A poesia de Yahya Hassan

Por Rut de las Heras Bretín



Yahya Hassan começou a escrever poesia pouco depois de começar a fumar, aos 12 anos. “Está ligado. Não posso escrever sem um cigarro”, diz enquanto se agarra a seu pacote de fumo rapé. Hassan é um jovem poeta filho de pais palestinos; tem 19 anos. Nasceu em Aarhus, na Dinamarca. Isso marcou sua vida e, logo, sua obra. Ainda não dispõe de nenhum livro publicado no Brasil, mas, talvez sua obra não tarde chegar por aqui. Yahya Hassan, um de seus títulos (aliás, o único até agora) que leva o próprio nome do poeta, é um retrato do que foi sua infância e adolescência. Por isso o nome do poeta funde-se ao da obra e vice-versa.

NÓS NÃO TÍNHAMOS CANAIS DINAMARQUESES
TÍNHAMOS AL JAZEERA
...
NÃO TÍNHAMOS PLANOS
PORQUE ALÁ TINHA PLANOS PARA NÓS

...
CADA NOITE DEPOIS DA CENA REZÁVAMOS
REZÁVAMOS ATÉ QUE AS PERNAS NÃO NOS SUSTENTASSEM

Um conjunto de 150 poemas escritos em letra maiúscula e sem sinais de pontuação por um simples motivo: “As minúsculas têm uma aparência boba, visualmente não gosto”. Qualquer outra explicação não é mais que “interpretação, interpretação, interpretação”, murmura chateado de explicar tantas vezes a mesma coisa. Mas, não está disposto a “colocar uma nota de rodapé sobre cada verso, eles se explicam por si próprios, e se não é assim, é que são ruins”, afirma.

Tão estreitamente relacionado fumar com escrever é a declamação com seus poemas, mas agora diz que já perdeu seu valor. Está “pelo pescoço”; chega a ter leituras quase 15 vezes num mês. A obra também tem alcançado uma marca significativa para um gênero que dizem vender muito pouco. E não tem feito muito para isso se não escrever. Em um dia comum em Copenhague, a cidade onde vive, vai a bares, bebe cerveja, faz aulas num curso de escrita criativa, fuma cigarros de papel, escuta o Corão – é ateu, mas gosta da musicalidade – e pinta, principalmente telas abstratas de grande formato que nunca ninguém viu e que nem sabe se alguma vez deverá mostrar, “não as faço para isso”.

Também nesses dias normais toma notas constantemente; é sua maneira de escrever. Julga-se incapaz de sentar-se durante várias horas seguidas para isso. Define-se como muito observador. “Deixo que a vida me inspire, escuto o rádio, me fixo em conversas alheias, nas palavras que a gente utiliza, reflito sobre elas e as uso”. Faz isso desde criança: “Antes anotava tudo num pedaço papel, agora no iphone, o meio é irrelevante, o importante é anotar ideias, pensamentos, palavras, se não se faz isso não entra no processo poético”.

FECHARAM A PORTA DO QUARTO DE DORMIR
RUÍDO DETRÁS DA PORTA E UM OLHAR PELO OLHO DA FECHADURA
MÃE COM UMA CORDA AO REDOR DO PESCOÇO
...

A poesia e a palavra resgataram Hassan do ambiente da marginalidade onde vivia, com um pai malvado e uma mãe submissa. Converteu-se num adolescente delinquente que abandonou os estudos. Vagou por diversos internatos e centros para recuperação de menores. Um dos professores que o assistia junto a outros jovens na sua situação concentrou-se nele durante as aulas de leitura de textos. Sem lhe consultar apresentou, mais tarde, seus escritos a editora Gyldendal.

Daí a pouco, Hassan recebeu uma ligação para uma reunião. “Fui acima da minha naquele momento. Estava entrando em contato comigo a editora mais importante da Dinamarca”.

O jovem poeta escrevia motivado pela dor, o medo, a ira, não fazia para sair do gueto muçulmano que era seu bairro, não foi planejado, mas levou  a isso. “Desde a publicação do livro tudo mudou”, diz referindo-se a relação com sua família, embora a realidade é que não sabe a opinião de seu pai em relação a seus versos.

Mas, as reações têm sido distintas. Se tem vendido um sem-limite de livros; até agora – anotem – mais de 100 mil exemplares, também tem recebido críticas e méritos. “Os meios de comunicação criam expectativas sobre meu futuro que nem sequer sei se vá se realizar”, comenta reiterando que colhe anotações a todo instante mas que não tem planos de que, nem quando escreverá outra obra.

A extrema direita dinamarquesa também tem interesse pelos versos de Hassan. “Têm pretensão de usá-los contra o Islã”, mas explica que não está contra a religião de seus pais. “Sou palestino [carrega um boton com a bandeira na gola de seu blazer]. É minha história, minha cultura. Nasci na Dinamarca, tenho nacionalidade dinamarquesa, mas não posso me converter a um dinamarquês”, diz. “Não tenho nenhuma rejeição a Dinamarca. Identifico-me com o idioma. Me expresso em dinamarquês! [também o faz em árabe], mas minha história não é a europeia.”

Ainda assim, quer deixar claro que aprova e gosta de muitas das condutas ocidentais ao mesmo tempo em que rechaça outras árabes; deixa-lhe mal humorado que se generalize uma péssima imagem do mundo islâmico. Do mesmo modo lhe irrita a hipocrisia do Ocidente ante os conflitos no Oriente Médio.

Traz consigo uma pequena tatuagem na mão direita próximo do dedo mindinho; são três letras: ORD. Em dinamarquês quer dizer palavra. Prefere tratar de temas da escrita e reconhecer certa incapacidade de dar tratamento poético a opiniões políticas. Talvez, mais adiante, encontre.

INFÂNCIA

CINCO FILHOS EM FILA E UM PAI COM UM PAU
MÚLTIPLOS CHOROS E UMA POÇA DE URINA
ESTENDEM SEMPRE A MÃO
POR ISSO A PREVISIBILIDADE
ESSE SOM QUANDO LHE ALCANÇAM OS GOLPES
A IRMÃ QUE PULA RÁPIDA
DE UM PÉ A OUTRO
A URINA É UMA CATARATA QUE LHE DESCE PELAS PERNAS
PRIMEIRO UMA MÃO ESTENDIDA LOGO A OUTRA
PASSA-SE LONGO TEMPO OS GOLPES CAEM ALEATORIAMENTE
UM GOLPE UM GRITO UM NÚMERO 30 OU 40 ÀS VEZES ATÉ 50
E UM ÚLTIMO PAU NO CU AO SAIR PELA PORTA
ELE PEGA MEU IRMÃO PELOS OMBROS O ENDIREITA
CONTINUA PEGANDO E CONTANDO
E OLHO PARA O CHÃO ESPERANDO MINHA VEZ
MÃE QUEBRA PRATOS NA ESCADA
AO MESMO TEMPO EM QUE A TV AL JAZEERA TRANSMITE
HIPERATIVAS ESCAVADEIRAS E COLÉRICAS PARTES DO CORPO
A FAIXA DE GAZA AO SOL
QUEIMAM-SE BANDEIRAS
SE UM SIONISTA NÃO RECONHECE NOSSA EXISTÊNCIA
SE É QUE EXISTIMOS
QUANDO OFEGAMOS ANGÚSTIA E DOR
QUANDO ESTAMOS BOQUIABERTOS BUSCANDO AR OU SENTIDO
NA ESCOLA NÃO NOS DEIXAM FALAR ÁRABE
EM CASA NÃO NOS DEIXAM FALAR DINAMARQUÊS

UM GOLPE UM GRITO UM NÚMERO


* texto com tradução livre a partir de "Yahya Hassan: 'El dolor es una fuerza motriz'". A versão do poema seguiu a tradução espanhola. 


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