Drácula, de Bram Stoker
Por Gustavo Martín Garzo
Bram Stoker |
Em abril de 2012 se cumpriu um século da morte do escritor irlandês
Bram Stoker, autor de Drácula (1897),
romance sobre o qual disse Oscar Wilde é o mais belo nunca escrito. É estranho
um qualificativo referindo-se assim a um livro que fala sobre a desgraça de
existir, de um mundo presidido pela abjeção e pelo mal. O romance começa com o
diário de Jonathan Harker, um agente imobiliário que viaja à remota região dos
Cárpatos para formalizar a venda de uma casa em Londres e não tardará em
descobrir ser prisioneiro do estranho e monstruoso ser que o acolhe em seu
castelo.
Numa das passagens deste diário, Jonathan Harker nos narra seu encontro
com três luxuriosas mulheres que aparecem em seu quarto aproveitando a ausência
do conde, seu amo e senhor. São três vampiras e, embora Harker se dê conta em
seguida de que maléfico as impulsiona, não pode evitar cair sob sua tentação. “Meu
coração”, escreve, “inflamou-se com um
desejo malvado e ardente quando me beijaram com aqueles lábios roxos”.
Representam essas mulheres, como a Lilith bíblica, o lado escuro e
perverso do ser feminino, a ameaça de uma sexualidade livre, sem as ataduras da
religião ou as convenções sociais. Primo Levi, em seu relato Lilith, descreve assim a primeira
companheira de Adão: “Ela gosta muito do sêmen do homem e anda sempre próximo
de ver onde pode cair (geralmente nas florestas). Todo o sêmen que não finda no
único lugar consentido, isto é, dentro da esposa, é sujo: todo o sêmen que o
homem há desperdiçado ao longo de sua vida, seja em sonhos ou por vício e adultério”.
Todo o sêmen que o homem desperdiçou, o que tem a ver com os sonhos e os
desejos inconfessáveis, é símbolo dessa sexualidade obscura e sempre ávida de
novas vítimas que representa o vampiro.
Uma das traduções de Drácula no Brasil - a feita por Lúcio Cardoso. |
Drácula, escrita em plena era
vitoriana, fala com um atrevimento insólito à sua época, do desejo sexual. Esse
desejo não só aparece nas rondas noturnas do conde, mas também no consentimento
de suas vítimas. Uma das leis que regem o mundo dos vampiros é que estes só
podem entrar numa casa se alguém os chama a seu interior, o que explica a frase
com que o conde recebe Jonathan Harker no começo do romance, à porta do
castelo: “Entre livremente”. É como dizer, entre
porque assim o deseja. É Jonathan Harker quem deseja beijar os lábios roxos
da vampira, e serão, mais tarde, Lucy e Mina, a prometida de Jonathan, as que
chamam o conde para oferecer-se a ele. As cenas dessa entrega são de uma
intensidade sexual que ainda hoje, quando a sexualidade deixou de ser um tabu,
nos fazem estremecer, e não é difícil imaginar o que supostamente a leitura de
passagens como estas significou em seu tempo.
Drácula, o romance de Bram Stoker nos ensina que não somos donos
de nossos desejos, por isso nos perturbam. Não é certo que nosso corpo nos
pertença, sempre pertença a outro: a aquele ou aquela que o faz despertar. Mina
e Lucy rechaçam tudo o que o conde representa – a obscuridade, o dano, o domínio
–, e sem receio uma e outra vez o chamam para o seu lado porque inconscientemente
anseiam esse sêmen que se perde nas noites, que não chega até matriz da esposa, e
que representa a sexualidade livre que não deixam de desejar. Mas ao mesmo
tempo em que Lucy termina devorada por essa sexualidade e por transformar-se
ela própria numa vampira, Mina alcança fugir a seu influxo graças à força do
amor. A história dessas mulheres é, sem dúvidas, o coração deste livro
extraordinário.
Mas Drácula é também, entre
muitas outras coisas, um romance sobre a escrita de um livro. Um livro que o
leitor vê crescer ante seus olhos, como essa obra que separa razão da loucura,
o mundo dos homens do mundo da animalidade e do mal. Todos os que se aproximam
de Drácula partilham misteriosamente dessa necessidade de escrever, de contar o
que lhes sucede quando se aproximam dele, e assim, depois do diário de Jonathan
Harker de visita ao castelo do conde, encontraremos o diário de Mina e as
cartas que ela troca com sua amiga Lucy. A estes documentos não tardam em
somar-se às notas dos doutores Seward e Van Helsing. Todos eles padecem, como
Hamlet, da mesma compulsão de anotar o que veem, sem perder um só momento como
se soubessem que o que está em perigo não é apenas suas próprias vidas mas a
possibilidade mesma do humano.
Drácula representa o que Nietzsche chamou a “grande razão do corpo”,
que é justamente o que negam os sensatos diários que lemos, como se esse tão
humano sobre o qual não desejam falar com consentimento a todos os
convencionalismos da época, terminará por resultar em algo insignificante. Só o
conde Drácula fala do que somos, só nele se esconde nossa verdade.
As vitórias de Drácula, como as
do demônio cristão, procedem de uma compreensão profunda da natureza de suas
vítimas. O fato de que Lucy se transforme em vampira, e que a mesma Mina esteja
em ponto de assim ser também, significa que essas damas desejosas de sangue tanto temem viver presas em seu interior. Drácula não faz senão libertá-las,
pois nada pode transformar-se em algo que não é. A ameaça do vampiro está
inscrita na mesma natureza de suas vítimas. Fala em suma de tudo o que estas são
e se negam reconhecer.
Tudo isso aparece expressado com perturbadora e bela crueldade na cena
de vampirização de Mina. Drácula se aproxima da jovem e, tomando-a em seus
braços, lhe diz que a partir de agora será de sua raça, será carne de sua
carne, sangue de seu sangue, sua companheira e ajudante. Então pousa uma mão
sobre seu ombro para sujeitá-la e, depois de desnudar seu colo com a outra, se
inclina sobre ela para beber seu sangue. E, no dia seguinte, Mina anota em seu
diário, recordando a cena: “Eu estava desconcertada e, por estranho que pareça,
não desejava impedi-lo”. Apesar de
todo o horror que produz o conde, o que Mina nos diz é que desejava entregar-se
a ele.
Mas não é apenas Mina que cai sob a influência de Drácula, este também
se sente perturbado, ao menos alguns instantes, pela irrupção de um sentimento
novo, incompatível com sua natureza demoníaca: a intuição do amor humano. Assim
é, de fato, como o doutor Seward descreve o comportamento de Drácula na mesma
cena: “Apesar das circunstâncias, fiquei curioso observar que, tanto o rosto
(do conde), branco de cor, se agitava convulso sobre a cabeça inclinada da
mulher, as mãos acariciavam terna e amorosamente seu cabelo solto”.
Drácula representa o mundo do desejo sem limites, sem moral, sem possibilidade de adiamento ou renúncia; Mina, é o mundo paciente e inquieto do amor humano, tão perto a essa escritura que trata de libertar-se da tirania das convenções sociais e atender às razoes do corpo. E o perturbador desse romance é que nos diz que esses mundos não podem deixar de estar juntos. O desejo pede ao amor que prolongue seus tentáculos, e o amor pede ao desejo que não o deixe sem loucura. Ambos buscam o que não pode ser: as núpcias entre a vida e a morte.
Drácula representa o mundo do desejo sem limites, sem moral, sem possibilidade de adiamento ou renúncia; Mina, é o mundo paciente e inquieto do amor humano, tão perto a essa escritura que trata de libertar-se da tirania das convenções sociais e atender às razoes do corpo. E o perturbador desse romance é que nos diz que esses mundos não podem deixar de estar juntos. O desejo pede ao amor que prolongue seus tentáculos, e o amor pede ao desejo que não o deixe sem loucura. Ambos buscam o que não pode ser: as núpcias entre a vida e a morte.
*texto publicado no jornal El País com o título "El príncipe de las tinieblas".
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