Julio Cortázar e Isel Rivero: confidências
Uma das novidades mais interessantes que tem surgido em torno de Julio
Cortázar, sem dúvidas um dos autores mais célebre do chamado Boom
Latino-americano, é a extensa correspondência com que manteve durante muitos
anos com amizades não tão badaladas, como a tida com Isel Rivero. São escritos
que vieram a lume só muito recentemente. E certamente, esta compreende um dos
mais ricos tomos da escrita íntima do autor de O jogo da amarelinha.
Osita, Osezna, Oseznita, Iselísima são apelidos ou formas carinhosas
com as quais Julio iniciava suas cartas a sua amiga de alma. Cartas em que o
escritor argentino se revela como uma pessoa de uma ternura alegre e
requintada; repletas de neologismos, jogos de palavras, poemas visuais,
desenhos e que nos mostram muitos aspectos inéditos de sua persona. Porque
Cortázar, ainda sendo um dos escritores mais estudados pelas universidades de
meio mundo, e acostumado à dar cara em todo tipo de atitude que teve por
objetivo a condenação das ditaduras do continente latino-americano era, como
recorda Isel Rivero, “um homem reservado e tímido no pessoal”.
A nutrida correspondência se estende ao largo de seis anos, de 1970 a
1976, o tanto que durou a estreita amizade entre a poeta cubana e o escritor. Julio
Cortázar e Isel Rivero se conheceram em 1969 em Viena, cidade onde escritor
esteve trabalhando como tradutor para
uma conferência da Agência Internacional de Energia Atômica e onde Isel Rivero
também trabalhava como funcionária da Organização das Nações Unidas para o
Desenvolvimento Industrial (ONUDI), posto no qual ela começava uma extensa
carreira como funcionário em organismos internacionais que a levaria por
África, Estados Unidos e finalmente Espanha, onde se aposentou recentemente
como representante da ONU naquele país.
Isel tinha então 27 anos e o escritor 58. Ele estava separando-se de
sua primeira mulher. “Cortázar me fascinou desde o primeiro momento. Era uma
pessoa cativante, com muito sentido de humor e cultíssimo. Tanto podia falar de
música como de história, pintura ou literatura.” O reconhecimento parece, então,
ter sido mútuo. Cortázar reconhece em suas cartas que também esteve fascinado
pela poesia de Isel: “Ninguém poderia escrever como tu, mas muitos poderiam
assiná-la”. Não apenas a anima constantemente à escrita como também faz
diversas sugestões com Félix Grande, da editora Ocnos, e Cristina Peri Rossi,
da Lumen, para que sua amiga seja publicada. Uma aspiração que só foi realizada
muito recentemente quando uma antologia foi apresentada reunindo toda a obra de
Isel, Relato del horizonte.
Além da literatura, também os uniu a paixão por viajar e sobretudo por
viajar de uma certa maneira que Isel descreve “como exploradores”. “Tínhamos a
fantasia de que éramos Stanley e Livingstone na Europa”. De forma que sua
mítica Volkswagen Camping, com a qual percorreu os castelos da Baviera, Cortázar havia colocado o nome de Fafner, o
mítico dragão da opera Siegifried, em
honra a Wagner, que ambos admiram.
Depois do primeiro encontro em Viena, vieram outros mais em distintas
cidades onde planejavam os encontros seguintes – Siena, Florença, Valência,
Munique, assim como a troca de visitas entre
Paris e Viena, onde cada um morava. E entre todos esses encontros esteve
marcada a presença das cartas que, dentre tantos assuntos, esteve recheada de
comentários sobre os lugares que os dois visitaram juntos ou fizeram planos de
visitar. “Quando te vejo, quando realizaremos de novo tantas coisas?” – escreve
Cortázar recordando o caráter lúdico desses encontros.
“Sou feliz como um relâmpago no trigo”, diz em outra carta. Mas poucas
vezes fala sobre seu estado de ânimo. Parece sempre mais preocupado com o da
sua amiga, perguntando-lhe constantemente sobre sua vida, sua poesia,
oferecendo ajuda, agradecendo cada detalhe ou presente recebido. Nessa época, já
a globalização avançava seus tentáculos e uniformizava o consumo, e receber
tabaco holandês ou um disco de Viena em Paris tinha, todavia, algo de exótico. Assim,
o intercâmbio de pequenos presentes era um leit
motiv constante da relação entre os dois, como deixa entrever as cartas.
“Os presentes chegaram, e os sais afrodisíacos fazem de meus banhos uma
ameaça pública constante, pelo que terás de responder se um dia tanta espuma
dourada chega até Notre Dame e a derruba entre alaridos dos catecúmenos e as
sirenas da polícia”, escreve Cortázar. Vemos também o próprio escritor, ao
largo de duas ou três cartas, preocupado por encontrar em Paris um secador de
alface que tem prometido enviar à sua amiga de Viena. “Compartilhávamos o gosto
pela cozinha, e a tínhamos por outro terreno de exploração”, recorda Isel.
A troca de discos e as referências à música são constantes, sobretudo
sua paixão pelo jazz, que o levará a tocar o trompete e a considerar Sachtmo
(Louis Armstrong) como alguém determinante em sua vida. Mas também tem palavras
críticas sobre Yoko Ono, “a fodida japonesa que não sei por que você gosta
tanto. Eu te agradeço muito o disco, mas não vejo por que a gratidão deve
incluir a mentira, verdade? [...] Essa bebê não tem nenhum talento, suas canções
são em geral muito fastidiosas e chatas, além de que sua voz, antes da invenção
do microfone, teria pertencido à categoria das coisas inexistentes”.
“Julio era alguém muito generoso, sempre se prestava a ajudar a todo
mundo e nunca o ouvi falar mal de nenhum escritor; nem de Borges, apesar de
suas ideias políticas. Dele apenas dizia: ‘És de direita, mas um velhinho
fascinante’”, diz Isel.
Também em suas cartas, Cortázar fala muito de outros escritores que lê
e com quem se encontra. “Vou dia 24 a Barcelona para ficar até o fim do ano com
García Márquez, Vargas Llosa e, espero, Carlos Franqui, entre outros cronópios”,
escreve em dezembro de 1970. Eram tempos em que Carlos Barral reunia em torno
em sua editora o mais reconhecido dos escritores espanhóis e latino-americanos,
o que levará Cortázar novamente a Barcelona na primavera de 1972 para ser
jurado do Prêmio Barral: “Embora odeie ser jurado, tinha que dar uma mão a
Barral, que tem toda sorte de dificuldades desde que se separou o grupo de Seix”,
escreve em junho de 1972.
De alguns escritores fala com verdadeira fascinação , como de Robert
Graves, a quem visita na primavera de 1972 em Mallorca: “Está muito velho, mas
pleno de malícia... Como não lhe deram o Nobel fala mal de todo mundo; disse
que Neruda é um asco e que Borges o faz dormir em pé, tudo isso com uma faísca
de ironia nos olhos; um velho encantador, e para mim, sempre, o homem que
escreveu, Eu, Cláudio e tantos poemas
memoráveis. Decidiu que Deià é um dos três lugares ‘onfálicos’ do mundo, com
Delfos... Curiosamente, Deià se parece muito com Delfos... O lugar é muito
mágico”. O escritor conta na mesma carta suas experiências num ambiente de
hippies próximo a Graves: “Aqui todos meus amigos fumam diversas drogas até a
mais violenta, e se passam horas contando suas diversas trips, que em muitos casos são extraordinárias. Todos escrevem,
pintam, nadam, fazem amor como leopardos, brigam e fazem as pazes e formam uma colônia
com a qual me entendo bem”.
O que não dizer que fosse um incondicional dos círculos literários. “Volto
do México”, escreve em 4 de abril de 975, “e se quase não vi gentes como
Octavio Paz ou Juan Rulfo; em troca, discuti horas e horas com estudantes o
problema chileno e cubano e creio que foi melhor. Cada dia sinto mais que os ‘intelectuais’
se agarram a seus caducos privilégios e que poucos deles encontram a maneira de
não perder-se como intelectuais ao fazer algo positivo noutro plano”.
Cortázar desconfia da fama. Em novembro de 1970 conta como foi sua
experiência de Chile e Argentina, onde já é um autor muito conhecido: “Foi belo
e horrível de uma só vez, senti a força desse outro que sou eu lá, o autor
cé-le-bre, o tipo que não pode sair à rua sem que lhe corram em cima para
pedir-lhe autógrafos – o quinto Beatle, que horror. Paris é de novo uma ilha, o
anonimato maravilhoso, mas agora sei, por razoes muito sérias, que deverei
voltar a Argentina e passar pelo menos dois meses DANDO A CARA, isto é,
aceitando entrevistas, mesas redondas, ajudando aos meus na sua luta contra os
gorilas. E será duro, e sairei perdendo em mim mesmo o que acaso poderia ganhar
noutros terrenos”. Na mesma carta se refere à sua passagem pelo Chile como “um
novo capítulo da perseguição, do amor barato do público”.
Se não fosse por sua solidariedade com as esquerdas na América Latina e
isso a que chama “espetáculo do dever político”, dificilmente havíamos visto
Cortázar tomando a palavra ante um microfone. Ele próprio reconhece isso antes
dessa viagem a Santiago, onde vai em outubro de 1970, à posse de Allende
convidado pela Sociedade de Escritores do Chile: “É uma solidariedade política
que creio fundamental em meu caso, na medida em que esse governo é (ou trata de
ser) o primeiro governo de linha socialista no Cone Sul... Pessoalmente odeio
cada vez a política, mas também aos gorilas e aos americanos; já vês, Isel, que
não tenho outra opção salvo a de manter-me em minha casa (e que sigam os genocídios
etc., o velho sistema do avestruz)”.
O que mais surpreende o dia hoje é ver como um autor que era
considerado já a figura mais destacada do Boom
Latino-americano se via obrigado a ganhar a vida fazendo traduções e buscando
trabalhos como revisor de textos em organismos internacionais como a UNIDO, a
Agência Atômica ou a Unesco. Apesar de sua fama, neste aspecto não se
diferenciava muito de Isel: “Ambos tínhamos que escrever por noites ou em
trens. Aproveitávamos também nossas viagens para escrever”, recorda a poeta
cubana.
As dificuldades que encontra para desempenhar atividades que rodeiam
hoje a profissão e interesses de escritor, como é dar cursos e conferências,
estão em outra carta: “Estou tapado
pelo trabalho que considerará minha visita a Oklahoma, onde além de duas
conferências tenho que intervir em cinco reuniões com estudantes, cada uma
sobre um livro meu. Nada disso é piada, e passo o dia lendo e trabalhando sobre
o assunto, porque não tenho ideias, apenas imaginação, e armar uma conferência
ou exposição sobre um tema me custa horrores”.
Mas escrever tampouco era sempre tão fácil como poderia supor-se sobre
ele. “Trabalho como um forçado... escrevo pouco e sonho muito”, disse em
janeiro de 1972 referindo-se à difícil “tarefa de terminar um romance duas
vezes interrompido”. “Sei por amarga experiência de épocas de cova”, escreve em
outubro do mesmo ano, quando está corrigindo já as provas do que será O livro de Manuel.
Cortázar, que por essa época já havia publicado seu romance mais
importante, O jogo da amarelinha,
além de outras como Modelo para armar
e boa parte de seus contos, se refere em várias cartas a’O Livro, que inicialmente
tinha o título provisório de O aileron,
sobre o qual se mostra interessado em conhecer o parecer de Isel.
“Sempre havia lhe dito que tinha que se despir mais e por em sua
literatura mais de suas experiências íntimas. Quando disse ‘já fiz isso’,
fiquei muito contente”, destaca Isel. Em setembro de 1973, Cortázar escreve: “Me
comove muito, creio, o que me dizes de Manuel.
Tu sabes ver tantas coisas que escapam aos outros, especialmente aos wise men. Valia a pena ter escrito o
livro para alguém como tu”.
Não parece confiar muito na recepção que o romance terá na Argentina,
de onde supõe “vai desencadear um duplo e previsível ataque dos eternos
sectários da esquerda e da direita; os primeiros entenderão que não sou
respeitoso ao escrever sobre questões políticas e os segundos lamentarão que
tenha deixado de inventar ficções puramente fantásticas. Por isso quero está
aí, mas voltarei, sem dúvida, a wider and
a sadder man, mas isso é a regra do jogo”.
O que mais interessará aos estudiosos, sem dúvidas, é conhecer através de suas cartas como se
corresponde o mundo pessoal com o mundo literário de Cortázar e que aspectos de
sua vida é transmutado em literatura. Assim, por exemplo, nos encontramos a
camioneta, as viagens e o carinhoso apelido de Osa que dedica a Isel estão transferidos à personagem feminina de Os autonautas da cosmopista. Ele próprio
revela noutra cara que um de seus contos, “Lugar chamado Kindberg”, publicado
no volume que leva por título Octaedro, foi inspirado em sua relação com Isel: “Diz-me
em seguida se te chegou ou não; se há alguém que eu queria que o recebesse
antes de tudo eras tu, Osezna, posto que há aí um conto que te guarda por
inteira, com mel e pele e pelos e grunhidos e fogo na chaminé e vinho branco”.
Noutra carta lhe diz a propósito do mesmo conto: “Meu conto é cruel e penoso
pra mim, na medida em que me identifico com Marcelo como identifico a menina
chilena contigo”.
A troca de manuscritos e críticas levará também Cortázar enviar a Isel
um conto que ficou inédito durante muito tempo. É “Prosa de observatório” e
nele se contrapõe a experiência que tem de seu mundo as enguias do mar do Norte com a visão que nos
oferece do universo o observatório astronômico construído em Jaipur por Jai
Singh, uma mostra dessa “realidade mágica” que não é outra que o particular
olhar literário que caracteriza o escritor.
Comentários