Professores alienados que agem como formadores de opinião
Por Rafael Kafka
O título
dado a esse texto me remete aos títulos dados aos arremedos de poemas, contos e
crônicas escritos por mim durante minha primeira juventude, ali pelos meus
dezessete ou dezoito anos de idade. Mas hoje não o dou motivado por revolta
poética inspirada em punk rock a la Ramones ou The Clash, mesmo sendo hoje mais
ouvinte dessas bandas do que há oito anos. Hoje ele representa bem algo que
tenho percebido em meu cotidiano de educador: a demagogia em cima do ato
professoral que disfarça o quanto essa prática está afundada em problemas de
certa forma sérios demais.
A
inspiração desse texto começa em uma sala de aula repleta de professores. Nela,
discute-se acerca do popular amigo invisível das confraternizações de fim de
ano. Como eu estava com pouco dinheiro, digo a um professor, que tirei nessa
brincadeira ano passado, que torço para tirá-lo novamente, pois assim eu
poderei dar a ele um livro, já que ele gosta bastante de ler, apesar de que gêneros
os quais não aprecio demais. Neste momento, uma professora da área de Letras,
mais especificamente da área de redação, diz:
-Ah,
livros? Não aceito que me deem livros em uma época como o natal! Me dá outra
coisa, mas livros não!
A frase me
soou tão chocante que apenas ri com um riso debochado e ao mesmo tempo
preocupado da pessoa que isso pronunciou. Preocupado por uma simples questão:
como todo amante de leitura que se preze, sou do tipo de pessoa que vai a uma
livraria e pensa em comprar todos os livros possíveis mesmo que haja uma fila
imensa de títulos os quais ainda precisam ser lidos. O leitor é o pior tipo de
consumista, pois em seus atos de compra nunca sabe se está ou não a comprar
algo do qual não precisa naquele momento. Um leitor voraz é aquele que precisa
ter o livro perto de si, porque tem medo de que na volta ele não esteja mais na
prateleira. E isso vale também para a biblioteca. Em tempos duros como os
atuais, usei demais o serviço de empréstimo de livros neste ano e muitas vezes
peguei um livro apenas para não correr o risco de em uma futura vinda, no
desejo de lê-lo, alguém o tivesse pego antes de mim.
Não reclamo
se me derem livros. Jamais. E todos os leitores que conheço, como os camaradas
do Letras, minha amiga Kárita, minha filha do coração Cássia, todos, amam
receber livros não importando se é por mera formalidade, se por carinho sincero
ou se por um desejo simples obter algo em troca, como o sexo de um casal de
personagens que inventei recentemente em um conto. Livros são o contato de nós
conosco mesmo a partir de um contato muito íntimo com o outro cristalizado em
ideias e fendas de significados que serão preenchidas por nós. Quem lê se vê
envolto por uma teia de leitura e nunca consegue se libertar. Mas quem lê e se
torna voraz, quem lê e tem oportunidade de experienciar o que é querer sempre
ler mais e mais.
Ouvir uma
professora, colega de trabalho, falar que não quer ganhar livros no natal
porque prefere ganhar outra coisa qualquer me deixou preocupado. Talvez a
preocupação soe exagerada pela minha incapacidade de passar a limpo uma
situação concreta da minha existência para cá agora, porém o que tento dizer,
caro leitor meu irmão, é que minha leitura de mundo ao se deparar com uma
professora que lida diretamente com o ato da escrita, correlato humano do ato
de leitura, está me atestando que estou diante de um problema social muito
sério, a falta de hábito de leitura, afetando o modo de ser de uma pessoa a
qual deveria ser responsável justamente por fomentar esse hábito de leitura.
Citando
esse fato sozinho, posso soar exagerado. Mas a minha leitura de mundo é repleta
de situações extremamente marcantes de como professores não gostam de ler.
Lembro bem de meus tempos da primeira graduação no IFPA no qual professores
passavam trabalhos que consistiam em ler um denso material de pesquisa ou mesmo
uma obra literária, terminando tudo com uma discussão sobre aquilo tudo. Muitos
estudantes reclamavam demais da quantidade de textos a serem lidos que
afetariam as suas preciosas vidas sociais e sentimentais, pois como se não
bastasse eles terem aulas exaustivas a semana toda, ainda tinham de gastar
tempo estudando aquele monte de coisa chata, em ler? Dia desses, em um bar com
uma amiga, discutindo ideias de um futuro projeto para o qual eu a convidei e
que tem como meta a difusão do hábito de leitura, ela me falou da mesma
situação vivenciada agora pela quinta turma de Letras da instituição, onde
estudantes reclamam de uma professora que promove verdadeiros saraus em meio a
discussões críticas em sala, tudo com o intuito dos estudantes trocarem suas
ideias e impressões acerca dos textos lidos e assim tornar o processo de
aprendizagem de futuros professores algo muito mais vivo e profundo. Tais
estudantes reclamavam simplesmente pelo fato de que aquela professora não
entendia como eles iriam abrir mão de seus outros afazeres para estudarem e se
prepararem para serem professores capazes de falar para um estudante que ele
deve ler sendo eles também leitores. Não. Eles preferem, do alto de sua arrogância
acadêmica, serem professores que pregam amor à leitura mesmo que com elas
jamais troquem carícias e amores fugazes que sejam.
Professores
sem hábito de leitura já me soam como algo absurdo. Um professor da área de
Letras então... Lembro de uma aula tida em meu sétimo nível de estudo em curso
livre de língua inglesa. A professora solta algo bastante curioso: ela diz com
todas as letras que não suporta ler. Aquilo me causou um choque existencial
imenso, pior do que se tivesse uma barata e tivesse depois, em penitência,
alimentar-me dela.
Não sei se
leitor ainda me considera exagerado, mas a pergunta que fica diante dessas e de
outras cenas infelizmente corriqueiras é: como gerar sujeitos leitores se eles
estão sendo orientados por sujeitos que não são leitores? Há aí uma série de
implicâncias. Um sujeito não leitor fala de leitura sem entender o real poder
do hábito de leitura na vida de uma pessoa: essa inquietude de sempre querer
ler mais e mais que nos leva a não aceitar de forma tão fácil e aberta
argumentos prontos; esse despertar de nossa sensibilidade e de nossa cognição;
esse querer entender as entrelinhas de todo tipo de discurso; esse querer falar
sobre o que se leu que fomenta debates e questionamentos; etc. Um sujeito que
fala de leitura sem ler se entrega facilmente, pois sua fala é limitada, seus
cacoetes linguísticos muito previsíveis, sua visão de mundo extremamente
limitada e ele diz que não quer ganhar livros no natal com a mesma arrogância
do analfabeto político que fala com orgulho épico o quanto odeia política. O
professor que não recebe livros no natal é do mesmo grau de ação e discurso que
o analfabeto político: é um alienado que pensa ser original, mas é mais do
mesmo, como diz o professor Nilo Carlos.
Ao mesmo
tempo, esse professor adora questionar os métodos mais tradicionais de ensino e
falar de como os projetos de ensino que valorizam a ludicidade devem ganhar
mais e mais espaço em sala de aula. Ser lúdico é muito importante e eu afirmo
que sou péssimo nisso. Todavia, muitas vezes a ludicidade vira apenas uma série
de jogos em sala de aula cuja maior função é simplesmente ganhar tempo para
fugir de qualquer discussão mais séria em sala de aula.
Não sou a
favor da volta de coisas como a palmatória ou a educação bancária denunciada
por Paulo Freire. Todavia, sei que a leitura move montanhas e um professor que
sabe utilizar bem sua voz e sua postura em sala, provocando nos estudantes o
desejo de ler, é mais eficaz do que aquele que se preocupa demais com jogos
pedagógicos os quais correm o risco de favorecer uma aprendizagem pragmática
demais. O que eu quero dizer é: ser lúdico é muito bom, mas ser lúdico sem
gostar de ler, sem consciência teórica do que está fazendo, é formar opiniões
baseadas em visão de mundo vazia.
Uso o termo
“formar opiniões” pois sempre ouvi que professores são seres formadores de
opinião. É um termo interessante, mas que sempre me remeteu à imensa demagogia
existente no tocante ao ser professor. Ouço diariamente, uma série de discursos
extremamente poéticos concernentes à vida de professor, mas ao mesmo tempo não
vejo discussões sérias sobre a valorização do profissional dentro do contexto
social em que vivemos. O professor é sacralizado como forma de compensar sua
vida ingrata dentro da sociedade contemporânea, a qual ainda não é discutida de
forma devida por setores competentes. O belo discurso suplanta a imagem da
visão ingrata de que o pilar social mais importante, o educador, não é tratado
como deveria.
E discutir
a valorização do profissional da educação perpassa pela discussão básica do
quanto este professor, em especial de Letras, está preparado para falar daquilo
que fica em sua competência. Como são formados os professores leitores que em
breve deverão formar leitores em sala de aula? E como serão os leitores
formados do contato com essas pessoas que simplesmente expressam em gestos
pequenos que não suportam a leitura?
Talvez eu
termine esse texto ainda sendo exagerado para alguns. É o drama de escrever:
você faz um texto com uma intenção tal que será invadida por uma intenção
leitora e no fim pode nada restar do projeto original na mente desse sujeito
rebelde que é o leitor. É um drama do qual gosto. O gesto da moça dizendo que
não quer ganhar livros no natal, com um ar de desagrado imenso; o gesto dos
estudantes reclamando porque precisam ler; o gesto da professora de inglês que
fala com ar de nojo não suportar leitura me faz pensar demais na necessidade de
se discutir como a leitura é trabalhada na universidade e como o professor tem
poder de mudar vidas, positiva ou negativamente, dentro de sala de aula.
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