Poesia, saudade da prosa – de Manuel António Pina (Parte III)
Por Pedro Belo Clara
Ainda
que não de um modo constante, outros temas poderão ser encontrados na poesia que
Pina reuniu neste volume, sendo tão ou mais emblemáticos que os tópicos
anteriores. Um exemplo perfeito do que se anuncia é o poema "Sexta-Feira Santa",
onde se expõe uma honesta crítica sobre a hipocrisia humana e seus actos, que
de tão banais e rotineiros disfarçam a verdadeira consequência que embalam, já
que de modo inconsciente são usualmente praticados. Este poema revela muito
subtilmente quão o Homem sente que pode empreender e comandar, sem qualquer
comiseração ou respeito pelos seres que o rodeiam. O autor transpõe para o
poema a figura e a presença de Deus, pelo que o mesmo não cessa de conter uma certa
intenção religiosa. Ainda para mais, o dito “crime” que revela é cometido pelo
teólogo que protagoniza o caso. Vejamos:
A conversa era sobre Deus,
embora o teólogo estivesse inclinado
a pensar que fosse sobre outra coisa,
pois era hora de jantar.
(…)
Tinha devorado o pargo com honesto apetite
e elogiava as virtudes do cozinheiro.
Só Deus, algures, chorava sobre
os despojos da sua pequena criatura na
travessa
a caminho da copa, antes da sobremesa.
Pina
anuncia assim o seu bem apurado e arguto olhar sobre questões comportamentais,
não se coibindo de fazer da sua crítica um motivo de criação poética, servindo
naturalmente propósitos de denúncia e consciencialização social. Será
certamente neste ponto que a sua obra adquire uma outra dimensão, mais focada
na realidade circundante e no Homem que a compõe.
Uma
vez que tocámos em questões de princípio religioso, será difícil não evocar o
poema cujo título relembra a canção de Bob Dylan: "It's alrigh, ma..." Trata-se
de um curioso retrato que, embora recheado de um fino sarcasmo e de uma
refinada ironia, reevoca um dos mais célebres capítulos do imaginário católico
sem reter a crítica que lhe é subjacente. Existe um conformismo aceite em plena
resignação, mas desta imagem de Cristo crucificado dialogando com sua mãe
emerge a descrença no Homem, por um lado, e, sob outro ponto de observação, a
humanização do próprio Cristo.
Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue
(…)
Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.
Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.
Mas,
como qualquer poeta, Pina não ignora os temas que tocam os assuntos da criação
literária e do amor. O que seriam, afinal, os poetas sem o amor plantado em
seus versos, ainda que muitos rostos se lhe adivinhem? Na sua ausência, quadras
como a que encerra "Completas" não seriam, de todo, possíveis:
Protege-se com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
É
um amor de natureza frágil e que carece de cuidado, como vemos, mas igualmente
um amor de abertura e exposição, efectivadas no cerne daquilo que tanto
comporta: a entrega.
Sobre
o ofício que tão bem praticava, de linha segura, competente e sentido conciso e
apurado, Pina versa-o em extremos. Primeiro, é-nos possível adivinhar aquilo
que cada poema tenta alcançar: «(...) procura / a voz literal / que
desocultamente fala / sob tanta literatura» (Arte poética). No entanto, da
observação exterior chega a desilusão, a descrença no poeta e na utilidade do
seu trabalho. «A literatura é uma arte /
escura de ladrões que roubam a ladrões», disse-o em Emet. E, em A poesia vai, a
mais cruel das inevitabilidades, em sua óptica, revela-se num misto de crítica
social e humana: «A poesia vai acabar, os poetas / vão ser colocados em lugares
mais úteis. / (…) / Um senhor míope atendia devagar / ao balcão; eu perguntei:
“Que fez algum / poeta por este senhor?”». Quase ao jeito de Holderlin, a
pergunta de sempre é colocada. Restará, portanto, aos poetas vindouros
encontrem em si a digna resposta.
Manuel António Pina revelou-se um dos
escritores mais importantes da literatura portuguesa, especialmente no capítulo
da poesia. Este breve volume, por sua mão ordenado, será sem dúvida a ideal
forma de conhecer melhor o poeta e o seu universo de escrita. É um autêntico
“Best of” do mundo dos livros onde se expõe o coração do autor e os seus
naturais anseios, as suas dúvidas, as suas alegrias, as suas dores.
Por
palavras se expressou e em palavras se legou. Certamente que por palavras será
recordado, antes que o silêncio mais negro e absorto, talvez o maior assombro
dos poetas, possa enfim reclamar para si cada verso, cada rima, cada letra. Mas
enquanto o leitor cumprir a sua tarefa, o poeta permanecerá vivo entre os
poemas que semeou.
(...)
isto é, palavras,
formas indecisas
procurando um eixo que
lhes dê peso, um sentido capaz de conter
a sua inocência
uma voz (uma palavra) a que se prender
antes de se despedaçarem
contra tanto silêncio
(…)
(Tanto silêncio)
Ligações a este post:
Leia aqui a primeira parte do texto de Pedro Belo Clara. E aqui a segunda parte.
Leia aqui a primeira parte do texto de Pedro Belo Clara. E aqui a segunda parte.
Em junho de 2011 quando da recepção do Prêmio Camões para Manuel António Pina editamos um conjunto de notas sobre a vida e a obra do escritor português mais um catálogo com textos seus.
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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
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