Procrastinação
Por Rafael Kafka
Um tema que muito
tem me afligido no decorrer do ano que começou a se findar é uma pergunta: por
que as pessoas procrastinam? Isso não é exagero. Há alguns meses, eu percebi
que sou um grande procrastinador. No ano de 2014, eu tive o direito a um monte
de créditos de disciplina devido ao fato de já ser formado em outra habilitação
do curso de Letras. Por conta disso, pensei que poderia assistir a matérias de
blocos avançados de meu curso nos espaços surgidos e assim me formar em menos
tempo, o que seria uma coisa realmente vantajosa para mim que já me cobro
demais em meu íntimo para me preparar para os estudos da pós-graduação.
Contudo, devido ao
sistema de matrícula de minha universidade, isso não foi possível e passei cada
um dos semestres letivos do ano estudando apenas para cumprir os requisitos
necessários de uma disciplina em cada módulo. Pensei: "Isso vai ser bom,
pois assim poderei me dedicar a leituras as quais até então não pude me dedicar
pela falta de tempo do trabalho".
Imaginava em minha
mente todo um ano que se passaria na disciplina de um tempo estritamente
controlado e extremamente produtor, com momentos dedicados à escrita criativa,
à leitura por puro prazer, ao trabalho e aos momentos de desenvolvimento de
minha vida acadêmica. Ledo engano. Até consegui sim ler bastante neste ano, em
especial até o mês de Julho, período no qual a procrastinação em minha vida era
algo que, paradoxalmente, mais me amofinava como uma ameaça mortal, mas menos
me impedia de ter uma vida intelectual ativa. Digo isso, pois desde então li
bem menos do que li no primeiro semestre e percebi estarrecido isso nos últimos
dias procurando uma justificativa suficientemente plausível para tamanha perda
de ritmo.
O que percebi em
mim no ano de 2014 é que sou do tipo que precisa lidar com dois fatores
pressionando-me para produzir de forma mais eficaz algo: tempo e monitoramento.
Se tenho de entregar algo em um determinado prazo, sinto-me cobrado o tempo
todo e mesmo que no último instante cumpro a tarefa. Aí vem o complemento óbvio
do monitoramento: preciso de alguém que vistorie se irei cumprir a tarefa em
tempo hábil.
Isso pode soar
imaturo para diversas pessoas, mas sim, cometo esse pecado terrível da
procrastinação se não me ver “forçado” a cumprir tarefas. Já tentei, e tento
ainda, ser uma criatura menos desperdiçadora de tempo, mas não é tão simples
quanto parece e por isso mesmo me questiono todo santo dia, como se isso fosse
um verdadeiro dilema existencial e filosófico: por que as pessoas procrastinam?
De repente, isso é
um dilema mais sério do que temos noção.
*
Em um certo
momento de algum mês passado, decidi procurar os motivos que levam as pessoas a
procrastinarem. Lendo em um fascículo de uma renomada revista científica
brasileira, achei dois fatores bem plausíveis e justificáveis para o ato
injustificável da enrolação constante. O primeiro é o excesso de tarefas o qual
nos deparamos diariamente. Especialmente nós que escolhemos a área da docência
para atuarmos pelo resto de nossas vidas. O fato de imaginar uma vida de pessoa
que trabalha em duas ou três escolas e precisa levar para casa trabalho todo
santo dia, elaborando aulas, provas e materiais de apoio, ou corrigindo os
mesmos, tendo uma imensa cobrança e carga emocional ligada à quantidade de
pessoas com quem deve lidar diariamente em ambientes muitas vezes barulhentos e
insalubres e ainda correndo, se for funcionário da rede privada, o risco
constante de missão já me deixa cansado. Aí me lembro de que levo uma vida
similar a essa e me sinto mais cansado ainda.
É muito comum eu
conhecer professores que já estão na área da educação de forma atuante há coisa
de dez ou quinze anos e fizeram especialização quase que sempre à distância,
mas não têm tempo de se dedicarem a ler por prazer ou para uma simples prova de
mestrado. Quando surge algum edital de concurso público, tais pessoas
esforçam-se de maneira sobre humana para passar nas provas, pois essas exigem
estudo e títulos, excluindo daí a produção de um projeto de pesquisa o qual
exige muito do intelecto de pessoas já bastante exigidas pela sociedade. Ser
professor é tão cansativo que vamos deixando para depois aquilo que poderíamos
e deveríamos fazer hoje para que de alguma forma melhorássemos nosso acesso às
possibilidades mais qualificadas do mercado de trabalho e do universo
acadêmico.
Falo do caso dos
professores, porém no geral as pessoas são muito cheias de coisas hoje em dia
para se fazer e por isso mesmo vivem deixando para lá aquilo que deveriam fazer
agora. Creem que esses poucos minutos de descanso não farão falta, contudo
esses poucos minutos de descanso acumulam-se em grandes faixas de perda de
tempo e aquilo que poderia ter sido feito logo só será realizado enquanto
tarefa quando o medo da bronca do chefe ou do professor da faculdade nos mostrar
o perigo que corremos...
É aí que surge o
segundo fator: as redes sociais. Quem nunca passou por essa cena de estar lendo
um livro ou fazendo algum trabalho que envolva o uso do computador e de repente
dê uma pequena pausa para ver o que se passa no feed de notícias do Facebook?
Depois, o choque vem quando essa pequena pausa que deveria ser uma pequena
pausa se mostra um hiato considerável de tempo, algo como umas duas horas de
puro êxtase virtual, no qual nada se fez e a bronca do chefe e do professor se
mostram algo quase como que inevitável. A pessoa então precisa perder horas de
sono precioso, cruzando a madrugada para cumprir uma tarefa a qual já poderia
estar cumprida, deixando em seu lugar o doce e merecido sono dos trabalhadores
organizados. (Confesso, caro leitor, que passei o fim de semana lendo Kundera e
Drummond e dentre outras coisas, essa crônica estou a escrever na pressa por
ter deixado de lado o que já deveria estar feito. Paciência.)
As redes sociais
são uma tentação maior do que o fruto proibido ingerido por Eva e depois por
Adão. Estamos cansados de nosso cotidiano cheio de tarefas e vazio de arte e
vamos para o feed de notícias interagir, postar algo, comentar algo e assim
sentir que a vida tem algo de divertido que a justifique. Há alguns anos atrás,
quando eu estava no começo do meu ensino médio, li um artigo de opinião que
falava que o brasileiro era um ser que pagava para se matar de tanto trabalhar.
A alta carga horária gasta nas repartições privadas, em especial, não deixava
tempo suficiente para que as pessoas tivessem lazer e cultura, o que acabava
influenciando em seu nível de produção e no tanto de prazer tido por elas em
suas ocupações profissionais. Quase uma década depois, li em algum outro canto
que nosso povo brasileiro era o que mais acessava a rede social Orkut e o
Brasil é o país onde o Facebook mais cresce em número de acessos. O que isso
significa? Parece que realmente o excesso de atividade nos torna mais
preguiçosos.
É como se diante
de nós houvesse tantas demandas, que fazemos de tudo para fugir delas. E não
apenas isso: o contexto pós-moderno cheio de verdades líquidas que logo se
desfazem em nada é também uma coisa que nos leva a querer fugir o tempo e esses
pequenos chats online nos quais os flertes e o calor humano encontram algum
refúgio são a melhor forma de nos darmos um placebo de vez em quando diante de
um tempo cada vez mais complexo e angustiosamente veloz.
*
Caso o amigo
leitor pense que chegarei aqui e darei alguma solução prática para a resolução
desse problema, infelizmente terei de decepcioná-lo. A única coisa que pensei
até hoje foi me forçar a não olhar o celular enquanto estiver fazendo algo
sério, mas nunca consigo cumprir minha meta de não procrastinar. O pior de tudo
é que isso, mesmo com os pequenos atrasos acumulados em grandes atrasos
daquelas mensagens respondidas quando eu poderia estar adiantando alguma tarefa
atrasada, nunca me fez deixar de lado por completo alguma tarefa. Isso não e
isso deveria ser um motivo de rejubilo, não?
Mas para mim não
é. Não sei se por ser um leitor muito fanático pelos escritos de Clarice
Lispector, desde o primeiro livro dela por mim, o grande A paixão Segundo GH,
comecei a ter uma noção da necessidade que temos de entrar em contato com esse
nada de ser que é o nosso ser mais íntimo. Isso voltou com mais força quando li
dela Um sopro de vida, livro no qual esse existencialismo zen se mostrou
bastante forte.
Muitas vezes
fazemos algo fazendo como se estivéssemos no robô automático. Não nos sentimos
na performance de uma ação completa e parece que estamos a nos ver de fora.
Muitas vezes cheguei ao final de dia cheio de coisas feitas como se nada
tivesse feito. O motivo era que não prestei bastante atenção ao que estava
vivenciando e me sentia um verdadeiro autômato. O grande problema de nosso
excesso de procrastinação é que as tarefas as quais nos parecem desagradáveis
estão se tornando ainda mais demoradas de serem cumpridas pelo fato de que
estamos a perder alguns minutos que sejam na resposta de mensagens e na vistoria
em momentos inadequados do que se passa na vida virtual dos outros.
Penso que a
solução se passa por algo similar a esse existencialismo zen de Clarice:
focarmos completamente no que estamos fazendo para sentirmos algo, por mais
desagradável que seja naquilo. E depois, com o tempo livre, procurar o contato
de pessoas e hábitos os quais nos deixem felizes e leves diante do mundo
caótico no qual vivemos. Talvez o leitor pense que eu me contradisse, pois
acabei dando uma solução prática. A contradição se anula quando eu, ao escrever
isso, percebo que em poucos momentos de minha vida acordei disposto a me livrar
o mais rápido possível de tudo o que tenho para fazer naquele dia e depois me
dedicar a meia hora de leitura que seja à qual terei direito se for
disciplinado.
Por sinal, há uma
frase de Renato Russo que diz que disciplina é liberdade a qual começarei a
fazer de mantra. Ao acordar, irei repetir “Disciplina é liberdade” umas trintas
vezes, vou correr para o banheiro, tomar banho e café forte e depois me meter
nas tarefas. Percebo hoje que não sou uma pessoa sem tempo e sim alguém que
quer fazer tudo ao mesmo tempo, unindo o útil ao agradável o tempo todo, o
lazer e o trabalho em uma grande miscelânea na qual a preguiça invade as horas
de trabalho e o desprazer as horas de companhia agradável dos amigos.
Creio que se
conseguir me tornar livre, terei mais chances de no final do dia ligar para
algum amigo ou alguma amiga e quem sabe ver a pessoa fisicamente, e não apenas
virtualmente, para uma sadia troca de ideias e calor humano. Caso essa pessoa
não possa sair, eu posso me dedicar a um passeio solitário ou quem sabe a ficar
em meu quarto lendo e escrevendo, enquanto toca alguma coisa legal como REM ou
Jack Johnson em meu pequeno computador.
Acho que é isso
que falta em minha vida e na vida de muitas pessoas: a disciplina de saber
separar os momentos. De saber que agora é o momento de escrever esse texto e
sentir a dor nas costas que me atormentam e depois o momento de comer algo
saboroso e dormir para amanhã ter mais momentos de desagrado e agrado. Se
soubéssemos separar um pouco que seja tais tipos de momentos, de repente o
desagradável se tornasse mais doce ou agridoce pela simples contraposição à
forma dos momentos agradáveis de nosso dia. Enquanto procrastinamos demais,
fugindo de nossas tarefas, tentando unir demais os momentos de lazer e
trabalho, de agrado e desagrado, de descanso e conversa, de solidão e
coletividade, tornamo-nos seres angustiados por não sabermos onde estamos ou o
que estamos a fazer naquele momento.
Chartier falou em Desafios
da escrita da necessidade do leitor do século XXI se disciplinar para não se
perder no mar de informações e textos existentes na web. Sua observação vale
demais para outras áreas da existência humana que transcendem à leitura:
precisamos aprender a disciplina de nos vermos livres do afogamento em um mar
de escolhas e tarefas que podem nos tirar, sem o devido controle, nosso prazer
de viver.
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