Walt Whitman e suas "Folhas de relva"



“Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo, / E aquilo que eu presumir também presumirás”. E um novo mundo se abriu com esses versos de “Canção de mim mesmo”. 159 anos separam esse começo do livro Folhas de relva, que Walt Whitman terminará em 1892, depois de nove edições e um total acumulado de 389 poemas. Uma obra-mestra que no Brasil circula em pelo menos três versões diferentes. A obra que consagrou Whitman poeta indispensável a todo leitor, embora, tenha se exercitado noutras formas de escrita, como o famoso diário que levou consigo quando enfermeiro de campanha durante a Guerra Civil dos Estados Unidos.

Trinta e três anos tardou Whitman em completar a “autobiografia de todo mundo”, como disse Gertrude Stein. Uma epopeia do estadunidense e da vida íntima, imaginada e pública, que se apresenta plena de realidade e premonição. Levou seus leitores ao reencontro de si mesmos. E se converteu num guia que abriria inusitadas e novas rotas literárias para poesia universal.

Autoproclamando “Sou poeta de Corpo e sou poeta de Alma”, sua obra começou a ser conhecida em 1855 com uma dúzia de poemas sem título até chegar em quase quatro centenas em 1892, poucos meses antes de sua morte. Daí, uma das edições que tem circulação no Brasil se ungir do epíteto “edição do leito de morte”, uma maneira um tanto dramática e pungente de dizer que é uma versão definitiva da obra. Folhas de relva é assim uma obra de crescimento orgânico mediado por acréscimos e superposições coerentes com o crescimento pessoal do autor e com o desenvolvimento histórico da nação numa combinação indivíduo-sociedade que foi a conjuntura principal do projeto whitmaniano.

Muitos terão se aventurado em traduzir esse universo; entre os interessados, nomes como o do argentino Jorge Luis Borges que sempre teve pelo exercício poético do estadunidense como um projeto colossal e muito lúcido pela complexidade de pensamento com que é estruturado, a começar, evidentemente, pelo primeiro traço reparável a olho nu por qualquer leitor comum: o da reinvenção da sintaxe tornada produtora de poemas quase sempre extensos.

Whitman é um poeta que cria também um novo vocabulário, que se inventa, inventa coisas, neologismos, ideias filosóficas ou religiosas, cuja correspondência em língua portuguesa não é fácil e, certamente, uma das pedras no processo de tradução. A bem da verdade, ele cumpre com o ofício designado, digamos assim, para todo poeta, que é o da criação. E diga-se, para todos os efeitos, desde então, que a humanidade padece um tanto órfã dessa qualidade, ainda mais agora que a poesia tem-se deixado tomar pela forma de retroalimentação dos dizeres.

Por outro lado, Whitman é um poeta orador e enumerativo que constrói uma extensa sucessão de imagens que vai se reavivando com outras de seu próprio universo como se a poesia pudesse captar esse ritmo de ramificação da palavra. É evidente que, por tudo isso, traduzi-lo exige ainda a capacidade de recriação a fim de se manter a coerência verbal e sintática de sua poesia.

A originalidade do poeta, escreveu Harold Bloom em O cânone ocidental “tem menos a ver com seu verso supostamente livre que com sua inventiva mitologia e seu domínio de figuras retóricas. Suas metáforas e seus raciocínios rítmicos abrem um novo caminho de uma maneira um tanto mais eficaz que suas inovações métricas”.

Poeta do Eu e  do Outro. Poeta que invoca e recorda a dualidade, o binômio do ser humano: homem e Deus; céu e terra; imortalidade e mortalidade; ternura e erotismo; alegria e tristeza; realidade e sonho; paixão e serenidade; rosto e máscara; prosaico e sublime; dionisíaco e apolíneo; luz e obscuridade; difícil e sutil; carnal e platônico; passado e presente; milagre e natureza...

Uma voz que nunca deixou de sonhar. Que renasceu quando em 5 de março de 1842 esteve como jornalista da revista Aurora para uma conferência de Ralph Waldo Emerson em Nova York intitulada “O poeta”, onde, palavras a mais e ideias a menos,  veio dizer que os poetas são quem dizem, nomeiam e representam a beleza como “deuses libertadores” e que essa tem sido uma busca vã em seu país.

Esse primeiro sopro inspirador ficou em Whitman dando voltas, crescendo, até que em 1850 começará a rabiscar e escrever seus poemas em busca desse novo Éden. Ninguém publicou seu primeiro trabalho; ele próprio o financiou, cinco anos depois.

Poeta que canta a liberdade, que cresce com seu país, que canta as necessidades de um novo mundo. Menos retrógrado. Sua voz correu como o vento interessado em  remover tudo aquilo que cerceava a consolidação de um novo projeto para o homem. Reflexivo e cativante. Cantou o íntimo, os desejos, a desgraça da guerra, os homens e mulheres, embora, como escreve Bloom em seu famoso livro sobre o cânone, “seu impulso mais profundo foi o homoerótico”. Mas sua poesia, “recusa reconhecer qualquer demarcação sexual, e igualmente recusa aceitar qualquer linha fortificada que divida o humano e o divino”.

Quando de uma das edições de sua obra, Whitman disse que era um livro eminentemente religioso mas não deveria ser entendido a partir de um dos credos cristãos e sim pela relação que espera estabelecer com e pela divindade. Essa figura do deus supremo com a qual nunca se identificou é reinventada pela representação de deus como um sopro ou espírito do universo, a natureza, a ânima da natureza, e é a esse lugar que ele, enquanto poeta, almeja alcançar.

Por isso, Whitman se tornou poeta de todos os tempos e tradições. Seu trabalho serve de paradigma em qualquer parte do mundo quanto a inovação e expressão poética; é uma abertura para múltiplas possibilidades de criação. Sua obra é, nesse sentido, muito ampla, contém multitudes, é cósmica.

Até agora, 159 anos depois de ser escrito aquele canto com que Whitman abre-se para o mundo, sua obra segue sendo o lugar ideal para se estar e pensar sobre nós mesmos.


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