A obviedade da frase “O Machismo mata”
Por Rafael Kafka
Há uma frase que leio demais em redes sociais. Tal frase diz
que machismo mata. Demorei a entender o seu real sentido até começar a seguir
mais páginas feministas e ver relatos de mulheres sendo mortas por namorados e
maridos ciumentos em relações que vinham há muito tempo caindo em uma loucura
possessiva e sem sentido e das quais, por motivos vários, elas não conseguiam
se libertar. Na verdade, bastava abrir o jornal e ver a quantidade de “crimes
passionais”, ou feminicídios mesmo, que eram cometidos por homens que não
aceitavam se verem longe de mulheres que sofriam demais em relações desumanas e
ainda assim, por puro ego ferido, não tinham a sua liberdade dada por aqueles
que outrora foram os seus príncipes encantados.
Com o
passar do tempo, comecei a ver nessas páginas uma série de relatos de moças que
postavam em seu Facebook marcas de sua violência pessoal. Moças muitas vezes
não crentes que a lei faria algo efetivo por elas e que mais procuravam o apoio
de amigos e desconhecidos na rede social procurando algum tipo de conforto
protetor mais efetivo. Muitas das coisas vistas ali eu nem pensava que
existissem mais e de repente eu me via diante de situações que nem nos livros
mais feministas que eu li, talvez por terem sido escritos por mulheres burguesas
economicamente autônomas, eu vira. Peguei-me indo dormir muitas vezes pensando
nas cenas atrozes vistas naquelas postagens e muitas vezes corroboradas pelos
comentários sem empatia alguma de homens e mulheres reprodutores de um machismo
meritocrático o qual diz que se elas passaram por tudo aquilo foi por terem
merecido.
Ainda
me faltava um choque de realidade e ele veio na forma de relatos de experiência
atrozes. Desde muito cedo, por ser sensível demais, passei a me relacionar mais
com mulheres. Sempre detestei a conversa competitiva e objetificadora de homens
em relação às mulheres e lembro-me, de vez em quando, de cenas minhas agindo
como um machista tosco chamando moças de gostosa e fazendo comentários nada agradáveis até coisa de dois anos e meio atrás. Lembro-me muitas vezes de como
eu representava um papel ridículo quando estava na adolescência - tudo para ser
aceito em um grupo de rapazes idiotas que viviam a se gabar de mulheres pegas e
despegas por eles em seus devaneios juvenis. Quando comecei a gostar de rock e
literatura, iniciei um processo de isolamento brutal e desde então a maior
parte de minhas amizades são femininas. Apenas um amigo homem hoje eu tenho,
Hamilton, com quem nutro uma amizade de mais de seis anos e com quem possuo
bastante afinidade intelectual e quem o tenho como suporte psicológico. Outro grande amigo meu,
Lenilson, faleceu há pouco mais de um ano e desde então tenho notado essa
dificuldade de interagir com homens.
*
Claro
que há mulheres reprodutoras de machismo e de algum tempo para cá tenho feito
meio que inconscientemente um filtro em meu ciclo social no qual percebo a
quase inexistência de ideias e comportamentos machistas, exceto na forma de
vieses, de resquícios. O certo é que realmente criei uma ojeriza muito grande
por aquele típico comportamento que justifica com todas as letras que os papéis
de gênero são algo absoluto e inquebrantável e nada veem nisso de opressor.
Como
dito acima, faltava-me um choque de realidade e ele veio na forma de relatos de
experiências atrozes sofridas por pessoas próximas a mim.
Cerca
de três amigas passaram a me contar em conversas informais uma série de abusos
cometidos por seus ex-namorados. O padrão de abusos era bastante similar: a
falta de elogios e o excesso de críticas na forma de termos pejorativos, sexo
não consentido para evitar conflitos com o cônjuge, agressões físicas,
destruição de toda a autoimagem que a pessoa tinha de si mesma e a criação de
uma relação que se mantinha apenas por ego e não por amor. Verdadeiros infernos
pessoais cujo único intento era provar quem mandava ali.
Uma
outra amiga passou a me relatar situações de uma pessoa conhecida por ela a
qual era há tempo fustigada em seu âmago pelo namorado em uma relação cheia de
idas e vindas. A garota sofria com comentários gordofóbicos e tinha de se
submeter a relações sexuais sem proteção apenas para não comprometer o prazer
de seu namorado em uma atitude bastante arriscada para a saúde e o futuro dessa
moça. Outra pessoa conhecida minha falou de como o namorado não dava o devido
apoio aos seus estudos e reclamava de sua aparência física achando que ela
deveria se submeter ao regime de uma academia para agradar-lhe mais plenamente.
Tais
relatos que aqui resumo de forma bastante precária, pelo que pude perceber em
redes sociais, é algo bastante comum, até mesmo nos comentários de mentes
conservadoras que criticam o feminismo por sua proposta de emancipar e
empoderar as mulheres. Muitas vezes, em diversos tipos de discussões em
comentários de páginas na web, vi moças sendo chamadas de feminazis, gordas,
mal comidas ou mal amadas, etc. Tais argumentos ad hominem vinham de mentes
conformadas com a ordem das coisas e que demonstravam em seu discurso um
profundo temor do que virá a ocorrer caso as bases sociais nas quais eles foram
criados se tornem diferentes em diversos graus.
Tais
relatos me fizeram lembrar de cenas de minha infância que pensei nunca mais
veria perto de mim. Cenas de homens batendo em suas mulheres após chegarem do
bar bêbados, provavelmente magoados por algum fora levado de alguma potencial
amante que ali os trocara por outro cara ou pelo simples prazer de dançar um
brega sozinhas. Ou magoados pelas contas cada vez mais crescentes e
incompatíveis com um salário medíocre e que achavam na agressão uma forma de
mostrar para si mesmos o quanto eram homens. Lembrei de minha mãe passando por
isso e de como eu cresci vendo meu pai espancando-a até o dia em que ela disse
que procuraria a polícia, sem Lei Maria da Penha a seu dispor, para ele
aprender que não deveria bater em mulher. Lembro de como me senti aliviado
quando ele saiu de casa e de como até hoje tenho dificuldades em me aproximar
dele e de como eu e meus irmãos crescemos em um ambiente atroz por conta da
falta de planejamento familiar e por conta da violência que tivemos de ver
dentro de nossas casas. Penso em como minha vida amorosa deu uma série de
guinadas doidas e relacionamentos ruins por culpa da falta de um seio familiar
amoroso e pleno e duvido que tudo seria realmente amoroso e pleno em outro
contexto mais equilibrado, pois o machismo seguiria mandando. Talvez, minha mãe
não apanhasse tanto apenas para que a etiqueta e as aparências não fossem
rompidas.
Ouvir
uma amiga me dizer que foi espancada pelo namorado em um bar e depois ouvir
outra me dizer que levou dois socos de um ex ao mesmo que vejo uma amiga criar
no Facebook toda uma narrativa biográfica de amor eterno quando na verdade o
que existe é uma relação abusiva que mais parece a de um menino mimado mal
acostumado por sua mãe super protetora me fez pensar que realmente machismo
mata.
Ele
mata literalmente quando o homem por se sentir ultrajado faz ameaças e mais
ameaças e mata a mulher como se ela fosse um objeto digno de ser descartado e
quando ele evita que essa mulher procure ter seus rumos próprios impedindo-a de
ter autonomia financeira, acadêmica e social. Ele mata metafórica e lentamente
quando acaba com o amor próprio de uma mulher impedindo-a de ver valor próprio
em si e de ter a coragem de romper um ciclo vicioso pelo fato de achar que sem
aquilo estará incompleta e sozinha. Ele mata grotescamente quando impede as
pessoas de evoluírem, de serem livres e transforma toda uma gama de discursos
românticos em uma bizarrice cheia de dominação e violência.
Há um
documentário sobre Simone de Beauvoir em que um homem de relativa fama fala que
sua ex esposa leu O Segundo Sexo e isso acabou com seu casamento. Ele diz isso
rindo de forma amarela. Simone mesmo relata em seus livros a violência sofrida
pelas críticas desmesuradas a seu trabalho, todas baseadas na ideia de que ela
estava acabando com a família e todas constituídas basicamente de argumentos ad
hominem. No começo do ano, Lola Aranovitch foi vítima de uma série de ameaças
por grupos machistas na internet que empreenderam um verdadeiro terrorismo contra
a blogueira feminista mais famosa do país. Todos os dias,homens machistas fazem
memes e posts afirmando sua virilidade e seus valores atrasados e atacam as
feministas transformando-as em monstros horrendos, justificando seus atos de
barbárie como típicos de homens. A única certeza em tudo isso é que o feminismo
se torna cada vez mais necessário para que mulheres se libertem de seu jugo e
para que homens, ao verem a plenitude feminina de seres livres, tornem-se
felizes em não subjugarem ninguém.
Para
isso, ainda precisamos de um longo caminho até que possamos entender que o ser
humano é livre para fazer o que quiser de sua vida. E que devemos respeitar
isso sem fecharmos nossos comportamentos em fórmulas acabadas que visem a
anular a nossa liberdade de ser e agir. Somente assim, entenderemos a premissa
básica de que mulheres são gente e de que ninguém deve ser forçado, pelo gênero
ao qual pertence, agir desta ou daquela forma até o fim de suas vidas. Nem a
suportar os caprichos e obscuridades de ninguém.
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