Passeios pela literatura de Mia Couto
Mia Couto seria um homem branco africano desconhecido, filho de colonos português, com corpo comum, óculos e barba rara comum, mãos sempre em movimento, jaqueta e calças comuns, olhos claros comuns. Seria apenas quando muito António – seu nome de batismo – que cruza pelas ruas e ninguém vê. E se assim fosse, este anonimato é o preferia, disse já reiteradas vezes o escritor, misto de timidez e simpatia demonstradas nos gestos e na voz melódica.
O escritor é um contador de histórias. E isso é o que mais faz Mia
Couto quando salta para fora dos livros para cumprir a sempre lotada agenda. E faz
com um português recriado daquilo que muito ouviu quando criança e durante toda
sua vida na extensa aldeia chamada Moçambique tão marcada pela diversidade cultural.
“À medida que ia nascendo, ia sendo escritor. Foi algo que me acompanhou no
descobrimento de mim mesmo”, refere-se de como foi se tornando escritor.
Na já prestigiada carreira literária, a última honraria de grande valor
recebida foi o Prêmio Camões de Literatura em 2013 – grandiosidade que se
justifica pelos nomes que também já receberam o galardão, José Saramago,
António Lobo Antunes, Manuel António Pina, Jorge Amado, ou seu parceiro José
Craveirinha, este último, sem dúvidas, uma das vozes mais significativas da
literatura produzida em África.
Quando foi distinguido, justificaram sua “inovação estilística e
profunda humanidade”. De fato, os temas recorrentes na sua literatura, a vida,
a morte, os sonhos e natureza, – temas que o importam – recebem um tratamento
individualizado na matriz literária. Tudo aparece sempre marcado por construções
que reforçam desejos, frustrações, nostalgias, amores, em personagens com extensa
vida interior e muitos planos e forças sobretudo
imaginária de existir.
“Em Moçambique, o que não se vê é mais importante do que o que se vê”,
diz. “África está repleta de Macondos”, reportou outra vez. E em Moçambique não
pulsa um realismo mágico; Moçambique tem um “realismo real”. E isso, enquanto
escritor atento a tudo, o fascina. “Tenho o privilégio imenso de viver num país
onde se produzem histórias... Moçambique existe porque é um grande produtor de
histórias. E estas surgem do confronto e da convivência de diferentes culturas,
povos, nações, religiões.”
Mesmo tendo se tornado o escritor de grande reconhecimento ao redor do
mundo, Mia Couto não se desvencilhou totalmente de sua profissão como biólogo. Ainda
mantém uma pequena empresa que trata de questões ambientais. Impacto, é o nome
da firma. Cuida de fazer estudos para licenças para empreiteiras que têm
qualquer atividade de impacto no meio ambiente. A sede da empresa fica em
Maputo, cidade onde se instalou desde 1972 e capital do país.
Como os portugueses que sempre cumprem a necessidade de autoafirmação nacional,
Mia Couto nunca deixa de marcar seu lugar de pertença quando numa entrevista ou
outra sessão pública – “Sou Mia Couto, escritor moçambicano”.
Além de formado em biologia, contista, poeta, romancista, teatrólogo,
Mia Couto também estudo medicina e foi por mais de uma década jornalista, até
1985, quando dirigiu o diário Notícias
de Maputo e a Agência de Informação. Mas, de todas as designações prefere ser
chamado apenas de uma, escritor, exercício
que pratica desde sempre. Já aos 14 anos publicou poesia. Não era para menos. “Sou
filho de um poeta, alguém que não era apenas porque escrevia, mas porque era de
alma. Ele me ensinou essa sensibilidade, essa maneira de ver o mundo. E porque
em certo momento eu pensava que ser adulto era isso, pois automaticamente o
relacionava com essa gente que vinha em minha casa, escritores e jornalistas”,
diz. “Ser poeta era uma espécie de condenação em nossa casa. Minha mãe olhava
seus filhos com preocupação (‘será que vem outro?’), pois pensava que isso era
quase improdutivo e inútil. Assim que sem pensar fui sendo escritor.”
A marca paterna avivou-se depois da sua morte. Num poema que integra o
novo volume de poesia publicado em 2014, Vagas e lumes, Mia Couto dedica um poema a essa figura importante: “Se partiste, não
sei. / Porque estás, / tanto quanto sempre estiveste.” Ainda nessa poema, o
eu-lírico prova como se muniu dessa sensibilidade aguçada: “No silêncio
distraído / de uma varanda / que foi o teu único castelo, / ecoam ainda os teus
passos / feitos não para caminhar / mas para acariciar o chão.”
Mas, não apenas a herança familiar conta nesse processo de aquisição da
postura do escritor. Ou da sensibilidade que relembra. Para Mia, ser escritor é
também ser parte de uma sociedade com vozes diferentes, “sou filho dessas
vozes: algumas procedem de África; outras, de Europa, e isso me encantou.”
Além da delicatesse da
palavra poética, a prosa (igualmente enxertada dela) veio de que ele chama por clic quando trabalhava como jornalista; começou
a apreciar a força da oralidade do país. E toda sua obra romanesca está vestida
da possibilidade de traduzir essa
oralidade laçada entre o tônus das línguas bantus, três dezenas delas no país,
o português europeu. Ao longo de seus romances, engendra narrativas entre o
relato, herança das atividades do jornalista, e da natureza dos mitos, o humano
e o sobrenatural, o social e o fabular, o ancestral e a guerra, a política de
hoje a memória história. Uma obra costurada de interstícios. “Conhece a
diferença entre o sábio branco e o sábio preto? A sabedoria do branco mede-se
pela pressa com que responde. Entre nós o mais sábio é aquele que mais demora a
responder. Alguns são tão sábios que nunca respondem”, assinala uma passagem de
O último voo do flamingo.
A extensa produção literária africana é de matriz oral; depois de
romper com algumas dificuldades como os confrontos da guerra civil entre 1977 e
1992, período que lê como o mais danoso, porque matou duas vezes a literatura,
a matriz oral e a cultura do livro, ainda incipiente. Outra dificuldade na consolidação
de um território literário, ao menos esse da língua escrita, se dá pela
distância dos diversos idiomas, da cultura da imprensa escrita mais ligada aos
grandes centros. Mesmo tendo-se destacado nomes como Paulina Chiziane, Lília
Momplé e o próprio Mia Couto, ele não deixa de ver as grandes lacunas ainda
prementes no seu país.
Conforme lê esse cenário, Mia Couto, diz que do ponto de vista oficial,
não tem qualquer importância ser escritor; o jornalismo, sim, tem outro
carisma, embora reconheça que o prestígio social, este sim, o escritor tem
mais. “Há uma espécie de idolatria pelo escrito, se supõe uma sorte de relação com
o divino. Na rua me param todo o tempo, como se fosse o jogador de futebol Mia
couto. Isso acontece com todos, não é algo particular a mim. Para um país que
lê tão pouco e com tanta alta taxa de analfabetismo, é incrível. Surpreende-me
todos os dias. É como se as pessoas projetassem em mim uma voz que eles têm
ofuscada”, confirma.
Seu romance mais quisto pela crítica (e lido como o mais importante da
sua carreira) é Terra sonâmbula,
texto carregado pelo contexto histórico do passado nebuloso daquele país.
Embora essa situação esteja presente, Mia Couto prefere concordar com a ideia
de que a literatura é, sobretudo, invenção. “Raramente o que escrevo é
verdadeiro”. Prefere compreender o romance como uma mescla de temas e um
distanciamento com o fato vivido. No caso de Terra sonâmbula é mais visível a indiferença, a solidão, o estágio
de colapso a que foi submetido os sujeitos, a necessidade de recontar-se, de
reinventar existências.
Apesar dessa necessidade de se distanciar do real, Mia Couto não se faz
de um descuidado com a realidade. Teve desde cedo uma ligação muito forte com a
política. Aos 17 anos quando abraçou a causa pela independência, foi membro da
Frente de Libertação de Moçambique, organização de base marxista-leninista. Era
um grupo que aceitava toda sorte de raças – brancos, indianos –, mas eram
isentos de pegar em armas, condição que, segundo ele, nunca o fez guerrilheiro,
de verdade. Quando entrou para o movimento trabalhou como clandestino, mas
sempre na cidade; na ocasião era estudante universitário. Logo quando se
ofereceu para fazer parte do grupo, teve resistências da parte dos integrantes;
apesar da diversidade da organização, naquele momento ele era o único branco. É
desse período que começou a escrever poesia e publicar. E foi a escrita o que
avalizou sua entrada.
É desse tempo que o escritor ingressa um contato com o povo; é desse
tempo que as histórias ouvidas, de vozes tão diversas vão sendo depositadas
para mais tarde serem recriadas. Tudo na sua escrita é mistura. Desde a
linguagem ao que se conta. Apesar de comum, mas é uma observação necessária, já
os títulos de seus romances carregam o choque cultural entre brancos e negros,
as assimilações; lembre-se de O último
voo do flamingo ou A confissão da
leoa. O primeiro título tem sua base na história do soldado da ONU que
perde o pênis quando lhe estoura uma mina terrestre. O acontecimento era já uma
anedota. “Eu tinha que trabalhar em zonas minadas; eu ouvia essa história, até
que encontrei dois motoristas que
contavam isso e aí perguntei a eles: ‘sim, explodiu o soldado?’ ‘Sim’, diziam. ‘Pelas
minas?’ ‘Não, por outra coisa, explodiram por sair com suas mulheres’.” Já a
história do segundo romance, também tem sua base numa história real: “eu
trabalhava no norte num projeto de gás, me avisaram em minha tenda de madrugada
de que havia um homem morto; quando cheguei, ‘foi morto por um leão...’ voltei
para tenda com medo. Nesse período, era 2008, esse caso foi o primeiro, o único
homem, logo todas foram mulheres; em quatro ou cinco meses, os leões mataram
25. Eu não estava preparado para conviver com a ideia de ser devorado por uma
fera.”
Se a literatura não é capaz de salvar as pessoas, é capaz de fazer outras as pessoas. Assim, compreende o escritor desde que assumiu um nome distinto, diferente do seu nome de registro, António Emílio Leite Couto, o que certamente o fez criador de um universo igualmente rico, para além das convenções da realidade. O romance é possibilidade de ser uma armadilha para alguns demônios que ronda a existência humana: “a literatura é terapêutica, psiquiátrica, harmoniza os moçambicanos consigo mesmo.”
Se a literatura não é capaz de salvar as pessoas, é capaz de fazer outras as pessoas. Assim, compreende o escritor desde que assumiu um nome distinto, diferente do seu nome de registro, António Emílio Leite Couto, o que certamente o fez criador de um universo igualmente rico, para além das convenções da realidade. O romance é possibilidade de ser uma armadilha para alguns demônios que ronda a existência humana: “a literatura é terapêutica, psiquiátrica, harmoniza os moçambicanos consigo mesmo.”
Ligações a esta post:
Leia o poema de Mia Couto referido nesse texto mais outros inéditos de Vagas e lume.
Duas notas sobre a vida e a obra de Mia Couto
Duas notas sobre a vida e a obra de Mia Couto
* texto escrito a partir da entrevista cedida por Mia Couto a Lola Huete Machado para El País.
Comentários