga (que tem mais imaginação
que as outras moças) resigna-se ao destino do casamento por conveniência.
Veja-se a descrição de como os colegas de
trabalho de Quaresma reagem à sua súbita notoriedade por causa da proposta da
adoção oficial do tupi-guarani: “É como se se visse no portador da
superioridade um traidor da mediocridade, do anonimato papeleiro. Não há só uma
questão de promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio,
de sentimentos feridos, vendo aquele colega, aquele galé como eles, sujeito aos
regulamentos, aos caprichos dos chefes, às olhadelas superiores dos ministros,
com mais direito à consideração, com algum direito a infringir as regras e os
preceitos.
É preciso lembrar que já em meados do
século XIX, Nikolai Gógol, com O Capote ( “No ministério de… Não, é
melhor não dizer seu nome. Ninguém é mais suscetível do que funcionários,
empregados de repartições e gente da esfera pública. Nos dias que correm, todo
sujeito acredita que se nós atingimos a sua pessoa, toda a sociedade foi ofendida...”),
e Nathaniel Hawthorne, na introdução de A letra escarlate (“Dentro de mim havia
um dom, uma faculdade, em estado de inibição ou entorpecimento, se é que já não
se esvaecera de todo. Em tudo isso haveria algo de triste ou sobremaneira
melancólico, se eu não tivesse consciência de que em minhas mãos estava o
evocar do que no passado houvera de valioso. É possível, de fato, que essa vida
não pudesse impunemente prolongar-se por muito tempo… encarei-a sempre como
fase transitória… Entrementes, aí estava eu, inspetor de impostos e rendas, e
tanto quanto me é dado compreender, tão bom inspetor quanto era necessário… Os
meus colegas de repartição… olhavam-me através desse prisma, nem provavelmente
viram em mim outra personalidade…. É uma boa lição, embora por vezes dura, para
um homem que sonhou com a fama literária e ambicionou conquistar por este meio
um lugar de destaque entre as eminências mundiais, manter-se à margem do
estreito círculo em que suas pretensões são conhecidas, e verificar como, fora
dele, ninguém liga importância ao que ele faz e pretende…. É certo que em
matéria de conversa literária, o oficial de marinha discutia, vez por outra,
sobre alguns dos seus autores favoritos: Napoleão ou Shakespeare [eu também sou
apaixonado pelas obras completas de Napoleão]… O apontador da Alfândega
imprimia meu nome com tinta preta nos sacos de pimenta, nos fardos de cereais,
nas caixas de charutos, e nas embalagens de toda sorte de mercadoria sujeita a
direitos aduaneiros, em testemunho de que tais artigos haviam pagado o imposto
e passado legalmente pela alfândega. Transportada neste original veículo de
fama, a notícia de minha existência, na medida em que um nome a pode
transportar, chegava aonde nunca antes tinha chegado e aonde, segundo espero,
não voltará a chegar”1) já lançavam um olhar de medusa ao reino encantado da
mediocridade burocrática, tão bem sintetizado por Kafka, numa confidência a
Gustav Janouch: “As cadeias da humanidade torturada são feitas de papel de
escritório”.
Enfim, o espetáculo miúdo da estupidez
cotidiana, o pesadelo burocrático, a corrupção e a tirania política conduzem ao
belíssimo capítulo final, um dos mais amargos já escritos. Felizmente, para
contrabalançar a tristeza, onde o “triste fim” de Policarpo Quaresma não é
tanto sua morte física, mas a morte dos seus sonhos, há o despertar de Olga, a
qual retoma um processo de diferenciação
que não é o da loucura (um dos grandes temas do romance) ou o do quixotismo, e
sim a consciência de si mesma.
E é aí, talvez, que Lima Barreto deixa para
trás paralelos com quaisquer outros autores (os que ele reconheceria e
acataria, como Cervantes e Flaubert, e aqueles dos quais ele sequer
suspeitaria, caso de Hawthorne, Kafka, e mesmo Gógol) e torna-se ele mesmo, um
autor único, gênio a forjar a consciência incriada da nossa raça.
Notas
¹ Utilizo a
tradução de A. Pinto de Carvalho (cuja última edição foi pela Ediouro) para A
letra escarlate. Hawthorne fora conferente por três anos (e,
mais tarde, inspetor do porto) na Alfândega de Salem, afastado em 1849, devido
a manejos políticos. Os trechos de O capote são da tradução de
Roberto Gomes (L&PM).
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