O irmão alemão, de Chico Buarque

Por Rafael Kafka



Aos vinte e seis anos recentemente completos, peguei-me pela primeira vez ansioso em comprar um livro de um autor vivo que fora lançado havia pouco tempo. Confesso, não sei se por puritanismo literário ou para dar uma de hipster mesmo, que a maioria dos autores que leio estão mortos ou morreram em tempos próximos aos atuais, como Gabriel García Márquez. Na verdade, talvez eu não seja um hipster ou um puritano, mas alguém que aprendeu a gostar de ler pela leitura dos clássicos. Daí essa predileção pelos autores consagrados por um certo cânone. Mas devo confessar que, mesmo esse cânone, em certos momentos é desprezado por mim... Muitos autores que li há alguns anos não são mais lidos por mim hoje. De certa forma, a minha preferência por autores de tempos idos se justifica por esse meu aprendizado de gosto pela leitura tido de forma clandestina, saindo dos seios do analfabetismo e procurando refúgio nos livros de minha prima e depois nas bibliotecas e sebos, locais onde gastava o dinheiro que eu não tinha para ser feliz em meio às palavras. Quem me dera ter nascido em meio à casa surrealista de Sérgio Buarque de Hollander, pai do fictício Chico que me levou à livraria, aos vinte e seis anos de idade, feito um fã aloprado atrás do último romance escrito por essa lenda.

Gosto muito da literatura de Chico, a qual conheci em 2008 em mais uma das indicações de professora Socorro, minha educadora em meu ensino médio, no último ano dele, que mais do que professora de Biologia foi uma mãe e uma mediadora de leitura para mim. Em sua casa, conheci Franz Kafka, Milan Kundera, Henry Miller e Chico. Ela me mostrou, de forma ostensiva um dia, a capa do romance Benjamin, o qual depois ela me emprestou. A leitura desse romance curto, mas com efeitos narrativos incríveis, com um narrador-câmera que mais fazia a história se contar por si mesma, sem necessariamente alguém falando, encantou-me demais. Desde então, li alguns outros livros de Chico, sempre achando que ele escrevia pouco demais para alguém com sua genialidade, ignorando o fato de que eu estava cobrando a uma pessoa viva, e não a alguém já falecido, um nível de produção acelerado demais e que me desse o espólio de possibilidades de leitura dado por um escritor morto e dono de uma imensa obra acabada. Ademais, em minha ignorância, eu ainda deixava de lado a imensa contribuição musical dada por Chico Buarque, músicas cuja melodia sempre é permeada por letras que possuem uma incrível densidade poética.

Dos livros lidos até então, Leite derramado era o que mais me impressionara pela técnica narrativa cheia de fragmentos de memórias e ilusões, mostrando um personagem com todo o humor ácido e falador de um bom Gabo. Mas O irmão alemão conseguiu me causar uma impressão mais forte do que a do livro anterior pelo seu estilo de narrativa extremamente fluído. A história se passa com uma versão fictícia de nosso Chico. Aqui, ele é um professor de Língua Portuguesa, filho de um grande intelectual, Sérgio de Hollander. A relação entre pai e filho é fria, distante, a qual cria um clima de ciúmes constante entre Chico e seu irmão Mimmo, como sua fiel mãe o chama. Se temos a imagem de um Chico Buarque boêmio, capaz de fazer com que todas as mulheres o desejem por sua imensa sensibilidade e capacidade de entender o lado feminino do ser humano, aqui o vemos se sentindo inferior ao irmão bronco, mas de bela voz, que arrasta sem dificuldades moças virgens para sua cama com uma frequência incrível. O protagonista, muitas vezes, deve se conformar em ser o consolo das moças cujos corações foram partidos pelo irmão aventureiro e ele ainda precisa lidar com a certeza de que não tem os dotes do irmão para conquistar moças de forma tão intensa, a ponto de se ver na dolorosa situação de ver a menina amada sendo desvirginada por Mimmo.

Ao contrário do irmão, Chico é um apaixonado pelas belas letras e tenta de todas as formas dar conta das paredes de livros que forram a sua casa. Um belo dia, ele se depara com uma carta de uma moça alemã, Anne Ernst, na qual é citado um filho de Sérgio de Hollander em território alemão, onde ele esteve como correspondente de um jornal brasileiro na década de 1930. Chico então se torna tão obcecado como Benjamin era por Ariela, procurando incessantemente pistas do sumiço de seu irmão alemão.  E essas pistas vão surgindo, como o nome de um famoso professor de piano citado por uma amiga erótica de Chico, nome esse que ele encontrou na carta e depois pesquisou em uma enciclopédia: Heinz  Bogart, o qual passara a viver em outro país, a França, provavelmente fugindo por conta da ameaça nazista e hoje vivia em São Paulo com um nome francês e uma esposa a qual Francisco, em sua obcecada caça, convertera automaticamente em Anne Ernst. Ao descobrir o seu erro, novas pistas vão surgindo, as décadas passam de uma forma que mais parece um sonho e Chico descobre que seu irmão Sérgio Ernst se tornou um ator de relativa fama na Alemanha e ele, ao ver o irmão em vídeo e poder recordar um passado que não teve, consegue achar as semelhanças físicas e até mesmo psicológicas, mesmo que sutis, que unem os dois irmãos.

Mesmo sendo um livro curto, O irmão alemão é um livro que permite um sem número de leituras e análises. Pode-se analisar o livro como uma psicanálise de uma existência perturbada pela desunião latente e evidente entre pai e filho, o qual procura compensar a mesma achando uma peça do passado do pai que não se encaixa na poderosa aura de sabedoria que emerge do intelectual brasileiro. Pode-se também avaliar a linguagem realista do texto, que em nenhum momento perde o teor sério, contemplativo, mesmo quando se depara diante dos maiores devaneios da mente do narrador protagonista.

Há ainda a possibilidade de analisar esse livro como um texto sem classificação correta. Ele é vendido como romance, mas há dentro de si diversos elementos autobiográficos, mesmo que fatos óbvios, como a carreira do Chico cantor, sejam deixados de lado. Há também os elementos de relatos de testemunho, os quais conseguem passar de forma magistral por dois momentos importantes da história mundial: a ascensão do nazifascismo e o surgimento das ditaduras militares, mais especificamente a brasileira. Em diversos momentos, o autor brinca com o chamado leitor implícito, fazendo com que o nosso saber referente aos dois conflitos citados, o massacre contra judeus e minorias e a tomada de poder pelos militares, completem lacunas deixadas pelo narrador. Exemplo disso são os constantes questionamentos acerca do rumo que a vida de Sérgio Ernst tomou na Alemanha nazista por ser filho de mulher judia, nunca sendo citada de forma explícita e crua a morte nos campos de concentração. No tocante à ditadura militar brasileira, deparamo-nos com cenas de desaparecimento forçado e repentino, a censura, as visitas repentinas da polícia às casas de civis e a forte repressão diante de protestos em prol de mudanças políticas.

Ainda pode-se analisar tal livro pelo viés metalinguístico, pois diante de nós está um Chico Buarque que não é o nosso Chico e sim uma representação, um personagem. O livro leva-nos o tempo a questionar onde começa a ficção e onde começa a realidade e isso chega a ser perturbador em certos momentos.

Uma situação bem interessante no livro é a estranha onipresença de Sérgio Ernst. Em todo o texto, ele só será mostrado, digamos assim, na cena final do romance, e mesmo assim em uma projeção. Ainda assim, ele é o mote de todo o enredo, a figura que é citada em praticamente todas as páginas, o ser que é o elo de união entre um filho rejeitado e um pai fechado em si mesmo e nas palavras.

Por esse motivo, por estar sempre ali sem estar realmente, Sérgio Ernst lembra demais o George Riley de Alan Resnais de seu último filme Amar, Beber e Cantar, um ser cuja presença é o tempo todo aludida e gera cenas de ciúmes e dramas amorosos que deixariam Machado de Assis e Woody Allen impressionados, mas nunca é visto por nós, nem mesmo quando está em um caixão. Isso me leva a pensar que a presença que uma pessoa possui em nossa vida é um fator mais psicológico do que físico.

Outro ser artístico muito lembrado por mim foi Nico, personagem do incrível conto “Cartas de Mamãe” de Julio Cortázar que abre a coletânea de histórias curtas chamada As armas secretas. Nico faleceu dois anos antes do conto começar a ocorrer, mas um belo dia sua mãe começa a enviar cartas ao filho em Buenos Aires. Luis, irmão de Nico, e Laura, ex-esposa deste último, a princípio pensam ser um delírio da já senil senhora, mas em certo momento começam a se sentir perturbados demais pelo fantasma do irmão/amante morto, cujo fim determinou o começo do atual relacionamento dos dois. Aos poucos, Nico se torna uma presença tão densa no enredo do conto que chegamos a duvidar se ele realmente faleceu, pois ao que tudo indica, ao menos nos temores e demônios do casal apaixonado que passa a desconfiar das raízes de seu amor, ele segue mais vivo do que nunca.

Chico Buarque se torna genial, pois em sua literatura permite um experiência de leitura muito rica, provocada por recursos estilísticos e narrativos que remetem a diversos outros autores importantes da literatura brasileira e mundial. Chico tem o raro dom de criar personagens tão humanas e apaixonantes que não sabemos se são de tinta e papel ou de carne e osso realmente. Nele, a literatura é tão bela, tão cheia de significado, que achamos uma pena a vida não ser desse mesmo jeito e queremos fazer de tudo para que a vida imite a arte, como diria Oscar Wilde.

Isso sem dúvida o credencia a ser um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Se não o maior.

Ligações a esta post:
Leia também as notas de leitura de Alfredo Monte para O irmão alemão publicadas aqui tão logo o romance chegou às livrarias.



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