Noutros rostos, de Filipe Marinheiro
Os que se aventurarem buscar informações na web sobre o poeta português poderão encontrar, entre a leva de poemas publicados, alguns editados no caderno-revista 7faces. Foi através desse periódico, uma publicação nascida do lugar deste blog, que chegou-nos o nome Luís Filipe Marinheiro. Um nome, como de outros jovens poetas, perseverante no ofício da escrita de poesia. E deve ser. Não apenas porque a poesia tem sido a patinho feio das editoras, mas porque o espaço de onde vem o poeta é povoado por um complexo território de grandes vozes poéticas. Essa perseverança, portanto, é espada de dois gumes necessária à formação de qualquer nome no gênero.
Nascido em Coimbra em 1982 e autor de títulos como Silêncios e Um cândido dilúvio (acto I)/ Sombras em derivas (acto II), todos editados pela Chiado Editora em 2013, agora, apresenta-nos também por essa mesma casa editorial, Noutros rostos. Em preâmbulo, a abrir a obra, o poeta já logo cita dois de seus mestres da
poesia ou suas referências literárias: "peço por isso que um
qualquer erro de ortografia ou sentido / seja um grão de sal aberto na boca do
bom leitor impuro - Herberto Helder, em A morte sem mestre", e acrescenta,
"sinto que há uma estranha eternidade naquilo que amámos e foi destruído -
Al Berto, em O medo".
O novo livro inclui 370 poemas inéditos distribuídos por 400 páginas sem qualquer índice, títulos, letras maiúsculas ou
pontuação. Há em Noutros rostos uma reprodução lírica absolutamente
contemporânea em verso livre sem qualquer rima ou obedecendo a qualquer uma
estrutura rígida ou canônica.
Noutros rostos rege-se, na essência, de forma
diferente daquela gerada em Silêncios. É um livro com uma coerência
mais límpida e cristalina, e no qual se destacam pensamentos, sentimentos e
linguagens que não estavam patentes com a mesma clareza ou pureza em obras
anteriores. Deve-se talvez ao seu amadurecimento e evolução ao nível da
reflexão, do seu estado de espírito e do lugar que a sua própria escrita
poética conquistou.
Vencidas as vozes que dão preâmbulo a antologia, a obra inicia-se com uma ode à mãe do autor, ou à todas as
mães, que elas são figuras universais, ou, para usar do ditado popular, as mães só mudam de endereço:
e agradeço-te ó mãe bela por te deitares no ninho de
lãs
coberta pela verdade assim escondo a ousadia
das visões obscuras e a beleza
existente.
Há, nesta magia poética do saber lidar com palavras,
versos, ideias, pensamentos abstratos e reais, entre outros aspectos de
sintaxe e gramática, um denominador comum: a arte de encantar.
O poeta separa corpo, alma e memória. Cria antíteses e
descreve momentos. Trabalha espaços e salta tempos. Há analepses e prolepses no
pensamento. E são esses recuos e avanços no tempo que criam a ação do eu-poético e o movimento nalgumas personagens ou nele próprio. Os olhos descrevem
destinos e o corpo acata as decisões ou não. A Natureza cruza-se com a beleza, a
astronomia, o amor, o sobrenatural, o bizarro, o oculto, a solidão e a intensa
melancolia com que sente as coisas à sua volta, voltando-se para si mesmo, mas
também para fora. Uma melancolia sua por natureza mas também fora e dentro do
sujeito poético.
Filipe Marinheiro transborda por entre os murmúrios –
incessante – à procura da expressão viva, sonora e verbal, além-matéria escrita.
Um espírito que, inteiro, seja o oposto dele próprio.
A linguagem do poeta estanca agora todas as impurezas e
outras certezas, no entanto sublima metaforicamente a poética e a sua mensagem.
Noutros rostos é uma obra feita de solidões,
melancolias, tristezas, mas também alegrias e felicidades conjuntas ao ser
poético e à mensagem adjacente, face à corrupção, afastamento e encobrimento
dos nossos rostos, máscaras que envergamos no dia-a-dia.
Os rostos e as máscaras estão eternamente presentes em algumas memórias passadas, presentes e futuras, de todos nós, levando os
leitores a mergulhar nos esquecimentos e paisagens humanas, anatômicas e
cósmicas, sem um fim... como se o leitor tocasse o infinito, a eternidade e o
próprio silêncio. O autor faz-nos atravessar toda essa dor e sofrimento num
registo genuíno e libertador: catártico.
Assim, por um lado, vivenciam-se pequenos ou grandes
acontecimentos que sucedem apenas ao atravessar por rostos e máscaras, como se
o ser se transmitisse somente mediante metamorfose ou transfiguração do meio
ambiente e corpo.
Registram-se vozes inquietantes e, no centro, o enigma desses mesmos
"noutros rostos": máscaras, rostos, espelhos, fogos, mares e
universos dissolvem-se em reflexos. Os contornos libertam-nos, amam-nos.
Mas também diz num dos poemas:
um enorme corte na
palma da minha mão sem tocar nesse corpo
meio morto desencadeia viscosos
gestos sangrentos com sabor
a lembranças ilusórias
e num aconchego guardo-as
fervilhantes dentro de mim
e sobrevivo luminoso à branda destruição do dias.
E, de fato, a poética de Filipe Marinheiro é conseguir
ser tão fascinante, intemporal, tão violenta, tão única que cria o seu mesmo
universo. Único.
Citando quatros versos deste livro,
o amor pelos pais é
sangue puro
sangue extraordinário pregado ao rosto
e
imagino-me a
vaguear perdido na desolação destes intermináveis rostos
e por último exemplo
então deito-me na baía da luz a cheirar o fogo pouco fresco
e dispo-a
lentamente - a beleza.
E Filipe não para aqui. Anexada à informação da publicação de Noutros rostos chega-nos também a notícia de que o poeta já trabalha atualmente na revisão da sua quarta obra
Escuridões, definida como dotada de cariz autobiográfico, escrito em prosa poética e com cerca
de 600 páginas. Sim, também este padece de ser prolífico. Abaixo recortamos alguns poemas que integram Noutros rostos:
se esticasses os testículos ao útero
a beleza
do sistema reprodutivo
tecia com a própria vagina toda uma lua de clitóris as formas
ameaçadoras
de meter medo avançariam à frente do enorme pénis
como esperma a respirar de saudade
e agonia
a vida estremece amplamente por fora adivinhando os astros
melancólicos
e rasgas o áspero ânus até aos esbeltos ovários enquanto sufocas
os gemidos esplêndidos
os movimentos sexuais mergulham
no pensamento
com vastas imagens a saltitarem na libido
atravessas a loucura das tetas depois tornas-te violenta
com a ida e volta
do pénis a mergulhar dentro de ti sufocando docemente
como sementes férteis
a caírem à tua volta velozes engolfadas
quando tocas com a boca no lado das coxas
os lábios esmagam as nádegas
porque esta é uma noite tórrida sem janelas a ruir
mas olhas para cima
e nessa cama despenham-se as estrelas de pele irradiante
***
julgo que tudo começou com um pássaro ácido a abrir-me
a porta
e a loucura saía do seu bico como um vidro a torcer o ar azul
doirado
aquele pássaro não pertencia a ninguém em especial
só ao vento vivo
e o resto do mundo canta-nos aos ouvidos a indiferença
* texto escrito a partir de notas como sinopse para a Noutros rostos.
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