Um inferno repleto de livros: O irmão alemão, de Chico Buarque

Por Alfredo Monte




Boa parte do impacto da leitura de O irmão alemão reside — a meu ver — menos no aproveitamento ficcional de uma contingência biográfica, a existência do meio-irmão do título (e seus desdobramentos na vida do narrador), e mais na exploração (física e simbólica) do espaço da biblioteca da família Hollander: “E quando não havia ninguém por perto, eu passava horas a andar de lado rente às estantes, sentia certo prazer em roçar a espinha de livro em livro. Também gostava de esfregar as bochechas nas lombadas de couro de uma coleção que, mais tarde, quando já me batiam no peito, identifiquei como os Sermões do Padre Antônio Vieira (...) Até os nove, dez, onze anos, até o nível da quarta ou quinta prateleira, durante toda a minha infância mantivesse essa ligação sensual com os livros.”

Nessa casa tomada (“Até então, para mim, paredes eram feitas de livros, sem o seu suporto desabariam casas como a minha, que até no banheiro e na cozinha tinha estantes do teto ao chão”), onde o pai — leitor voraz e eminente intelectual — pontifica, quase um minotauro no labirinto, sujeitando a mãe a um papel servil (“no fundo ela sempre soube que meu pai, embora marido extremoso, não a distinguia muito bem da biblioteca”), o acesso do filho apaixonado pelos livros é restrito (tanto que será clandestina sua “descoberta” do irmão alemão, a partir de uma carta metida num volume no qual ele não poderia mexer  “Preciso guardá-lo exatamente em seu lugar, pois se meu pai não admite que eu mexa nos seus livros, que dirá neste”), índice do distanciamento paterno: “uma noite em casa, no meio do jantar, sem mais nem menos lancei esta: eu não me envergonharia de ter um filho alemão. Meu pai ficou com o garfo suspenso diante da boca aberta, enquanto meu irmão continuava a folhear a Playboy à esquerda do prato. Só mamãe, depois de um momento atônita, se manifestou: ma quem tem vergonha de um filho tedesco, Ciccio? Sei lá, disse eu, só sei que o Thomas Mann tinha vergonha da mãe brasileira. Era uma afirmação controversa, pelo que havia lido a respeito, mas feita com o propósito de suscitar  uma reação do meu pai.  Ele poderia retrucar que o próprio Mann reconhecia traços da ascendência latina em seu estilo, ou que a mãe lhe inspirara belos personagens para seus romances, poderia dizer em suma que eu estava falando asneira. Mas pronto, estaria estabelecida uma ponte entre nós, talvez daí em diante meu pai me ouvisse de vez em quando, me corrigisse, de algum modo me filiasse...”

A biografia de Francisco de Hollander, conforme seu torto relato, será então imantada por essa biblioteca monstruosa e invasiva: nunca conseguirá exatamente sair dali, e suas experiências serão arremedos, vivências de segunda mão, transando com as mulheres que passaram primeiramente pelo quarto do irmão, grande sedutor, e nada intelectual (nem por isso o pai lhe regateará a estima e o afeto), ou paródias de relacionamentos com estranhos, a partir das fantasias obsessivas em torno de Sergio, o “fratello tedesco”, como diria a mãe (personagem que roça perigosamente o farsesco, tão caricato é o seu modo de expressão).

Os dois irmãos de Francisco quase que “fraternamente”, por assim dizer, terão um destino fantasmático similar, fruto de regimes arbitrários: enquanto os vestígios de um se esfumam nas medidas profiláticas tomadas pela burocracia nazista com relação à raça pura, e depois na divisão da Alemanha na Guerra Fria, o outro, na superfície mais engajado num donjuanismo cafajeste (o próprio Francisco flerta desajeitadamente com o que poderíamos chamar de “delinquência playboy”), desaparece durante a Ditadura pós-64.

No final, com a morte do pai, o labirinto é franqueado. Nem por isso será de muito proveito a quem que levou uma vida postiça e “emprestada”. Francisco e a mãe (tomada pela cegueira), já bastante idosa, continuam, por anos, naquele sacrário esvaziado de sentido e pleno de perdas: “Não tínhamos mais hora, o jantar era servido antes do meio-dia, tirávamos cochilos aqui e ali, nos recolhíamos com o dia claro. Que dia é hoje?, ela me perguntava. Vinte e cinco de janeiro de 1973. Ainda?...Ela estranhava que o tempo ultimamente andasse tão pesado, e de fato, lá em casa, 1973 levou alguns anos para passar. Mesmo quando a situação no país tendia  a se amenizar, fiz bem em mantê-la desatualizada, porque o nome do meu irmão não constava em nenhuma lista de beneficiários da anistia... Logo se restaurou a democracia no Brasil e nos países vizinhos,  até o muro de Berlim veio abaixo,  mas à minha mãe eu pedia um pouco mais de paciência”, veja o leitor que engenhoso registro de passagem de um extenso período de tempo.

Chico Buarque criou o equivalente contemporâneo de Bibliomania (1836), de Flaubert, ou de Auto-de-fé (1935), de Elias Canetti: uma fábula terrível e ácida sobre o culto bibliófilo que se transforma, ao fim e ao cabo, em cegueira e negação solipsista, e mais incisiva ainda com relação ao papel dos intelectuais em momentos de irracionalidade histórica, quando forças retrógradas tomam o poder.  

Alcir Pécora, em resenha para a Folha de S.Paulo, criticou duramente a narrativa de O irmão alemão por sucumbir à “borgiária”, à emulação de Borges (o autor mais identificado universalmente com bibliotecas; em contrapartida, na sua autobiografia As palavras, de 1964, Sartre descreveu a “neurose da literatura” interiorizada nesse trato obsessivo, fetichismo puro, com o objeto-livro, inclusive em edições raras, de colecionador, que transformam a biblioteca num capital). Parece-me que ocorreu justamente o oposto: a hipertrofiação do elemento borgiano e o quase emparedamento no meio de incontáveis volumes escancaram o grotesco da perspectiva “o paraíso deve ser algo parecido como uma biblioteca”1.

E na figura de Francisco de Hollander, tal como se depreende de sua autoapresentação, o grande poeta da nossa MPB demonstra que andou lendo atentamente a nossa prosa atual: não foram poucas as vezes em que O irmão alemão me trouxe à memória o universo de Ricardo Lísias e sua triturante e incômoda reinvenção ficcional de dados biográficos, em textos como O céu dos suicidas (2012).

Entre os pontos de contato mais óbvios, estão o desamparo no mundo explícito (as cenas em que o narrador aborda transeuntes oferecendo-se para acompanhá-los em seu percurso) e a irrisão raivosa que beira o histérico nas suas tentativas de ação: “Com certeza riem dos meus sapatos, do meu relógio de segunda mão,  do meu jeans fodido, sujo de giz e de outras melecas, que não tiro do corpo e cujos bolsos me ponho agora a apalpar. Súbito enfio a mão no bolso esquerdo até o fundo, e a cartolina por baixo da caixa de chicletes só pode ser o cartão de visita do afinador de pianos. De fato é, e apesar de curvo e desbotado, tendo sobrevivido a um ou outro mergulho no tanque de lavar roupa, ainda traz legíveis as coordenadas de Lázar Rosenblum. Abandono a algazarra da sala e disparo até o telefone da secretaria, mas na casa do Lázar sua mulher me informa que ele saiu, vai passar a manhã cuidando do piano da TV Record. Ali acontece o famoso festival de música popular,  e dona Dalila me fala de seus cantores prediletos, começa até a cantarolar uma balada romântica quando corto a ligação. Em vinte minutos de caminhada chego ao Teatro Record,  onde encontro uma fila na bilheteria e uma pequena aglomeração junto à porta lateral. É a entrada dos artistas, protegida por seguranças a quem apresento o cartão de visitas do Lázar,  depois de forçar a passagem entre fãs e puxa-sacos. O cartão passa de mão em mão,  e um funcionário suarento vem me avisar que estou barrado, porque já tem um afinador no palco. Pois foi ele quem me chamou, afirmo cheio de moral, me passando pelo pianista do João Gilberto. Mas o João Gilberto não tem pianista nem concorre no festival,  segundo os dedos-duros à minha volta,  então me esgueiro até o bar ao lado e peço um café no copo para tomar com um pé na calçada.  Minhas pálpebras custam a se reerguer cada vez que pisco os olhos,  e estou no quarto copo de café  quando o Lázar sai pela porta dos artistas. Tem um chilique quando o arrasto pelo paletó, já não faz ideia de quem eu seja...”: não estranharia em ver essa passagem em Lísias ou, para citar outro exemplo da prosa relevante dos nossos dias, em Alexandre Dal Farra e seu Manual da destruição (2013).

Essa “influência”, na falta de termo melhor, fez muito bem a Francisco de Holanda: resultou no seu romance menos “policiado” e mais pessoal. Só não entendi a utilidade das duas notas finais (esclarecendo os vínculos entre ficção e biografia!) e o linguajar da mãe, notas desnecessariamente dissonantes de uma composição de mestre.

Notas:

1 E olhe que a minha formação de leitor seguiu um pouco os passos do narrador de O irmão alemão, esse apelo sensorial-sensual dos livros, presente inclusive nos meus dias como leitor já naquela outrora conhecida como “meia-idade”, quando percorro prazerosamente meus milhares de volumes espalhados pela casa inteira (embora sem o componente bibliófilo, da aquisição de livros raros e primeiras edições).

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