Os trabalhos e os dias na poesia de Donizete Galvão
Por Alfredo Monte
“De fato a linhagem agora é de ferro:
nunca, de dia,
se livrarão da fadiga e da agonia, nem à noite,
extenuando-se: os deuses darão duros tormentos.
Todavia, para eles aos males juntar-se-ão benesses...”
(Hesíodo, Trabalhos e Dias, versos 176-9, trad. Christian Werner)
“Poderia ser este o lugar.
Este o tempo de repouso.
Mas a roda dentada nunca para...”
(Donizete Galvão)
Entre os trinta e seis poemas reunidos em Ofícios do tempo (ed. Positivo), dois podem ser considerados nucleares,
inclusive por sua concisão e perfeição: “Memória do paraíso / não tenho não. / Lembro-me
da dor. / Da vergonha. / Do desgosto. / Da gota de suor/ pingando do rosto.”
(“depois da queda”); “Nu / bailo / numa / navalha // Sem / nada / que me valha /
só / me prende / um fio / de esperança” (“equilíbrio”).
Ao destacá-los, corre-se o risco de sublinhar o lado mais abstrato,
mais “condição humana”, relegando a segundo plano uma das linhas de força da
poesia de Donizete Galvão, cuja morte prematura completa um ano agora em
janeiro: a concretude das referências, na intersecção delicada e perigosa do
rural e do urbano, do eu lírico que traz as marcas do interior profundo de
Minas mesmo na mais caótica das metrópoles, São Paulo. Diga-se, de passagem,
que a antologia levada a cabo no volume (sob responsabilidade de Lindsey Rocha
Lagni), muito feliz nesse aspecto, ressente-se de uma incômoda uniformização do
fazer poético de Galvão, passando ao leitor a (falsa) impressão, ainda mais
quando a autora do posfácio, Marina Ianelli, nos diz que estamos diante do
“sumo do sumo” da obra1, de que sua vocação, por assim dizer, é a
dicção do verso curto, “simples”, “claro”, e sobretudo muito calcada, como em
boa parte do melhor lirismo a partir do modernismo, nas perplexidades do
cotidiano, o que deixa de fora uma linha mais “ambiciosa”, mais intelectualizada,
no diálogo com a mitologia, cujo exemplo mais notável é “Nós e Filoctetes”,
ponto alto de A carne e o tempo
(1997)2. Feita tal ressalva, e assumindo que nenhuma seleção, por
mais criteriosa e feliz, dá conta de todas as facetas de um universo complexo,
voltemos à dialética entre a “condição humana” e o contingencial que domina esse póstumo e
oportuno Ofícios do tempo.
Como já apontado, o rural ainda é muito presente nessa experiência do
contingencial, particularmente como substrato da memória. Mas, aqui, o grande
poeta mineiro foge totalmente de certa deturpação malsã e kitsch desse universo rural a infestar tantas narrativas
infanto-juvenis e muito da recepção do universo de um poeta como Manoel de
Barros, leitores não levando em conta de que se tratava de uma topografia
lírica extremamente peculiar (além de tardia), e desabrochada a partir do uso
incomum da linguagem, e não de uma representação de alguma realidade rural
encantada que já houvesse existido e que se perdeu nos processos de
urbanização.
O rural que emerge da memória lírica de Donizete Galvão é um mundo de
trabalhos e dias (o que não deixa de apontar, se pensarmos no poema de Hesíodo,
para a “condição humana”)3, de ofícios, como observamos em “reboco”:
“Sexta feira:
dia de rebocar o chão.
É preciso ir ao curral
e trazer na bacia
o estrume das vacas.
Melhor aquela pasta
que solta fumaça,
ainda cheirando a capim.
Na beira do barranco,
perto do córrego,
cava-se a tabatinga.
Do branco do barro
com o verde da bosta,
que se mistura com os dedos,
surge uma argamassa
com que se barreiam
o piso da cozinha,
a taipa e os lados da trempe.
Para quem não tem muito,
tudo tem serventia:
a argila, a bosta da vaca,
o perfume da grama,
o giro ágil das mãos,.
Faz-se sem saber como,
sabendo-se desde sempre
essa alquimia.”
Por conta dessa vivência, o eu lírico pode interligar os topói da vida alienada na era burguesa e
da “vida de gado”, fruto da massificação, com relação ao seu (e ao de tantos
outros) cotidiano urbano, de uma forma que recupera a contundência das analogias,
em poemas como “curral”, onde orquestra toda uma movimentação da cidade, em diversos estratos sociais
(“saem dos subterrâneos das garagens... saem dos conjugados sem luz do sol...
saem de bairros Jardim Qualquer Coisa... saem de buracos sob a linha do
trem...saem das esquinas, nos semáforos...saem dos portões com grades...saem
das lojas de mármore e vidro...”), e “autorretrato como boi”, ele um “Boi com
crachá / e carteira assinada. / Boi comprovado. / Boi indistinto / na boiada da
cidade...”.
Nessa vida bovina, a única “distinção” é a insônia onipresente: “No
curral da insônia, / rumino palavras pastadas / na ribanceira dos dias”. Aliás,
a insônia mesma torna-se um “trabalho” dentro dos “dias”, como mostra, já a
partir do título, “lida”:
“Peleja
para pegar
no sono.
Repele
os becos
em que
os pensamentos
giram em falso.
Rumina
os restolhos
ofertados
pelo dia.
Coloca
cunhas de
imagens
de bicas d´água
e pastagens
para que represem
os círculos infernais...”
Mais adiante, em “insônia”:
“Passou a noite na capina.
Quanto mais capinava
mais tarefa espichava.
Acordou com o corpo moído.
Agora o olho desconfiado
não quer mais dormir
com receio de trabalho
dobrado.”
Mas outro poema, além de “reboco”, situado numa sexta-feira alçada a um
plano simbólico que permeia a civilização ocidental (a da Paixão), talvez seja
a mais cabal demonstração da arte com que esse poeta fazia os grandes temas da
“condição humana” passarem pelo crivo dos “trabalhos e dias”, pelo “áspero
caroço” dos instantes, engolidos ainda assim, pela roda dentada4:
“A mulher que ganhou os peixes
não traz os olhos cabisbaixos
nem os ombros arqueados.
Treze peixes finos e prateados
deslizaram para dentro da sacola.
A mulher que ganhou os peixes
dá uma gostosa gargalhada.
Para que bairro de Belo Horizonte
irá com sua sacola de peixes?
Vai comentar o presente
com o cobrador de ônibus?
Usará a frigideira preta
que fica no armário da pia?
Vai passar os peixes na farinha,
fritá-los e servi-los bem sequinhos.
Quem dividirá os peixes com ela?
O marido aposentado? Os filhos?
Haverá um gato eriçado
defendendo o inesperado das tripas?
A mulher que ganhou os peixes
não os salgou com sua mágoa.
Recebeu-os como um milagre
embora lhe fossem dados de esmola.” (“sexta-feira da Paixão”)
Assim, nessa nossa condição mais-que-contingente, onde tanto não tem
cabimento na linguagem (“...nenhuma palavra / traduz o tormento / somente grito
/ gemido / uivo / corte / ferimento / podem
dizer / o que não tem / cabimento”), é necessário e urgente ficar atento (“...
a atenção: / forma natural /de oração” lemos no poema inaugural, e um dos mais
belos, da antologia), sob o vento frio de julho, aos virtuais pêssegos da
primavera (afinal, Hesíodo nos diz em seu poema sobre os trabalhos e os dias,
após narrar o mito de Pandora: “...Lá mesmo só Esperança, na casa inquebrável /
ficou, dentro do cântaro, sob as bordas, e não porta / afora voou...”5),
mesmo sendo a morte nosso horizonte, fazendo o equilibrista estremecer de calafrio, na “antecipação do abismo”.
Numa poética que é “Roçar de andorinha / entre voo e pouso”, o mundo da
experiência, sendo também desejo, pede e não encontra o fio que a solde:
“Os pensamentos saltam do trilho
e ferem e vibram e caotizam,
sem que nenhum fio
possa soldá-los...”
Notas
1
Composta pelos seguintes livros: Azul navalha
(1988); As faces do rio (1991); Do silêncio da pedra (1996); A carne e o tempo (1997); Ruminações (1999); Mundo mudo (2003); O homem
inacabado (2010).
2
Do qual cito um trecho:
“Naqueles dias tão transparentes,
ela
pressentia a noite que depois viria?
Aquela
película de mágoa acompanhou-a,
dormente por
dormente, desde o Rio?
Nas
conversas com o vento,
sabia que um
dia abriria em mim
a mesma
ferida que consigo trazia?
Nas súbitas
aparições de santos,
antevia os
mesmos signos da melancolia,
impressos
nas correntes dos genes,
a memória da
dor gravada nos neurônios?
Seriam
também meus os vincos de sua carne triste?
Se acaso
soubesse disso, me avisaria
que nem pó
de carvão, nem água boricada,
nem mesmo a
visita do filho de Aquiles
fechariam a
ferida que nós dois possuíamos?”
3
O próprio poeta nos diz explicitamente:
“Baldados os
trabalhos e os dias,
os abraços
em gente sem serventia
e os apertos
de mão de última hora.
Ama só
aqueles de quem nasceu,
a quem deu
vida e os amigos
cujos afetos
enraizaram-se na alma.
Que não se
gaste apreço ao geral,
ao que por
todo mundo é gostado,
às imagens e
notícias em demasia...”
No trecho
acima, de “tatu-bola”, temos uma espécie de convocação para a concentração no
ofício de viver e seus afetos, um não à dispersão, à falsa ideia de se estar
“conectado” com o mundo em geral, tão vendida nos dias atuais.
4
“Um tapete de goiabas
estende-se
sobre a grama.
Os jacintos
em bloco
ergueram as
suas flores.
Poderia ser
este o lugar.
Este o tempo
de repouso.
Mas a roda
dentada nunca para.
Mói o
caramujo envolto em formigas.
Mói o cão
içado do poço por um balde.
Mói os fios
de cabelo de Anita
que protegem
os pés de rosa.
Mói as
rosas.
(Em direção
ao rio,
lá vai a
mulher com a pedra no bolso.
Lá está ele
na cama
com os tubos
no nariz.)
Há perfumes
de jacintos
e goiabas vermelhas de outono.
Cada
instante tem sua polpa
e no centro
o áspero caroço.” (“a dureza do instante”)
5
versos 96-8 (ed. Hedra, 2013)
Ligações a esta post:
Quando da morte do poeta, Pedro Fernandes escreveu algumas notas sobre o poeta Donizete Galvão que podem ser lidas juntamente com outros poemas aqui.
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