Entendendo o universo feminino e a ditadura militar: resenha de “As meninas”, de Lygia Fagundes Telles
Por Rafael Kafka
A ditadura militar brasileira é um período histórico ainda muito
marcado pelo mistério acerca dos fatos ocorridos nos poucos mais de vinte de
anos de vigência. Crimes de tortura, corrupção, censura, exílios e uma
série de outras coisas foram marca registrada de uma época da vida social no
Brasil marcada pela constante agressão aos direitos humanos e ao direito de
expressão e liberdade de ir e vir. Ainda assim, vemos no ano de 2014 uma série
de manifestações repletas de discursos de ódio pedindo a volta de um poder
comandado pelos militares para restaurar a paz social de nossa nação, que
segundo uma pequena parcela de maus perdedores das últimas eleições ainda se
encontra ameaçada pelo terror comunista.
O que soa mais
perturbador nisso tudo é ver pessoas como Jair Bolsonaro alegarem em nossa
conturbada contemporaneidade que nada disso que se fala por aí realmente
ocorreu na ditadura militar e que tudo não passa de mentiras de uma oposição
composta de vagabundos arruaceiros a fim de implantar o leninismo em nossas
terras. Tais pessoas alegam que naquele tempo não havia corrupção com uma pose
de cientistas políticos de doer, mesmo que ignorando com bastante má-fé que no
período do militarismo a imprensa ou era vendida aos coronéis ou cortada
completamente em seu direito de expor fatos sobre a realidade do período.
Tudo se torna
ainda mais interessante de ser analisado quando nos deparamos com o fato de que
as pessoas que defendem uma intervenção militar sequer se dão ao trabalho de
procurarem ler os inquéritos da Comissão Nacional da Verdade ou mesmo obras de
arte que foram produzidas relatando os fatos ocorridos quando no Brasil tudo
era resolvido na base da cacetada, do exílio e da tortura (se bem que ainda
hoje, em diversos cantos das cidades brasileiras, ainda seja tudo resolvido
assim, ficando, portanto, perigoso falar em termos de tempos idos).
Um interessante
livro para se entender esse período é o romance As meninas da autora brasileira
Lygia Fagundes Telles. O romance em questão conta a história de três amigas e é
ambientado no período da ditadura militar. O foco narrativo do
romance passa por constante alternância entre uma e outra
personagem e isso transforma o enredo em um verdadeiro quebra-cabeça, caleidoscópico, que no decorrer da trama se complementa em cenas narradas por
mais de único ponto de vista.
As meninas que dão título ao romance são Lia, Lorena e Ana Clara, três amigas de longa data que apresentam características bastante diferentes entre si, mas que não deixam de ter uma amizade bastante sólida e forte, mesmo permeada de conflitos. Cada uma delas assumirá o foco narrativo e a voz de narrador-personagem em diversos momentos do texto nos permite entender as origens e os motivos de uma personagem por meio da outra.
Lorena, por
exemplo, é uma jovem culta e cheia de sonhos bastante femininos de obter um
casamento e assim se sentir plena na vida. Perde-se em devaneios literários e
filosóficos sobre a essência do ser e estar e divide-se entre as paixões juvenis
por pessoas da mesma idade que ela e o amor ardente por um homem mais velho de
nome Marcus Demesius, ou MN, como ela o chama durante a maior do tempo. Lorena
é de família rica e vive recebendo dinheiro de sua mãe, que é passado para as
amigas resolverem os seus problemas pessoais. Quase o tempo todo, vemos Lorena
trancada em seu quarto na companhia das freiras que cuidam do pensionato onde
ela mora, das amigas Lia e Ana ou mesmo de algum rapaz morto de amores por ela.
É uma personagem que passa a impressão de ser rodeada pelo mundo, cheia de
pensamentos e problemas a serem resolvidos e que por isso não consegue se
deslocar de seu ponto de origem.
Ana Clara, por sua
vez, revela um passado cheio de traumas por conta de sua mãe que se envolveu com
diversos homens, alguns inclusive tentando abusos sexuais contra a própria Ana.
Percebemos nela um discurso cheio de racismo e machismo, que se caracteriza por
uma procura pelo casamento bem diferente da que é tida por Lorena: enquanto
esta vê o casamento como uma experiência de profundo sentido ontológico e
moral, Ana apenas o vê como a chance de subir na vida, de ter alguém que banque
os seus caprichos e lhe dê uma vida bastante confortável. Enquanto se divide
entre seu “escamoso”, o atual noivo que ela vê como a porta de entrada em um
mundo de glamour, ela passa dias se drogando com Max, um amante da mesma faixa
etária que ela. Dessa união clandestina, nasce um feto que agora precisa ser
eliminado contando com a ajuda de Lorena, que doa a quantia para a realização do
aborto. O discurso de Ana Clara chega a ser odioso em diversos momentos e temos
real noção de seus problemas com drogas pelos relatos de Lia e Lorena.
Lia é a personagem
mais interessante do ponto de vista político. Longe de ser uma fútil como Ana
Clara, aparenta-se com Lorena pelo fato de possuir um imenso poder intelectual.
Ainda assim, difere de Lorena pelo fato de ter uma posição a ser defendida no
decorrer da trama: a de esquerdista militante que se posiciona contra os abusos
cometidos pelos ditadores que aqui governam no período em que se passa o
relato. Lia possui um romance com o jovem Miguel, militante como ela, mas que
se encontra preso devido à atuação em protestos contra a ditadura. Lia é filha
de um ex-nazista com uma baiana, mistura de condições a qual torna seu enredo
particular em uma espécie de símbolo de uma classe oprimida que começa a
questionar por vias conceituais e práticas, cada vez mais, a posição imposta
pela classe dominante a ela na nossa sociedade.
Cada uma das três
personagens conta histórias paralelas que se interconectam e
juntas forma um belo panorama social sobre classe e raça. Lorena lembra demais o Andrés de O livro de Manuel, de Julio Cortázar, por
ser alguém que possui um alto poder cultural, porém não possui o menor desejo
de sair de sua situação confortável para efetuar qualquer mudança na sociedade.
Pelo poder da reflexão, Lorena espera se colocar acima de qualquer situação
concreta que se apresente a ela, ao mesmo tempo em que usa da caridade de seu
dinheiro para ter alguma espécie de consolo para a sua inércia mais do que
voluntária. Já Ana Clara procura usar o seu passado como justificativa para uma
postura egoísta e preocupada o tempo todo com ascensão social, repetindo o quanto odeia pobre e preto, e dizendo que após tanto sofrimento tido
nada mais justo do que ela se dar bem com a fortuna de seu “escamoso”. Lia, por
sua vez, procura engajar-se em um movimento crítico contra a estrutura social
vigente, mas deve viver uma contradição atrás da outra, como a do envolvimento
com um jovem de seu grupo de revolucionários enquanto seu namorado está preso,
a dependência do dinheiro de Lorena pertencendo esta à classe tão criticada por
ela, a constante crítica aos devaneios apaixonados da menina burguesa ao mesmo
tempo em que ela se propõe a ter um idílio amoroso disfarçado de autoexílio na
Argélia com Miguel e outras coisas mais.
A ditadura militar
no romance de Lygia Fagundes Telles aparece como o pano de fundo de um contexto caótico. Vemos diante de nós personagens angustiadas com seu passado e
tentando produzir algo concreto com seu futuro. Em Lia vemos alguém que de
certa forma se sente segura de seus rumos, pois rompeu a barreira da esfera
meramente individual para entrar em contato com o mundo que a rodeia.
Projetando-se para frente, procurando se concretizar enquanto ser, ela
transforma a sua angústia em práxis e dessa forma se sente mais plena, mesmo
que o seu amor por Miguel a perturbe e a faça sair de seus rumos em certos
momentos. Ainda assim, ela consegue manter-se acima da angústia abstrata de
suas amigas, presas em demasia no seu universo de angústias pessoais.
O livro lembra
demais em alguns aspectos O livro de Manuel. Usando-se de uma linguagem
realista mágica, cheia de marcas de oralidade como anacolutos e discurso
indireto livre e a narração de cenas com altas cargas de absurdo, Lygia Fagundes Telles se
aproxima em qualidade do grande mestre argentino, apenas não tendo a mesma
genialidade deste para dar voz a um narrador irônico e que fala como se
estivesse em uma mesa de bar. Ainda assim, a autora brasileira consegue mostrar
de forma sutil o caos que era a sociedade do período militar e de como as
pessoas começam a se sentir fragmentadas em si mesmas, ao passo que o Estado ao
seu redor se transforma em algo brutalmente opressor.
Talvez se o
romance fosse um pouco maior, o equilíbrio entre o lirismo das personagens e a
crítica social do período fosse mais acentuado e mais profundo em sua
capacidade de comunicação. Ainda assim, como panorama social de um período
conturbado ou como exploração do universo feminino que se metamorfoseia em três
projetos de vida, o livro de Lygia Fagundes Telles se torna em uma excelente leitura, fluida e
cheia de idas e vindas. Muito boa para quem gosta de contribuir com o autor na
criação de sentidos de uma literária.
E sem dúvida
alguma, em um bom instrumento para se entender um pouco melhor esse período tão
sombrio de nossa história, que até hoje ainda emite seus lúgubres gritos de
barbárie e controle de mentes. Em especial, nos contextos menos afortunados.
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