Escrever sobre José Saramago
José Saramago. Desde os anos 1980, uma obra cada vez mais lida e estudada por pesquisadores do mundo inteiro. |
Qual é, na contemporaneidade, o efeito de uma revista acadêmica?
Provavelmente ainda o mesmo de sempre: estabelecer um colóquio em torno da obra
literária a fim de despertar novas abordagens, a fim de torná-la pauta
constante nos assuntos da comunidade leitora. Com a facilitação do acesso aos
textos escritos e com a necessidade de abastecimento das carreiras de pesquisadores
e professores universitários com produções que vão deste o ensaio à resenha
crítica, grande parte das instituições de ensino superior trabalham na criação e
manutenção desses espaços que, sendo muitos, têm alguns sua qualidade e, logo
também sua autoridade, questionável.
Em alguns casos específicos, determinadas obras alcançam uma quantidade
tão plural de leituras que, o ideal seria, seguindo a necessidade constante de segmentação
para organização do pensamento, a criação de espaços específicos onde leitores
críticos e leitores iniciados possam se
sentir em casa para falar de determinadas questões só notadas em literaturas ou
formas literárias específicas. Foi, possivelmente com essa intenção que projetos
como a Revista de Estudos Camonianos,
a Queirosiana, a Pessoa Plural – só para citar três títulos importantes na
conjuntura acadêmica em língua portuguesa – têm/ tiveram sua sustentação.
A REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS, que a princípio, como aquela que reúne
estudos sobre a obra de Eça de Queirós, seria chamada de saramaguiana, integra o rol desses projetos acadêmicos cuja função
está para além de ser um espaço específico onde se possa conduzir trocas de
leituras e reflexões sobre a obra de José Saramago. Apesar de não está associado diretamente a nenhuma universidade, trata-se de um periódico que
irrompe de uma avalanche de trabalhos – uns até questionáveis, é verdade – em
torno da obra do escritor português que, desde os fins dos anos oitenta, tem
angariado o gosto de pesquisadores do mundo inteiro, reflexo que pode ser visto
a olho nu por qualquer leigo que, por curiosidade, digite o nome “José
Saramago” na maior rede de buscas da web.
São livros, adaptações para outras artes, ensaios, resenhas, comentários,
colóquios, grupos de estudo, simpósios e toda sorte de leituras possíveis sobre
o universo saramaguiano.
Isso convoca a responsabilidade de, no instante em que preza por manter
vivo o legado construído pela literatura do Prêmio Nobel da Literatura, o único
em língua portuguesa, estabelecer intercâmbios de saberes, dar conhecer uma obra tão atual para até quando a humanidade não se desvencilhar
de determinados vícios que reduzem sua capacidade racional e seu projeto de convivência
comunitária; e ao que sabemos essa tem sido a luta de sempre desde que o
primeiro primata virou-se para outro primata e se reconheceu como semelhante. Mas os sucessos são ainda poucos se considerarmos o quanto de vítimas a humanidade tem, corriqueiramente, feito com os de própria raça.
Ou, para trazer a voz do próprio Saramago, “A história da humanidade é
um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz.
Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a
se enfrentar... Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em mim, uma
espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não se
percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao
homem. O animal, para se alimentar, tem que matar outro animal. Mas nós não,
matamos por prazer, por gosto”, recobrando uma de suas falas da última vez em
que esteve no Brasil.
Por tratar desses dilemas que fazem a comunidade humana perecer como
exemplo máximo de civilização, é que a obra saramaguiana já integra e tem, claro, força suficiente para tanto, o mesmo rol
dos nomes da literatura universal. E essa constatação não é necessária de ser
feita por nenhuma entidade acadêmica; o leitor atento logo a compreenderá se lido
um romance como Ensaio sobre a cegueira.
Isso significa dizer que um espaço como o da REVISTA não deve se descuidar de uma
dimensão crítica sobre homem e a sociedade. Saramago mesmo, sujeito de seu
tempo, sempre esteve na condição de não se dar por conformado diante das
arbitrariedades assumidas ora pelas ações ora pelos discursos de segregação ou
de limitação das existências.
E, antes de todo trabalho de intervenção, o tratamento estético e a inovação da forma literária do romance exercitado pelo escritor português, numa comunhão nem sempre possível a outros escritores, isto é, unir ou dar a arte, uma função de construção daquilo que vimos chamando de realidade.
Apresentada na data certa que foi a celebração pelo aniversário do
escritor português, data que a Fundação José Saramago, preenchida pelo trabalho
conjunto de uma equipe dedicada à memória do nome que lhe honra, e conduzida
atentamente por Pilar del Río, companheira e tradutora da obra saramaguiana, tem
vindo chamar de Dia do Desassossego, a REVISTA anseia ter, portanto, longo trajeto adiante. Na ocasião, celebrada em Lisboa, a
primeira edição saiu com uma limitada tiragem impressa com chancela da Editora
Patuá.
Pedro Fernandes e Carlos em sessão de apresentação do primeiro número da REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS, em sede da Fundação José Saramago, em novembro de 2014. Foto: Fundação José Saramago. |
Os organizadores da ideia, Pedro Fernandes e Miguel Koleff, um
brasileiro, outro argentino, pensam o periódico com tiragem semestral e disponibilizado de forma a promover o acesso de pelo menos duas grandes
comunidades leitoras de Saramago – o que não é, lembram, um impeditivo para que
outras comunidades venham integrar-se – os falantes de língua portuguesa e os
de língua espanhola, dois idiomas cujas edições estão e ficarão em circulação.
A proposta do projeto é reunir ensaios, documentos e recensões críticas que
tenham como escopo a obra de José Saramago.
Pedro Fernandes e Miguel Koleff compreendem e desenvolvem no texto de
apresentação da primeira edição para a REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS que “a
tarefa de todo estudioso da literatura é irmanar-se com a obra não para catar
louros de glória, mas para continuar a exercer as revisões sempre necessárias,
hoje mais que sempre, de um extenso, ardoroso e mais complexo itinerário, o de
humanização – esse que vimos construindo entre erros e acertos desde quando
assumimos a consciência sobre o mundo e demos por inaugurado o império da
razão”.
Numa entrevista publicada no NOVO Jornal, o brasileiro recorda o
contexto de construção da ideia, que não nasceu ao acaso e nem se construiu
sozinha; ela começou a ser costurada por ele ainda na noite de 18 de junho de
2010, quando lhe veio, de fato, a consciência da partida Saramago – “A ideia
levou dois anos para se concretizar, mas não significa dizer que nasceu há dois
anos. Por ocasião da morte do escritor, em junho de 2010, senti necessidade de
fazer algo para que sua obra perdurasse. Em junho de 2011 organizei uma edição
especial da revista eletrônica 7faces, que já coordenava, sobre a poesia de
Saramago. Então, quando me preparei para aquela edição, diante da demanda de
textos que o caderno-revista recebeu, e pela forma como repercutiu, pensei: por
que não uma revista de estudos saramaguianos?”
Toda a possibilidade de publicação ergue-se na presença de Pilar del
Río. “Quando da publicação do caderno-revista 7faces, ela, de próprio punho, me
escreveu agradecendo pelo trabalho. A partir daí estabelecemos uma extensa
relação de amizade, reavivada mais tarde com a publicação do meu livro, Retratos para a construção do feminino na
prosa de José Saramago. Nos encontramos pessoalmente em Olinda há dois
anos. Naquela ocasião, Pilar veio ao Brasil para uma conferência. Foi aí que
desenhamos toda possibilidade de feitura da revista, já bem encaminhada –
porque já conversara com o Carlos Reis e a Ana Paula Arnaut em Campo Grande
(MS), e já vinha conversando com o Miguel Koleff na Argentina. Enfim,
dessa longa conversa em Pernambuco já ficou tudo fechado para que o projeto
viesse a público agora, em Lisboa”, diz Pedro Fernandes.
Pedro Fernandes é pesquisador da obra de José Saramago desde o curso de
Licenciatura em Letras, quando conheceu o trabalho do escritor português
através da leitura de O evangelho segundo Jesus Cristo. Tem quase oito anos que
se dedica a investigação da literatura saramaguiana. Já Miguel Koleff, também
há muito um leitor e dedicado estudioso da obra de Saramago, é diretor da
Cátedra de Estudos Saramaguianos, um grupo que tem realizado oficinas, eventos
e publicações de ampla significação para a fortuna crítica do escritor como é
caso da coleção Apuntes Saramaguianos
e do Diccionario de Personajes
Saramguianos.
A primeira edição ora apresentada reúne ensaios de pesquisadores de
Brasil, Portugal e Argentina. Cada autor, à sua maneira, abre-se para algum
elemento da obra literária saramaguiana, de modo a elucidar um itinerário
multifacetado como é o da literatura de Saramago. Aí estão textos de Ana Paula
Arnaut, Carlos Reis, Teresa Cristina Cerdeira, Conceição Flores, Fabiana
Takahashi, Salma Ferraz, Maria Victoria Ferrara, Lílian Lopondo e dos próprios
organizadores.
Boa parte dos nomes que escrevem para esta primeira edição integra como
corpo científico para a REVISTA composto ainda por professores e pesquisadores
de várias instituições brasileiras, portuguesas e estrangeiras. Esta edição,
portanto, figura com nomes de convidados, a demarcarem um ponto de partida. A
edição por vir deverá manter essa estrutura até que o periódico ganhe a
projeção para a recepção voluntária de ensaios e recensões críticas.
Os dois volumes reúnem ainda imagens de José Saramago do período de
escrita de Claraboia, fac-similar de páginas de Claraboia e de materiais para a
escrita de O ano da morte de Ricardo Reis.
O volume em língua portuguesa traz um aditivo: além desses arquivos, recebe um caderno
em que se apresentam telas da exposição “O feminino na escrita de José
Saramago”, produzida pela artista plástica Lena Gal a partir da obra de
Saramago e do livro de Pedro Fernandes, Retratos
para a construção do feminino na prosa de José Saramago.
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