A visita

por Rodrigo Della Santina




Rumores puseram-se joelhos no chão e, palmas no asfalto, gatinharam até mim. Não dei de início muito ouvido — achei que seria mais uma história sem graça. No fim das contas não foi. Não foi também assustadora. (Inquietante talvez?), (anímica?). Deixe pra lá. O leitor que lhe dê um molde. Aconteceu no ano de mil novecentos e sessenta e seis, eu acho. Max Brod (aquele) se sentava em sua cama preparando a hora do sono. Tinha posto as costas no travesseiro e O Processo nas pernas,
derramadas de comprido sobre o lençol. Lia mais uma vez o décimo capítulo, as últimas páginas, quando a luz do quarto piscou. Não se deu conta desse indício primário da ciência do sobrenatural; virou mais uma página e torceu o pescoço para a esquerda. A luz agora desceu suas pálpebras até o meio e tornou a abri-las rapidamente. Max notou seu cansaço, sua luta com algo que a forçava a arriar-se. Ficou alguns segundos em silêncio, olhando para o teto, para a lâmpada, e voltou ao capítulo. Um ventinho frio e sorrateiro se insinuou pelo quarto e foi se esfregar em sua nuca. Ele levantou os ombros [como colunas de mármore] a impedir o despudor do vento, e depois de marcar a página com um pedaço de folha branca foi fechar a janela que não lembrava ter deixado aberta. Aqui o estranho ocorreu
— a janela estava fechada — e ele não recordava ter visto as cortinas dançarem. Procurou ainda por alguma fresta, um buraco na parede ou na própria janela, mas nada. Abriu novamente o livro e retirou a folha branca. A luz, então, cerrou completamente os olhos, e assim ficou por uns minutos. Durante esse cochilo, Max botou a mão direita sobre o livro, como a recear que algo ou alguém pudesse tomá-lo de si, e esticou as orelhas. No primeiro minuto não ouviu nada: apenas o silêncio correndo em volta da cama. Depois, o barulho de uma porta se abrindo — e depois o barulho de uma porta se fechando. Esticou mais um pouco as orelhas, os olhos arregalados na escuridão. Ouviu um toque e um toque de uns sapatos surdos no assoalho.  Foram se aproximando simultâneo ao girar da cabeça de Max e pararam a seu lado.
Max ficou olhando para a funda escuridão infinita
Estendeu o braço esquerdo no meio dela e sentiu
— nada.
Viu, nesse instante, algo se mover no ar. Pensou num vaga-lume. Apertou bem os olhos e os fixou no ponto onde o havia visto. A luz volta. Fraca. Surge como um relâmpago a imagem em preto e branco de um homem magro e moreno em traje social e com um chapéu na cabeça olhando [assim dizem] furioso para ele [assim pareceu a Max, que, no susto, encarapitou-se na cabeceira da cama e soltou pela boca um medo, um horror de lâmina e de estátua].
Com calma, o cenário desfeito, O Processo de castigo num canto do quarto, umas folhas quebradas, a solidão e o silêncio de posse da coroa e do trono, Max escorregou pela cabeceira como uma lesma e respirou sobre o travesseiro pisado. Se manteve quieto alguns instantes, bebendo o ar mais e mais lentamente, até que a imprevisibilidade do espanto se esvaiu de si e ele então pegou o livro inocente e se arranjou de novo na cama. Mal o fez e a imagem, a presença daquele homem monocromo surgiu (agora nítida) à sua frente, e o olhou como antes, furioso como antes, e descolou os lábios para dizer alguma coisa, e os deixou no meio, como uma porta entreaberta ou mal fechada. Max sentiu o horror lhe atravessar os olhos escancarados, descer pela garganta, oprimir o estômago e oxidar a alma. O homem não se movia. Max notou. Olhou não sem medo para seu rosto [seus traços lhe acariciavam a memória] e viu nele a máscara espectral de seu pesadelo — Kafka!
que havia escalado os montes abrasantes para lhe dizer num zunido: — Meus originais.

***
Rodrigo Della Santina é poeta e escritor, autor de dois livros de poesia (“Intertrigem”, de 2005, esgotado, e “O limiar do surto”, de 2008, respectivamente pelas editoras CBJE e Scortecci) e de um e-book de mini narrativas intitulado “A cor da chuva”. Faz colaborações em blogues pela internet e teve dois de seus trabalhos (“Num Café” e “A carta”) publicados, respectivamente, nas revistas Benfazeja e Flaubert.


Comentários

Muito boa a escolha da imagem, meu caro!
Grato e um abraço,

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