Clarice Lispector, a travessia da linguagem
Por Milton Hatoum
A família de Clarice Lispector. Da esquerda para a direita, Mania, Clarice, Pinkouss (sentados); Elisa e Tania (em pé). Recife, década de 1920. |
Em 1920, aos dois meses de idade, Clarice Lispector fez sua primeira
grande travessia da distante Rússia ao nordeste do Brasil. Filha de imigrantes
judeus ucranianos, Clarice cresceu sob o calor de Recife (Pernambuco), onde
viveu dez anos; perdeu a sua mãe em 1930 e, dez anos depois, se mudou com seu
pai e suas duas irmãs para o Rio de Janeiro.
A partir de 1944, quando se casou
com um diplomata, viveu em Belém (Pará), nos Estados Unidos e em vários
países da Europa; durante sua larga permanência no exterior, com temporadas no
Brasil, escreveu e publicou dois romances (O
lustre e A cidade sitiada) e um
livro de contos. Em 1959, quando voltou definitivamente ao Rio, já era
considerada uma das mais notáveis escritoras brasileiras.
Clarice Lispector, os dois filhos (Paulo e Pedro) e seu companheiro Maury Gurgel |
Recife, a cidade da infância e da juventude, foi a fonte dos primeiros
escritos, de vários contos de Felicidade
clandestina (1971) e de crônicas publicadas no Jornal do Brasil. O drama desgarrador do imigrante nordestino
aparece também na figura da Macabéa, uma pobre moça de Maceió (Alagoas), cujo
destino trágico no Rio de Janeiro é um dos temas de A hora da estrela, publicado em 1977, quando a escritora morreu,
aos 56 anos.
Clarice estreou em 1943 com o romance Perto do coração selvagem, título que extraiu do Retrato do artista quando jovem, de
James Joyce. Naquela época, a literatura brasileira já contava com uma tradição,
de Machado de Assis à arte vanguardista do movimento modernista de 1922. Na década
seguinte reforçaram essa tradição pelo menos dois livros: O quinze (1930), de Rachel de Queiroz, e São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos. Mas, quando Clarice
Lispector e Guimarães Rosa apareceram na década de 1940, a prosa brasileira deu
um giro. Já em 1943, Antonio Candido advertiu imediatamente a novidade e a
ousadia do livro da jovem autora.
Linha divisória das águas na literatura brasileira, Perto do coração selvagem foi
considerado por Candido " uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a
domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de
mistério, para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura
afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em
alguns dos labirintos mais retorcidos da mente."
Esse comentário se ajusta praticamente a toda obra de Clarice, marca
pela busca do sentido da vida, na qual o feito mais prosaico pode desencadear
um sentimento patético, vertiginoso, atravessado por imagens cadentes e ideias
abstratas.
Cena de A hora da estrela, filme de Suzana Amaral baseado no romance de Clarice Lispector |
Quase tudo o que ela escreveu parece sondar o coração selvagem da vida,
reino de ambiguidades latentes, de transgressões insuspeitas, com a barata
morta que a protagonista transforma em hóstia consagrada no romance A paixão segundo G. H. Busca também de
uma linguagem, não menos dramática que a vida, na tensão e intensidade com a
qual os narradores se submergem no poço obscuro da paixão e do desejo, do amor
e do destino do ser, inseparáveis da morte.
Os dramas dos narradores e personagens de Clarice são também dramas de
uma linguagem que expressa, com o ritmo e a cadência de um estilo muito
pessoal, o lado agônico ou extático dos seres que evoca; dramas quase sem
trama, porque a Clarice interessa menos o enredo e o tempo cronológico que a
forma descontínua e fragmentada de expressar uma experiência interior, um
transe visionário ou, inclusive, um pensamento ou conceito.
É provável que o fluxo de consciência e a fina ironia devam algo à obra
de Joyce e à de Virginia Woolf; mas nenhuma escritora brasileira foi tão longe
e de uma maneira tão radical em direção ao abismo da interioridade.
Benedito Nunes,
o mais notável crítico de Clarice Lispector, sublinha que “o ímpeto transgressor
dos personagens femininos de alguns romances – Perto do coração selvagem (1943), A cidade sitiada (1949), A
maçã no escuro (1961) e certos contos de Laços de família (1960) – talvez seja a marca invertida da submissão
feminina”. Por outro lado, “o despojamento pessoal de G. H. neutraliza a diferença
entre o masculino e o feminino, absorvida numa condição humana geral em
contraste com a animalidade e a vida orgânica. O romance póstumo Um sopro de vida (1978) narrado por dois
personagens – um homem e uma mulher – persegue o mesmo pathos da morte e a loucura que recorda os personagens de G. H. e de Água viva (1973)”.
A mulher que em 1975 participou de um congresso de bruxaria na Colômbia
era esquiva, terna, belíssima, de uma beleza estranha, com seu rosto anguloso,
os olhos pouco rasgados, vivos e perplexos, que parecia olhar para fora, para o
céu e o inferno, mas sobretudo para dentro.
A linguagem foi, de fato, sua travessia maior e a mais arriscada: a paixão
pela linguagem, a tendência tenaz, incessante e obsessiva ao dizer o inefável,
o que nos toca mais a fundo e fugazmente: o sentido mesmo de nossa existência. “A
linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino
volto com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível” (A paixão segundo G. H.).
“A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade é irreconhecível.
Portanto não existe? Não, para os homens não existe.” (A hora da estrela).
Ligações a esta post:
* Tradução para "La travesía del linguagem", texto de Milton Hatoum publicado no jornal El País.
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