Papai Noel à brasileira
Sabemos que Papai Noel é uma combinação de diferentes lendas
e criaturas míticas, tendo, entretanto, como principal base na era cristã o
bispo Nicolau de Smyrna (hoje Turquia). Nicolau viveu no século IV d.C.,
tendo-se tornado famoso por sua generosidade. Muito rico e amoroso, reza a
lenda que freqüentemente alegrava as crianças pobres, atirando presentes
através de suas janelas. Daí em diante, o mito ganha maior dimensão e vai
sofrendo uma série de modificações, até desembocar no “Santa Claus” da cultura anglo-saxã,
ou seja, o tradicional Papai Noel conhecido de todos nós, cujo principal traço,
o da generosidade, não se altera ao longo do tempo. Isto é, não se altera até
ser colocado sob o sol dos trópicos pelos nossos escritores modernistas e
contemporâneos.
Já em 1930 Carlos Drummond de Andrade publica, em Alguma poesia, o seu “Papai
Noel às avessas”, em que subverte a característica do generoso velhinho,
transformando-o num tocante gatuno. No poema, encontramos um Papai Noel
brasileiro, humano, de carne e osso, de “cara raspada” e “barbas postiças”, com
fome, que entra pela porta dos fundos (já que não há chaminés...) numa casa
onde dormem profundamente algumas crianças.
Entra para roubar brinquedos que enchem seus sapatos. E, num momento de
especial grandeza desse poema narrativo, quando Papai Noel entra no quarto das
crianças, transforma-se simplesmente em papai – não se sabe de quais e de
quantas crianças daquele mundo para o qual dá a porta dos fundos.
Esse modelo de Papai Noel às avessas fez escola e encontramos em diversos
textos da prosa brasileira deste século a idéia geral desse “papai Noel ao
contrário”, marginalizado socialmente, transgressor da norma, figura acima de
tudo humana, que perdeu a integridade e a inteireza do mito. O intertexto com a
tradição dá-se assim, numa clave de irreverência e contestação de valores do
passado.
Em “Conto de Natal” (1931), publicado em Táxi e crônicas no Diário Nacional, de
Mário de Andrade, Papai Noel ressurge na figura do decadente Levino, filho da
aristocracia rural paulista falida, que, depois e toda sorte de “profissões
menores”, se transformou num “garçom noturno” de hotel do interior. O conto
flagra o momento dramático em que, numa noite de Natal, Levino ensandece frente
às suas humildes atribuições de engraxar os sapatos dos hóspedes e passa a
acreditar que é Papai Noel, assaltando uma joalheria, para – num delírio
megalômano que remete às suas origens – distribuir generosamente jóias aos
hóspedes. Papai Noel termina louco e preso.
Graciliano Ramos, em 1939, com “Atribulações de Papai Noel”, publicado em
Linhas tortas (obra póstuma), apresenta-nos um não menos decadente Papai Noel
“de dentes postiços” e também de cara raspada, funcionário público, cansado e
enjoado da profissão. Esse Papai Noel a serviço do Estado (Novo) não vê a hora
de que lhe suprimam as funções, mas conservem os vencimentos...
No conto, o autor ainda destila toda sua ironia em relação à
ideologia conformista desse funcionário, que considera muito razoável que as
crianças ricas recebam mais e melhores brinquedos e as pobres, menos e os mais
simples presentes. A única causa que o engaja de fato é a ideia fixa de
“substituir o saco pelo caminhão”, para acompanhar a evolução da técnica... No
conto, tanto marasmo faz com que nem mesmo as crianças levem a sério a patética
criatura.
Em “Natal na cafua”, conto de João Antônio, publicado em Malagueta, Perus e
Bacanaço (1963), Papai Noel deixa de ser o protagonista da história, ajudando a
compor o espaço social em que se ambienta o programa. Papai Noel é flagrado,
então, na figura das anônimas personagens que circulam pelas ruas das grandes
cidades, em grotescas caracterizações, à época do Natal: “Um ou outro Papai
Noel de propaganda sustentando cartazes nos braços. Sujeitos magros,
desajeitados, alguns eram negros fantasiados de Papai Noel, se arrastando
ridículos, as botas imundas de lama. Um, especialmente um, era triste. Lá em
cima, duma perua, sentado numa poltrona ordinária, descascada nos braços e
amarrada à capota do carro. O homem fazendo propaganda de pasta de dentes. O
vento lhe batia na cara e fustigava a barba postiça, sua roupa muito larga,
descorada, apalhaçada. Sentado, parado, parecia pensar e deveria sentir frio.”
Na literatura brasileira contemporânea, os registros vão-se sucedendo e o Papai
Noel mítico cada vez mais se dissolve, perde seus traços originais, deixa de
existir como personagem autônoma, não passando de ilusão ou imaginação, evocada
na fala ou na atitude de outras personagens. É o caso do “Papai Noel ladrão”,
conto que integra a coletânea de vários autores A palavra é Natal (São Paulo:
Scipione, 1991), plasmado no realismo contundente de Bernardo Elis, ou no
divertido e irreverente “O dia em que pegamos Papai Noel”, de João Ubaldo
Ribeiro, publicado em Sempre aos domingos (Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1988).
Enfim, se garimparmos a literatura brasileira do século passado, veremos que
outras tantas representações de Papai Noel se fazem presentes, constituindo um
estimulante objeto de leitura, particularmente na comparação com o mito
original.
Notas
Este texto foi publicado originalmente num encarte do Jornal da Unesp, de dezembro de 2002, e dedicado ao tema do Natal.
Ligações a esta post
Os contos ficarão para uma próxima oportunidade, mas selecionamos uma coletânea de poemas dedicados ao tema natalino, inclusive, a íntegra do poema de Carlos Drummond de Andrade citado no texto de João Luís. Tudo num catálogo para ler, guardar e partilhar.
* João Luís Ceccantini é professor de Literatura Brasileira
da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da UNESP, campus de Assis.
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