O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe
Pode-se ler O filho de mil homens
como um extenso e complexo quebra-cabeça. Não é o caso de o leitor se deparar com uma narrativa em
peças e tenha que, ao longo do itinerário construir cerzidos para lhe dar
forma. É mesmo o labirinto ora previsível ora parecido coisa do acaso construído
à base de um conjunto diverso de narrativas amparadas pela dorsal de uma
personagem específica que leríamos como protagonista do romance. Crisóstomo é
um homem sozinho que chegou aos quarenta anos sem qualquer tipo de família
(também não ficamos sabedores do motivo dessa solidão); para não dizer que é um
só no mundo há um boneco de pano que lhe divide os dias entre a pesca e a
companhia.
Desde já não há possibilidades de fugir da compreensão de que essa é uma personagem signo
do indivíduo contemporâneo, cada vez mais disposto a enfrentar a existência numa
redoma quase privada ou quando muito acompanhado por uma pequena quantidade
diversa de outras existências semelhantes. Se aquilo pelo que lutou nossos
antepassados das cavernas foi pelo fim do nomadismo e o enraizamento da vida num
território e grupo específicos, os fluxos migratórios de hoje reavivam não só a
impossibilidade de alcançar essa fixidez como recuperam as mesmas formas nômades
de outro tempo.
E com Crisóstomo não é diferente. Se não sabemos quais os motivos para sua solidão, por exemplo, mas para compor sua companhia chegam-lhe outras existências
mutiladas; existências que vão se agregando e formam, no fim, outra concepção para
o que seja grupo familiar e para o que seja esse desejo pela estabilidade
sempre uma busca do homem desde o início dos tempos. Camilo é um adolescente,
filho de outro pescador, órfão desistindo da vida. Crisóstomo toma conhecimento
por uma vizinha sua que descobre o rapaz largado de si mesmo, ausente de
perspectivas.
Mas, uma narrativa assim composta de três personagens – um pescador, um
adolescente e um boneco de pano – certamente não tem substância suficiente. É quando
o narrador abre seu foco de visão e em pouco tempo encontramo-nos num daqueles
vilarejos já desenhados pela ficção de Mãe: aqui, não muito distante dos
típicos vilarejos de pescador cujo mote para desenho do espaço pode ter sido a
topografia portuguesa, mas não há de se distanciar tanto desse tipo de lugarejo
no Brasil. Ainda que, é bom dizer, que o lugar não seja identificado, gesto que lhe
confere uma universalização dos acontecimentos.
Nesse lugarejo há espaço para a narrativa de uma anã, uma mulher que
vive também sozinha mas sempre rodeada de cuidados da vizinhança, cuidados
esses que logo serão tornado em elementos para sustentação de um ódio ferino e
mortal contra a pequena criatura, apenas porque esta aparece grávida e nunca
esteve, portanto, entregue ao mar de tristeza e dores ou a total solidão como se supunha: “Entre si, as
vizinhas comentavam que triste seria a vida sem o amor, e o amor naquele povo não seria romântico, era só ter um homem,
deitar com um homem, sentir como um homem vasculha o interior de uma mulher”.
E outras existências. A de Isaura cuja relação com o namorado periga o
fim por sua indecisão de ceder aos caprichos masculinos para que se lhe rompa a
virgindade; ato concretizado, ela se torna mulher errante e entregue pelas mãos
da mãe a um homossexual também rejeitado socialmente, Antonino, mas ainda
passivo da crença sua e de sua mãe, Matilde, de ver-se/vê-lo homem feito e
casado. Há ainda, noutra ponta narrativa, Carminda, a que “como um casco infértil,
apenas uma aparência de uma mulher”, adota o filho da anã; e Rosinha,
mulher a dias de Matilde.
São todas personagens em constantes vias de se aprimorarem; entregues
ao compasso da vida, e aquilo de expectativa que falta numa sobra na outra,
compondo um equilíbrio para erguerem-se as paredes do sonho de um homem de
quarenta anos. Ainda: são seres tomados pela culpa de ser o que são ou se
tornaram. São, sobretudo, existências silenciadas por um modelo social rude e
excludente.
Daí pensarmos o Crisóstomo como uma figura que está além de qualquer representação humana: ele recebe a todos e tem a todos como existências sem lhe fazer quaisquer tipos de julgamentos ou submetê-los a padrões e gostos pessoais. Crisóstomo é um ser de alma iluminada. Ou pleno. Talvez uma mera criação poética de Valter Hugo Mãe, porque não se confunde com a ideia de tipo e tampouco pode ter sido inspirado em alguém fora da ficção.
Na composição dessas existências errantes, chamo atenção para dois
aspectos recorrentes na literatura do escritor português até o presente: a
necessidade de se reinventar linguisticamente a cada romance (nO filho de mil homens o leitor é tomado
por uma linguagem nervosa e uma escrita como se catasse os veios da oralidade); a
persistência no tema das existências desvalidas, narradas elas com tom lírico e
delicado. Nesse romance ora lido, como se repetirá no minimalismo surrealista
ou fantástico de A desumanização, sua
tessitura é tão singela e as existências das quais o narrador se aproxima são tão
esfaceladas que não há outro recurso estilístico que não seja a natureza do
poético.
Por fim, é o encontro de Isaura com Crisóstomo o que proporciona, o
entrecruzamento de grande parte dessas narrativas soltas, como se quisesse
dizer que a confiança nos sonhos sempre é uma forma eficaz para sua realização:
o sonho de um homem de quarenta anos sozinho é o de ser parte de uma família. E família
não se resume, claro está, aos modelos preestabelecidos desde sempre; família se
é composta por quem sonha junto. Afinal, o sonho de Crisóstomo confunde-se com
o sonho de toda essa gente desgarrada; são perfis que não se enquadram nos
modelos já desenhados e juntam-se para estabelecer outras possibilidades de
existir.
O filho de mil homens é para
ser lido como uma ode amor: “todos nascemos filhos de mil pais e de mil mães, e
a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos
pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo”.
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