Monteiro Lobato e o racismo
Por Cesar Kiraly
Antes de tudo, penso que devo dizer que o
contextualismo é sempre bastante falso. A regra de sua prática é a
relativização. Ou, o que é bastante pior, o exercício do amálgama. Talvez pior
do que o contextualismo seja o relativismo, mas o quadro se torna ainda mais
apavorante quando os dois estão juntos. Mas por quê? Porque a união do
contextualismo com o relativismo dá início à prática pública da falsificação de
objetos verdadeiros. Modo pelo qual os valores parecem verdade, mas duram muito
pouco. São valores bem mais baratos, quando comparados com os verdadeiros,
exigem muito menos, e fornecem, no que concerne a vida coletiva, muito, mas
muito menos ainda.
Mas se digo isso, devo ter alguma intenção. Sim, afirmar que um enunciado moral
é falso independentemente do contexto ou da relatividade. E, da mesma forma,
que um enunciado moral é verdadeiro, sob os mesmos rigores. Por certo, que
existem fenômenos mais confusos, da mesma forma, como existem modos da
falseabilidade. Algo pode deixar de ser verdadeiro, ou deixar de ser falso. Mas
mantém o seu rastro de historicidade. Mas também existem enunciados amplamente
verdadeiros, e outros amplamente falsos, sem qualquer confusão ou falseabilidade.
Também é correto dizer que a falseabilidade
das verdades é necessária para a mudança do mundo, para melhor ou para pior.
Cometamos algumas violências dando alguns
exemplos. O enunciado a liberdade é melhor do que a servidão é sempre
verdadeiro. Mas o enunciado a democracia é melhor do que a tirania, permite uma
série de falseabilidades. O que nos permite dizer que algumas democracias são
mais verdadeiras do que outras, ou tomarmos critérios distintos para avaliar
democracias de trajetórias diferentes. Não somos relativistas ao dizer que por
critérios diferentes a democracia francesa possa ser melhor do que a
estadunidense. E isso não torna o conceito de verdade menos rigoroso, mas
percebemos que a especificidade do enunciado nos exige ser mais inteligentes do
que com enunciados mais gerais.
O racismo é sempre falso. As tentativas de
relativização do racismo ou o seu contextualismo procuram falsificar o valor da
igualdade, por pílulas humilhantes de integração. O racismo presente na obra de
Monteiro Lobato, seja nos livros para adultos, ou nos escritos para o público
infanto-juvenil também é falso. O racismo na obra de Lobato não pode ser
amenizado. Mas não existe racismo na obra de Lobato, apenas quanto ele trata de
negros. As teses racistas de Lobato decorrem de uma leitura vagabunda que
empreendeu da tradição pseudocientífica da eugenia. Pode-se dizer que é o que
há de menos original em suas obras. Lobato sempre foi afeito ao procedimento
literário da mimesis. Ele traduzia muitos autores franceses e anglo-americanos,
e, na tradução, fazia com que os personagens, vindos com a leitura, passassem a
existir de modo autêntico em seus livros. Não só os personagens históricos dos
livros para adultos, como quando cria para si e para outrem o personagem do
brasileiro à busca de autonomia energética para o seu país, quanto quando
coloca os personagens do sítio para dialogar com Peter Pan.
A tradução lobatiana é uma das gêneses de sua incorporação dos personagens.
A outra é a invenção de personagem respondendo a um problema social específico.
No caso da tradução, ele toma personagens que em suas circunstâncias originais
eram apenas personagens, e os passa a utilizar para defender conceitos. Ainda
que exista alguma semelhança com os originais traduzidos, a incorporação
promovida por Lobato, faz aparecer um personagem que não é bem personagem, e um
conceito público, que não é bem conceito. A prática de Lobato, em toda a sua
obra, de pensar por personagens conceituais é o principal operador de sua
genialidade autoral política. Mas tal não acontecia com o eugenismo. As frases
mais escandalosas de Lobato sobre o eugenismo estão na sua correspondência. Mas
isso não lhe retira nenhuma responsabilidade. E o eugenismo aparece na obra de
Lobato tal com está nas malfadadas fontes originais lidas de modo idiota. O
servilismo de Lobato com relação ao eugenismo é muito semelhante aquele
praticado por Oliveira Vianna, de quem Lobato publicou o Populações Meridionais
do Brasil. Eles sabem, mas não pensam, bem o que estão falando e repetem como
papagaios. Inclusive nas cartas que trocam, disponíveis, as recebidas por
Vianna, na Casa de Oliveira Vianna em Niterói.
O racismo de Lobato, todavia, é distinto de
sua preocupação com o imaginário negro e mestiço. Por certo, que o racismo de
Lobato é substituído em sua obra por coisas muito melhores. Ele não é um
racista com preocupações de consistência em suas afirmações. Mas não é o
racismo que faz com que Lobato promova o Inquérito do Saci. Nesse ele recolhe
cartas enviadas ao jornal Estado de São Paulo, uma vez os leitores provocados a
fazê-lo, nas quais manifestam as suas representações do Saci. Os adjetivos com
relação às especificidades fisionômicas dos negros são abundantes. Mas não é a
certeza da superioridade dos brancos com relação aos negros que está em
questão, mas certa forma de falar denunciadora de uma prática de desigualdade.
Em função das cartas que recebe, Lobato traça, em virtude do seu interesse como
crítico de arte, qual seria a representação do Saci. Uma das cartas enviadas é
do próprio Saci, corrigindo algumas incorreções narrativas dos assustados
leitores. Ora, o Saci não é uma representação racista. O Saci é o Saci. Filho,
é certo, de uma circunstância de desigualdade.
Ainda que não haja a vontade de fazê-lo,
Lobato e Oliveira Vianna inauguraram um racismo inteiramente brasileiro. Não
havia vontade de incorporação, essa originalidade é simplesmente acidental e só
pode ser percebida de modo topológico. Os racismos que não são tipicamente
brasileiros podem ser descritos da seguinte forma: [i]. Aquele racismo que diz
que brancos são superiores aos negros e por isso não podem viver entre negros e [ii]. Aquele racismo que diz que brancos são superiores aos negros, mas que podem
viver entre negros desde que orientem a civilização por modos civilizacionais
brancos, mas sem miscigenação. Gilberto Freyre dá origem ao primeiro racismo
com alguns elementos tipicamente brasileiros, mas ainda não se pode falar que
seja inteiramente brasileiro, porque apenas acrescenta, ao tipo ii, a
possibilidade da miscigenação.
Mas é claro que Freyre o faz com um
brilhantismo inigualável. Ainda que considere a necessidade da estrutura social
branca, para defender a miscigenação, mostra o que essa, de fato, tem de boa.
Não só o atraente sadismo-masoquismo brasileiro, mas o adensamento afetivo das
relações sociais por sobre a estrutura branca. A miscigenação, como preserva
uma estrutura branca, é orientada pelo elemento branco masculino a se
miscigenar com as mulheres negras. Uma vez a miscigenação instaurada, sempre do
mais branco, princípio-ativo, para o mais negro, princípio-negativo. A
tendência sendo estrutural, o branco não precisa ser branco na pele, ele pode
ser branco pela ocupação de um lugar estrutural branco, como na miscigenação do
mais rico com o mais pobre. Tal direção sempre com ganhos para a afetividade de
ambos. O racismo de Freyre é estruturalmente estrangeiro, mas completado por
uma dramaturgia brasileira. Para não se falar no açúcar, na rede de dormir etc.
Não só o racismo tipicamente brasileiro é
acidental em Lobato e Vianna, como também é acidental para o pensamento social
brasileiro. Não há nenhuma defesa da miscigenação, existe um profundo
desconforto com ela. Mas existe a percepção de que estamos diante de um fato: a
miscigenação existe e alterou a estrutura da nossa sociedade. Julgam no
exercício do racismo que é melhor que a miscigenação não tivesse existido.
Freyre partiria de uma premissa falsa. Não existe sociedade miscigenada de
estrutura civilizacional branca. A nossa estrutura social, segundo uma
constatação trágica, gostemos ou não, tornou-se outra. É com essa inflexão que
Lobato e Vianna inauguram o racismo tipicamente brasileiro.
Guerreiro Ramos é quem percebe, atento ao
pensamento de Vianna, que de modo acidental, em toda a sua acrítica repetição
de eugenismo, atrelada que era, mas não de modo necessário, em outra chave, a
uma rigorosa teoria social de matriz anglo-saxão, estava presente a noção de
que as estruturas acompanham a sociabilidade. Elas se alteram com o “elemento
de cor”. Ele é instituinte da nossa sociabilidade. Apesar de todas as besteiras
eugenistas propaladas por Vianna e Lobato, acertam no que não viram, ao
contrário do infeliz dardo amassado lançado por Freyre. Se Freyre nos concilia
com o nosso sadismo originário, Vianna e Lobato nos mostram que a despeito
mesmo do nosso desagrado com a miscigenação, não temos controle sobre aquilo
que somos, aquilo que somos se institui a despeito da nossa vontade. Cabe,
portanto, lidar com a essa instituição.
O racismo de Lobato não está no Barnabé e na
tia Nastácia. Também não está no Inquérito do Saci. Não está nos adjetivos
dados por Emília. O racismo de Lobato é sobretudo epistolar. Como quando nas
correspondências com Godofredo Rangel, reunidas com o título A Barca de Gleyre,
comenta do seu sentimento de desagrado ao ver os mestiços de traços grossos,
sujos, de modos horrendos, a manifestar, pela aparência, que amulatam o
elemento branco, além de serem homens mutilados por acidentes ou por
más-formações. Não há quem duvide do desprezível asco sentido por Lobato ao ver
os mulatos mal-formados e mutilados. Lobato sente uma forte repulsa sexual aos
mulatos. Podemos arriscar que também fosse o sentimento de Vianna. Repulsa
sexual essa ausente em Freyre, pelo menos no que concerne a relação entre
brancos e negras, brancos e negros e de brancas e negras.
O afetamento moral de Lobato com os
experimentos morais descritos em seus contos em que negros são maltratados,
elemento formador da nossa simpatia, não o absolve dessa repulsão sexual. Mas
para vencê-lo enquanto racista é preciso vê-lo enquanto racista, e, até agora,
parece que vimos pouco ou nada, ou vimos pouco e não entendemos nada. Se não
atentarmos para o racismo de Lobato, para a sua crueldade particular, muito
mais sutil e verdadeira do que aquela em Freyre, não seremos capazes de impedir
a instituição contemporânea dos modos de racismo que ele já denunciava.
Cabe-nos saber, por que Lobato, com a sua grandeza, foi tão pequeno em seu
racismo. A sexualidade é uma chave de compreensão. É preciso alguma frieza para
olhar duramente para esse racismo sexual que nos é constitutivo, e, ultrapassar
a sua crueldade.
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