A pintura de Lena em diálogo com o feminino na literatura de José Saramago
Uma rápida visita ao currículo de Lena Gal nos colocará diante de
algumas exposições cuja matéria está pautada no feminino e suas representações,
tais como Mulheres, terra-mãe e O feminino insular. É do catálogo que
compõe a primeira exposição que li a tela “As xamãs” num diálogo tão próximo e
tão forte com uma cena de Memorial do
convento, de José Saramago. Foi esse contato que me pôs em contato com sua arte; Lena sempre muito solícita não
hesitou, na ocasião, em ceder esse trabalho para compor a capa de Retratos para a construção do feminino na prosa de José Saramago,
um extenso ensaio publicado em 2012 cujo interesse é de lançar alguma luz, por
parca que seja, sobre o tema da representação do feminino na obra saramaguiana.
O contato com o ensaio e, logo depois com a literatura do Prêmio Nobel
produziu na artista o desejo de estreitar esse diálogo a princípio individual
de alguns temas de sua pintura. Esses dois encontros fez nascer na artista a
necessidade de ir ao que ela chama de essência
da representação a título de enformar e avivar o traço entre as representações
produzidas pela literatura e as lidas pelo ensaio. Nessa zona de interstícios, a linguagem plástica ainda se alimenta do próprio movimento subjetivo da artista e se confunde com sua história da arte e a vida. Lena Gal, como tenho
designado, tentou debruçar-se no interstício a fim de produzir o que ela
própria designou pelo título de O
feminino na escrita de José Saramago.
© Lena Gal. Mulheres Marias. 116x89
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Há no título desse conjunto de pinturas ao menos duas questões que
quero apresentá-las nestas notas: uma delas diz respeito a humildade da própria
artista em designar seu exercício imagético e imaginativo como representação da
escrita. De certa maneira, a pintura e a literatura são duas formas bastante
aproximadas de representação; apenas que uma pinta com palavras o que a outra
pinta com tintas. Essa é uma observação viva na própria literatura de José
Saramago, mais especificamente, nas reflexões costuradas pelo pintor de
retratos H. em Manual de pintura e
caligrafia. Tomado pela repetição da técnica da arte de eternizar rostos,
H. tentará se desvencilhar da mesmice, ensaiando-se através da escrita. O
exercício de Lena Gal, embora não seja ela uma pintora de retratos, é o
contrário. Sair do emaranhado de palavras para dizê-las com tinta e pincel.
Outra é não deixar-se ficar acima da representação maior que lhe move à
pintura: a obra de José Saramago. Tenta com o escritor, numa tomada de posição
que não é nem de esconder-se à sua sombra nem a de elevá-lo a um pedestal de
glória que, creio, ele próprio não gostaria porque sempre me pareceu alguém
dado à simplicidade e não chegado à vaidade que corrói muita das existências de
alguns grandes nomes, vai tentar dar luz a esse inventário de outras formas de
ser mulher. É quando vem em boa hora, uma frase do próprio Saramago recolhida
em As palavras de Saramago por
Fernando Gómez Aguilera – “Estou inventando mulheres, ou talvez,
outra forma de ser mulher”.
Para Lena Gal, este trabalho é exercício de inspiração. E é exercício de outra forma de ser mulher. Os silêncios,
os sentidos do olhar, o amor, a intuição, a sensualidade, a violência sobre o
corpo da mulher, o assédio sexual, a cumplicidade feminina, o despertar para a
consciência do ser-mulher são tornadas tonalidades para as formas extraídas do
negro das palavras para o colorido das telas. O feminino na escrita de José Saramago é um caudal de sensações. A
artista plástica busca pelo seu interior trazer à superfície emoções, alegrias,
tristezas, materializando-se em texturas e cores diversas os sentimentos ora nascidos em ora provocados por
personagens como Blimunda, de Memorial do
convento ou a mulher do médico, de Ensaio
sobre a cegueira – dois dos romances mais significativos da bibliografia
saramaguiana e pontos centrais na leitura proposta em Retratos.
© Lena Gal. Blimunda Blimunda minha filha. 116x89
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Como exercício de recriação artística, coloca na mesma cena personagens
que, no plano dos romances nunca tiveram a oportunidade de se conhecer, mas
permanecem irmanadas no sentimento sobre o mundo; penso para o caso em telas em
que se apresentam Blimunda, a mãe e a rainha D. Maria Ana Josefa. Ou se
aproxima de cenas há muito já representadas por outros artistas e introduz
nelas novas forças de sentido: é assim com a cena da crucificação de Jesus
Cristo inspirada d’O evangelho segundo
Jesus Cristo ou com outra figura para Lilith. Ou reconstrói personas e cenas da narrativa
saramaguiana. Além de cenas d’O evangelho,
ficamos diante de cenas de Memorial do
convento como a incansável busca da mãe de Blimunda pela filha e o diálogo
costurado pelas formas do olhar; o encontro de Blimunda com Baltazar sendo
queimado num auto-de-fé e a recuperação de sua vontade. Ou de Ensaio sobre a cegueira: a cena de assassinato do cego mal da
camarata; do cão que lambe as lágrimas da mulher do médico; o estupro de uma
das mulheres na camarata dos cegos maus; o banho das mulheres.
O feminino na escrita de José Saramago, portanto, refaz por outra via que não a da palavra, as imagens sobre o feminino sugeridas pela escrita do romancista, escrita que, para além do Manual de pintura e caligrafia conversou igualmente com as artes plásticas – penso na abertura d’O evangelho segundo Jesus Cristo, por exemplo, quando o narrador reconstrói a cena pintada por Albrecht Dürer ou mesmo a plasticidade oferecida pela própria narrativa. À sua maneira, a obra se reinventa, vai logrando outras possibilidades de ser vista e de ser lida.
Como redigi para o catálogo que acompanha a exposição e para outro texto a ser publicado em breve também acompanhado por telas da artista plástica, Lena desvela um
duplo manto de sentidos. Não é apenas sobre o meu discurso produzido pela
leitura da obra saramaguiana; é a aproximação simultânea de três formas de
interpretação, a dela própria, a do escritor e a do ensaísta. Cada tela
desnuda num inventário muito próprio das imagens, um imaginário que se inscreve
numa zona brumosa não captável pelo verniz da palavra; isso num mesmo instante em
que se alimenta dessa seiva que contorna os sentidos e é matéria nutritiva
para as imagens desenhadas pelo escritor português capaz de produzir retratos
únicos para a mulher. Um apelo, portanto, aos sentidos da visão, esta que tanto foi exercitada pelo próprio Saramago para rever o que nos cerca.
Ligações a esta post:
>>> Em junho de 2012,quando da abertura da Casa Lena Gal, algumas notas sobre a pintura da artista plástica e outras telas.
Comentários
Esta exposição, actualmente, nos Açores, merecia um lugar, como a Fundação José Saramago, onde pudesse ser observada, relacionada e apreciada no Continente. Merecia que se fizesse um contacto com Pilar del Rio e seus colaboradores para que não passasse despercebido este valor na cultura portuguesa. Lena Gal merece-o e a sua relação com a Escrita, nomeadamente a Poesia, tem sido objecto do nosso interesse. Partilharei este artigo em 'Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen' e em 'Poesia com Artes'. Parabéns!
Lília Tavares