Sade, o animal que habita em nós
Por Jesús Ferrero
Ilustração: Mary Evans. Marquês de Sade.
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Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como o marquês de
Sade, nasceu em 1740. Era pleno Século das Luzes, e teve a honra de ser
perseguido tanto pelo Antigo Regime como pela Assembleia Revolucionária. Dizendo
em outras palavras: nenhum sistema podia assimilá-lo, e apenas o passar do
tempo e a mudança de atitudes morais e filosóficas hão permitindo que toda sua
obra saia à luz. Embora, ainda hoje não seja fácil julgá-lo. Dependendo do
prisma pelo qual se olhe, pode ver-se também como alguém que levou ao limite do
possível o espírito dissoluto e despótico da aristocracia do Ancien Régime. Talvez, ambas tendências conformam
uma unidade dialética inseparável de sua figura, e talvez, as duas tenham razão,
ainda que, só parcialmente.
Embora em sua obra apareça com muita frequência a figura do verdugo em
atos descritos com frieza e distância, o certo é que passou boa parte de sua
vida em cárceres e asilos para doentes mentais e, nesse sentido, foi claramente
uma vítima purgando delitos que não havia cometido, a não ser que consideremos
um delito seus livros. Dito isso cabe pensar que, aquilo que o condenou foi a ausência de
liberdade de expressão, mais que sua alegada apologia do crime e o horror.
É evidente que não foi tão dissoluto como suas personagens e não poucos
de seus contemporâneos se entregaram a orgias de sangue como as que Sade não participou:
mas, bastava como imaginá-las. Foi, mais por isso, que Sade se fez original, uma vez
que não há como ignorar que parte de sua obra está estreitamente vinculada a um
gênero muito em moda no seu tempo: o
libelo obsceno e demolidor.
Mas Sade praticou todos os gêneros literários da época: romance,
ensaio, poesia, teatro, e algumas de suas obras mais celebradas, como A filosofia na alcova e seus romances,
estão cheios de um humor corrosivo e desestabilizador. E sua obra seguiu servindo de matéria ou
inquietação para muitos outros escritores que vieram depois dele, muitos de
nós contemporâneos.
Octavio Paz, por exemplo, lhe dedicou um bonito poema: “O prisioneiro” e um ensaio que no Brasil foi publicado como Um mais além erótico: Sade;
Rafael Conte colocou-se em sua alma fazendo um relato em primeira pessoa: Eu, Sade. E Gonzalo Suárez lhe dedicou
um monumental romance, presidido por uma desconcertante objetividade cinematográfica,
não de todo plena de um afeto distanciado pelo marquês: Cidadão Sade.¹ Isso para citar alguns nomes da comunidade de língua
espanhola.
Na França, seu país natal, também segue provocando inquietações. Os textos
dedicados à sua figura são inumeráveis e alguns impressionam por sua sutileza: Sade meu próximo, em que Pierre
Klossowsky aprofunda-se nos aspectos mais abismalmente humanos de Sade. E o
ensaio de Roland Barthes (este já publicado no Brasil), Sade, Fourier, Loyola. Pode surpreender a relação que Barthes
estabelece entre o marquês e Loyola, mas não sem advertirmos que nos dois
detecta uma mística da enumeração. Como Inácio de Loyola em seus exercícios,
Sade quer ser exaustivo e esgotar todas as fantasias possíveis, até que já não possa
existir nenhuma mais: tem essa ambição como uma filha da Enciclopédia.
Já é comum dizer que se trata de um escritor que melhor produz
aborrecimento. Em seus romances não parece tanto. Pode ser mais tedioso os
livros inclassificáveis como Os 120 dias
de Sodoma, mas não se lê a partir de um ângulo psicológico e antropológico,
pois ilustra muito todo esse magma sangrento e totalitário que alberga a zona
gris da alma, essa zona em que a figura humana deixa de comover e emocionar
para converter-se numa substância abstrata sobre a qual pode exercer toda a
violência que omitimos normalmente, e que segundo Freud, seria o resultado mais
íntimo e inconfessável do mal-estar da cultura e de todas as suas mordaças. Ao
menos esquecemos que dentro de nosso ser mal vive um animal que clama por seus
direitos, e que às vezes desperta para mostrar sua cara menos complacente.
Sendo em si mesmo um racionalista, abre de par em par as portas do
irracional. Sua verdadeira filosofia aparece com bastante clareza em seu poema “A
verdade” (leia abaixo), em que atribui à natureza um furor desatado e uma violência desmedida
e aconselha deixar-se levar, sem nenhuma resistência, por esse mesmo furor e
essa mesma violência.
Pode ser muito discutível essa ideia da natureza, mas com toda evidência
nos encontramos ante uma visão que adentra ao espírito vulcânico do Romantismo
e a todos os excessos do simbolismo e do surrealismo. Curiosamente, ninguém chegou
tão próximo na exploração da crueldade. Sade marca um limite louco que nos
segue deixando estupefatos, apesar de levarmos já um bom tempo aceitando-o
entre nós.
Talvez haja escritores que nunca acabam de ser assimilados por completo
e nisso se fundamentaria sua verdadeira glória. Nietzsche seria um deles; o
outro seria, sem dúvida nenhuma, Sade.
Notas:
1 Exceto dos títulos que mencionamos como brasileiros, os outros são traduções livres a partir do espanhol.
* Texto traduzido livremente [e com intervenções] a partir de “El animal que habita nosotros” de El País.
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