Samuel Beckett segue em pé
Por Marcos Ordóñez
Minha admiração
por Samuel Beckett cresce a cada novo mergulho em seu mundo. Volto a lê-lo e
penso num grande pássaro, com asas de albatroz e bico de gaivota sobrevoando
todos os tópicos vertidos na sua obra. Beckett niilista? Já disse demasiadas
vezes e sigo sem acreditar nisso. Penso melhor num Beckett realista, num
Beckett combativo, num Beckett otimista. Sempre me chamou a atenção uma frase
sua, escrita durante a Ocupação: “Prefiro viver numa França em luta que numa
Irlanda neutra”.
Beckett combativo: poucos sabem que militou na Resistência,
por cujas ações (as de separada importância, qualificou-as de “coisas de jovem
escoteiro”) obteve a Cruz de Guerra. O grande misantropo era também, ao dizer
de quem o conheceu, um homem “infinitamente amável e bondoso”. Harold Pinter
contava, comovido, uma história que viveu com ele no início dos anos 1960: em sua
casa, à noite de seu primeiro encontro, Beckett se levantou e percorreu várias
farmácias de Paris às cinco da manhã até conseguir algo com bicarbonato que pudesse curar a feroz indigestão de seu convidado.
Em “Primeiro
amor”, um conto escrito em 1946, cujo despojamento formal e humor negríssimo
antecipam a trilogia de Molloy, Malone morre e O inominável, poderia rastrear-se, talvez, as profundas cicatrizes
de um homem anterior: o jovem Beckett que se considera “morto e sem sentimentos”
depois de sua ruptura com Lucia Joyce e de passar dois anos de tratamento na
clínica Tavistock no cerne da morte de seu pai.
Beckett
realista: “As mulheres dão a luz montadas em uma sepultura, o dia brilha por um
instante e em seguida volta a ser noite”, diz Pozzo. Beckett otimista: “Winnie não
se suicida e pode fazê-lo”, dizia Giorgio Strehler quando dirigiu Dias felizes. “No primeiro ato tem uma
pistola na mão, mas ninguém nunca se suicida numa obra de Beckett”. Winnie,
irmã de Molly Bloom, transborda humor, humor pragmático como uma forma de
resistência. A campainha toca, e essa mulher enterrada até o pescoço abre os
olhos como uma atriz a quem voltam a chamar em cena: “Canta, Winnie”, se diz, “canta
tua canção”. Esperando Godot faz pensar
num grupo de humoristas obrigados a representar uma obra, sem saber o porquê,
num velho teatro abandonado. Fim de
partida evoca as figuras de dois reis que foram deixados sozinhos, no
centro de um tablado e optam por seguir realizando pequenos movimentos.
No Brasil, a trilogia Malone Morre, Molloy e O inominável recebeu uma caprichada reedição pelo selo Biblioteca Azul, da Globo Livros. |
Nada é tão
somente absoluto; sempre há “algo que segue abrindo caminho em alguma parte”,
chame-se carcoma, palavra ou narração. Há em seus protagonistas uma tendência
natural à narração, ao humor verbal e fantasioso, e sobretudo, à impavidez
estoica de quem conhece as verdades da vida e sua alternância de horror e
beleza. Não obstante, Beckett parece dizer-nos que sempre pode surgir um
inesperado broto numa árvore seca: devemos seguir movendo-nos embora não
alcancemos nenhuma parte, devemos seguir jogando mesmo que tenham nos mostrado
todas as cartas. De gesto em gesto, de palavra em palavra, os protagonistas de
sua obra traçam um nome secreto na areia: salvação, aqui e agora. Não vejo
absurdo em Beckett. Nos fala de necessidades essenciais: comer, dormir, buscar
companhia, buscar a maneira de passar a noite.
Na segunda
parte de Esperando Godot tudo
recomeça para pior, como um inferno circular: Pozzo cai cego, Lucky volta mudo.
Vladimir diz: “Temos tempo para envelhecer. O ar está cheio de nossos gritos,
mas o hábito é um grande calmante”.
Também já foi
dito que há muita solidão em seu teatro, mas o certo é que há muitos casais. Em
Esperando Godot temos Vladimir e
Estragon, Pozzo e Luzky. Em Fim de
partida estão Hamm e Cloy, Nagg e Nell. Em Dias felizes, Winnie e Willie. Willie, seu companheiro, apenas
fala, mas a Winnie lhe basta saber que está aí, que segue vivo. Inclusive
Krapp, que está só, escuta seu eu antigo, gravado em A última fita.
“Chegará um
dia”, diz Winnie, “em que terei de aprender a falar só”. Premonitórias
palavras, porque em seus últimos anos Beckett escreve monólogos cada vez mais
breves, mais despojados e mais amargos (Not
I, That Time, A piece of monologue, Rockaby) sempre girando em torno dos
mesmos temas: solidão, vazio, loucura, perda, morte, memória fraca, peso do
passado. Vozes solitárias e flutuantes, que caem no vazio como um fluido
escuro. É um Beckett que já recebeu o Prêmio Nobel (cujo dinheiro recusou),
todos já o consideram um clássico incontestável, mas segue escrevendo, “movendo-se
em alguma direção” como qualquer de suas personagens, para não ficar parado, imóvel
no pedestal; um Beckett que prefere, como disse depois de haver terminado Not I, “work standing still prior to
lying down”, seguir em pé, trabalhando, em vez de entregar-se, de deixar-se
abater.
***
Há muitos
Beckett em Beckett, por isso quase melhor é falar de uma região. Porque aí
dentro cabem todos: os estranhos e um pouco petulantes, os perdidos e
desamparados, os felizes, os provocadores, os que fazem todo o possível para se
mostrar sensatos e visionários, os que passam angústias e os que estão radiantes.
“Mas preferia ater-me à minha simples crença, a que me dizia, Molloy, tua região
é muito extensa, nunca saísse dela e nunca sairás” diz uma de suas personagens.
E, em um de seus textos curtos, Sim,
dá uma ideia do lugar onde está, seu lugar, o mundo: “Cinzas cinza ao redor
terra céu confundidos distancias sem fim”. As precisões poderiam ser ainda
maiores, mas pouco importa tanto. Essa é a região de Beckett.
Nasceu em
Dublin em 13 de abril de 1906; é o segundo filho. Foi, quando jovem, um
excelente esportista: rúgbi, boxe e críquete; nadava muito bem, jogava tênis e
golfe, teve uma moto. Estudou filologia moderna e obteve, ao terminar, uma vaga
para ensinar inglês na École Normale Supérieure, em Paris. Chegou em 1928 e se
instalou definitivamente aí a partir de 1937, adotando o francês como sua
língua literária. Conheceu James Joyce, de quem terminaria por ser um grande
amigo e com quem rompeu quando não correspondeu aos amores que nutriu por sua
filha Lucia. Em 1938, um cafetão o esfaqueou e podia ter morrido. O episódio
lhe permitiu conhecer Suzanne Deschevaux-Dumesnil, seis anos mais velha que
ele, a mulher mais importante de sua vida. Existiram outras, como a milionária Peggy
Guggenheim ou Barbara Bray, tradutora e editora da BBC, que conheceu em finais
dos anos 1950.
Beckett foi
um tipo complicado. Gostava muito de caminhar e passava o tempo queixando-se
das mais diferentes doenças. Durante a Segunda Guerra Mundial esteve como
membro da Resistência e logo, entre 1946 e 1950, escreveu algumas de suas maiores
obras: Mercier et Camier, Eleutheria, sua grande trilogia (Molloy, Malone morre e O inominável)
e Esperando Godot. Em 1969, enquanto
viajava com Suzanne por Túnez, soube que haviam lhe concedido o Prêmio Nobel de
Literatura, assim que se trancou num monastério e desconectou o telefone. A
Academia concedeu a honraria “por sua escrita, que, renovando as formas do
romance e do drama, adquire sua grandeza a partir da indigência moral do homem
moderno”. Morreu em Paris, em 22 de
dezembro de 1989.
Ligações a esta post:
Leia mais sobre a vida e a obra de Samuel Beckett aqui.
* Este texto é uma versão livre para "Samuel Beckett sigue en pie" publicada em El País. A caixa informativa com dados biográficos do autor foi redigida da mesma situação de José Andrés Rojo. As traduções de trechos da obra partiram das citações já presentes nos textos.
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