Contos da montanha, de Miguel Torga
Por Pedro Belo Clara
O
livro que agora se abre diante do nosso olhar surgiu naquele que, por certo,
terá sido um dos mais conturbados períodos da vida do profícuo autor que o
criou.
Ora,
em finais de 1939, com base num conjunto de críticas de índole política por si
proferidas, Miguel Torga é encarcerado por ordem da (repressiva) polícia então vigente.
A sua estadia durou três meses, rendendo-lhe poemas de intensa melancolia sobre
o caso. Era o pleno auge do regime
ditatorial português. Algum tempo depois, já em 1941, a obra que hoje
discutimos é enfim publicada para, breves momentos depois, ser apreendida pela
polícia política. A surpresa foi tal que o próprio Vitorino Nemésio, numa carta
solidária dirigida a Torga, não conseguiu esconder o seu assombro por uma
decisão de índole «tão estranha e arbitrária».
Não
custa, portanto, compreender porque Miguel Torga designou este trabalho de
«livro atribulado». Na verdade, o mesmo (que inicialmente apenas ostentava a
epígrafe Montanha) não constitui uma crítica aberta ao regime então em vigor,
antes um retrato fiel da realidade rural portuguesa. Bem sabemos que o autor
nunca fora um homem de calar indignações. E somente essa virtude seria pecado
suficiente para merecer a pesada condenação do fascismo reinante.
Impedido
de publicá-lo em Portugal, Torga virou-se para o Brasil – «o seio sempre
acolhedor das nossas aflições», como carinhosamente o adjectivou. O próprio
autor passou alguns anos da sua infância e adolescência naquele país, na
fazenda que um tio possuía no estado de Minas Gerais. Independentemente das
suas afeições, o sucesso da obra foi considerável. Em 1955, o livro conheceu em
terras de Vera Cruz a sua segunda edição, onde obteve já o título que hoje se
lhe conhece. De modo clandestino, o livro atravessou o oceano e foi distribuído
por círculos restritos da sociedade portuguesa, como à época se sucedida com
diversas obras literárias e até álbuns musicais de certas bandas ou cantores
“banidos”. A edição da brasileira Pongetti obteve ainda uma terceira edição, já
na década de sessenta, sendo finalmente, em 1968, editada em Coimbra – um fruto
dos esforços do próprio autor. Não obstante o regime ditatorial ainda à data se
encontrar em vigor, o livro muito estranhamente não foi, desta feita, alvo de
censura ou apreensão.
Como
por certo agora se compreenderá melhor, o próprio livro encerra uma
considerável história que o eleva, desde já, à categoria de “leitura
apetecível”. Mas para saborear melhor toda a envolvência que possui,
recomenda-se a leitura do prefácio que Torga realizou à quarta edição da obra,
aquela que fora publicada já em Portugal. A edição da BIS, de 2010, é, para
todos os efeitos, a que neste artigo será considerada, sendo também a mais
recente de que se tem conhecimento. E o dito prefácio, com a devida propriedade
e mérito, foi-lhe anexado.
Ao
lê-lo, cria-se logo a dúvida sobre o porquê do livro não ter sido novamente
apreendido, pois Miguel Torga, volvidos vinte e sete anos (!), nele não poupou
críticas ao estado geral do país. Termina mesmo com a expressão de um íntimo
desejo: o retorno dos milhares de portugueses que, em fuga, se espalharam pela
Europa e Brasil – «Portugal necessita urgentemente de ser repovoado».
Inclusive, admite ter a esperança de que o retorno do livro ao país que o viu
nascer, ainda que de um modo tão efémero, possa inspirar muitos emigrantes a
seguir o seu exemplo. Contudo, tal anseio não passaria de uma terna ilusão.
É
sabido que, até este momento, pouco falámos sobre a obra em si. Mas acontece que
a sucessão dos acontecimentos anexados ao nascimento da mesma não poderão ser
omitidos, sob pena de se diminuir o próprio valor do trabalho em causa. Afinal,
trata-se de um livro que não só reúne um conjunto próprio de histórias como também
possui um percurso pessoal de assinalável registo.
Além
da poesia, a prosa, principalmente sob a forma de conto, é o género literário
que em Torga os leitores mais apreciam (de modo geral, é claro). E, dentro
dele, os Contos da montanha tornou-se um dos livros mais celebrizados. Tendo já
aqui sido realizadas algumas incursões pela temática poética do autor, é justo
que agora dediquemos o tempo à discussão que a sua prosa merece.
O
livro, à semelhança de outros que nas últimas quinzenas foram aqui debatidos,
comporta um grande carácter regionalista, sendo o mesmo moldado nos termos
iniciais do movimento neo-realista português. Através de mais de vinte breves
contos, Miguel Torga esboça um acurado retrato da ruralidade transmontana, o
seu amado berço. Através deste registo, captamos a perfeita fusão entre o Homem
e a terra, característica essa que parece surgir como um reflexo do próprio
autor. Afinal, Torga fora um Homem de extremos, como a sua poesia bem o
comprova, capaz tanto de afastar quem lhe estava próximo para incrementar o seu
prazer pela solidão do isolamento, como de fomentar o mais desinteressado acto
de amor puro, nobre e veramente humano (por longos anos, Eugénio de Andrade recordaria
a flor que, num jardim de Coimbra, Torga tão despretensiosamente lhe oferecera).
Assim o homem, assim terra: rude e agreste, sem omitir a ternura que sempre
fora capaz de possuir.
O
enfoque narrativo parece colocar-se no extremo nordeste da região, palco de uma
aspereza ainda maior, emoldurado pela rugosidade das montanhas e pela algidez
das fontes que delas brotam. O conto de abertura, como habitualmente, dá o
mote:
«Galafura, vista da terra chã, parece o talefe
do mundo. Um talefe encardido pelo tempo, mas de sólido granito. Com o céu a
servir-lhe de telhado e debruçada sobre o Varosa, que corre ao fundo, no
abismo, quem quiser tomar-lhe o bafo tem de subir por um carreiro torto, a
pique (…). Duas horas de penitência.»
(A Maria Lionça)
É
claro que as descrições nem sempre coincidem, mas desta se poderá retirar a
ideia principal. Embora, como vimos, a localidade descrita, Galafura, tenha a
particularidade de se localizar no topo de uma íngreme fraga, ao contrário das
demais que ao longo deste livro nos vão sendo dadas a conhecer: Freixoedo,
Dailão, Borralheda, Lamares, Vale de Mendiz e outros nomes que, de tão
castiços, de pronto tornam cativante a leitura das linhas apresentadas.
As
composições dos aldeamentos que visitamos, página após página, também vão
obtendo modulações distintas, mas, uma vez mais, de grosso modo se poderão
resumir ao essencial da região:
«(...) é uma rua comprida, de casas com
craveiros à janela, duas quelhas menos alegres, o largo, o cruzeiro, a igreja e
uma fonte a jorrar água muito fria. Montanha.»
(A Maria Lionça)
Pelo
(pouco) que já lemos, concluímos que o regionalismo que Torga imprime neste
trabalho não se resume apenas a gentes e paisagens, mas de igual modo à
linguagem usada. O vocabulário típico da região vem dificultar, muitas vezes,
uma fluida compreensão do texto e até a sua tradução, se disso fosse caso. Ao
utilizar termos específicos de uma determinada zona do país, poderá a narrativa
tornar-se algo indecifrável aos olhos de muitos, mas cremos que de pronto tal
barreira se derrubará assim que o leitor atente no que daí pode advir, isto é,
no que o recurso a tal léxico pode instigar. No fundo, a genuinidade dos contos
é preservada e, diga-se, incrementada com tal decisão, ainda que aparente
toldar a sua acessibilidade. Em todo o caso, cria-se a ilusão de escutarmos as
histórias pela própria boca daquele que as conta, um transmontano de gema,
homem criado na montanha e embalado pelas agruras de uma vida de campos
solitários, numa qualquer noite fria onde o conforto desponta num copo de vinho
ou chávena de café, em redor de tal figura numa taberna da região. Sob esse
ponto de vista, o trabalho encontra-se extremamente bem conseguido.
Outro
dos seus pontos fortes, como antes dissemos, é o transporte fiel das
características daquela região para os contos que nos são apresentados. A
mística oscilante entre o amor e a violência, entre a ternura e a rudeza, entre
a suavidade e a aspereza, polvilha sublimemente as relações entre personagens.
Por
um lado, temos o exemplo ilustrado em "Um Filho", onde se assiste à ternura de
Rebel (a figura mais primordial possível dentro dos limites civilizacionais,
como se parido fosse pela própria montanha onde vive), aquando da iminência do
nascimento do seu primeiro filho. Aqui, tudo segue o seu curso natural, sem
intervenção maior por parte do Homem e de suas destrutivas ambições. Tudo é
belo como é: simples, agreste e puro. Até a dita criança nasce ao modo de um
borrego ou cabrito, embora se troque o curral pela sala da casa. Assim, por
tudo ser aceite em sua real essência, não espanta o jeito mimoso como o conto
se conclui: «Nem há riqueza como a nossa, ó Júlia!». Afinal, basta-lhes tudo o
que de mais frugal existe.
Mas,
convenhamos, este exemplo é aparição rara. Pois as agruras daquela terra e a
pobreza das suas gentes, tão dependentes do cultivo para sobreviverem, exige
outro traço que não este. Ademais, a tragédia anexada à própria existência,
como elemento surpresa, ainda que não de todo surpreendente, é captada com
precisão. O conto "O Cavaquinho" demonstra isso mesmo. Também as rixas habituais
e as vinganças em nome da honra e do bom nome, ainda vigentes em meios de maior
ruralidade, têm a sua vez, sendo "A Paga" o conto que de modo mais cru e, lá
está, violento o traduz.
A
substância de cada conto é simples, como se depreende. A mesma nasce
naturalmente da convivência entre as gentes retratadas. Reúnem-se, assim,
relatos de desaguisados entre vizinhas, de gravidezes anónimas, de emigrações
súbitas, de bebedeiras cómicas. Além, é claro, das quase omnisciente presenças
de um clero rígido e inquisitivo, os verdadeiros governantes, em grande parte,
das zonas rurais. Sabemos a opinião de Torga sobre os mesmos, mas, ainda que
não abdique, aqui e acolá, da fineza do seu sarcasmo, as caracterizações que
elabora nem são alvo de iradas sentenças ou depreciativas apreciações. Em "A
Ladainha", por exemplo, grava-se o testemunho de um longo cortejo religioso e do
seu monótono cantar, ainda nos dizeres originais (ou seja, em latim). Se é
verdade que a escrita não permite a incrustação de melodias, provavelmente, no
caso, já perdidas, por outro lado preserva-se no conto o antiquíssimo diálogo
religioso composto em preceitos de cânticos de louvor ou de penitência. Do
ponto de vista histórico, o registo é deveras assinável.
Temos,
portanto, o principal alvo escolhido pelo autor: a rotina das aldeias e a
dureza quotidiana do trabalho agrícola, desgastante e ingrato. Embora os contos
não nutram uma celebração exaltante, quer das gentes quer da terra, a mesma parece
antes subsistir de modo sóbrio e, em alguns momentos, insalubre. É por esse
motivo que a captação que Torga realiza de tais realidades se diz acurada: os
extremos lá viventes coabitam na harmonia possível, onde o mais improvável dos
seres pode vestir capa de herói. A esperança, mesmo diminuta, sob muitas formas
pode ser possível. Eis o mais casto raio de sol que se espraia por estes
valorosos trabalhos.
Para
todos os efeitos, Miguel Torga tece a herança de uma região cada vez mais
esquecida, cada vez mais deserta nos dias que por nós incautos correm. Um
testemunho, portanto, para ler e ser lembrado.
«Só quem já passou por elas ou tem imaginação
é que pode fazer ideia do desconsolo que era a vida do Gonçalo em casa do
Anastácio. Fome, pancadaria e o dia inteiro atrás do gado na serra como um
escravo. Desprezível e sem uma letra, metia dó. Valia-lhe um pífaro de barro,
que trocara por um pião de buxo que fizera à podoa, onde contava às fragas a
sua melancolia de criança infeliz».
(Maio Moço)
***
Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
Comentários