A duração do deserto, de Nina Rizzi
Por Pedro
Fernandes
Sinto, e ao
nomear as coisas, traio-as como Araetê
às veredas. O
outro, ao nomear o outro, ter-me-ia
à luz? Repito
esse outro que também sou eu
Depois de tambores pra n’zinga Nina Rizzi volta a
cena da poesia, entre o trabalho como tradutora, editora e outra leva de ações
condicionadas pela letra. A duração do
deserto tem nome de obra que levou largo tempo para composição,
compreendendo pela associação dos termos duração-deserto, como instantes de
travessia árdua e complexa. Se olharmos o tempo comum do calendário, notaremos
que essa constatação é vã: o livro sai apenas dois anos de tambores. Para poetas que maturam durante décadas uma mesma obra,
dois anos são dois dias. Mas, se deixarmos o calendário comum para pensar
noutro tempo, alcançaremos o limite de compreensão que aqui proponho já na
leitura do título. A duração do deserto.
Basta o
contato com a variedade poética expressa nesse livro – poemas em profundo
diálogo com outros produtos textuais marcados já no título (“cantilena”, “solo
para rabeca e trompete”, “cantata pra deleuze e berkeley”, “E-mail para Fabiano
Calixto”, “canção às proletárias de guerra”, “ensaio para atração do medo”;
basta o contato com a variedade de nomes certamente de pares poéticos – Sophia
de Mello Breyner Andresen, Lambert Sclechter, Jorge Luis Borges, Baudelaire,
Luis Filipe Castro Mendes, Hilda Hilst; basta ainda a reiteração de algumas
vozes temáticas exercitadas por Nina Rizzi em tambores pra n’zinga e poemas esparsos, tal como a forte inserção
do corpo, os impulsos e os fluxos da carne fêmea
marcando a pulsação do poema com um vigor deslumbrante. E todos esses contatos
só vêm dizer uma coisa. Que do ponto de vista da inventividade poética, seja
quanto a forma, seja quanto ao tema, Nina Rizzi tem se tornado uma das vozes
mais significativas da atual poesia brasileira contemporânea.
Dividido em
três partes – “alvorada”, “sol a pino”, “ocaso” – que podem ser lidos como três
livros independentes, a poeta rompe com a ideia de unidade do texto poético.
Talvez seja isso um retorno ao lugar anterior da ideia de fabricação do poema.
O poeta é um ente que, vagueia pelo mundo e cata vozes para si. Se o exercício
de construção permite-lhe a construção de uma moradia completa, ele assim
procede e amalgama essas vozes com sua saliva. Se não, fica-lhe o amontoado de
materiais. E nisso parece dizer, por debaixo de seu trabalho de captura e
segmentação das vozes, que essa tarefa cabe mais ao leitor. Ou seja, se diante
do poema o leitor já traga longas horas ou dias para conseguir encontrar uma
possível resposta para sua saída, em casos como esse – e logo A duração do deserto está nesse último
quadrante –a tarefa do leitor é dupla. Não é suficiente apenas a leitura, mas
buscar tatear uma ordem.
Não poucas
vezes tenho concordado que aquela forma de unidade para um livro de poesia é
coisa que vejo com bons olhos. Permita o leitor, então, apenas um adendo a título
de que eu não me contradiga tanto sobre minha posição, tomando partido favorável
ao trabalho diferente de Nina Rizzi. Expor-se pela diversidade é, primeiro, um gesto
dado apenas aos que têm já um manejo astuto com a palavra e criação poética. E
isso, pelo levantamento breve que essas notas expõe, já está demonstrado no
trabalho da poeta.
Veja como
exemplo, “contrapoema ao homem do meu tempo”, uma poema-resposta ao famoso
poema de Hilda Hilst, “Poemas aos homens de nosso tempo”. Recordo esse poema
justamente por se alimentar de um poema já inserido no rol da tradição poética
nacional.
o homem do
meu tempo me maltrata
sei que não
sei dar carinho a quem arqueja e freme
há nodoas
entre meus dedos, ora caio às fórmulas
como seu
soubesse o que devia dizer e foi maldito.
o homem do
meu tempo agoniza
e não lhe
adianta minha barroca catedral
se lhe tenho
de fazer repetir o pater nostrum,
assim, em latim.
talvez do
vinho chileno, apareceram varizes em meus joelhos
cobertas por
ásperas elevações, como brotoejas brancas,
sem dor ou
comichão
talvez ainda
das culpas que não carrego, a moral que renego.
Parece mesmo
que o eu-lírico engendrado por Nina Rizzi empresta é a voz que faltou a Hilda
Hilst; se nela se constrói uma voz política de cobrança sobre o que representam
para mundo, ou mesmo se ergue certo tom de denuncismo pelo que mundo tem se
tornado, uma vez ter sido sempre conduzido pelas rédeas do macho, em Nina
Rizzi, talvez respeitando o que o próprio título sugere, o que se lê não está
preso a nenhum tom de coletividade, mas a voz individualizada e discrepante
entre os sexos. O tom de denúncia reaviva-se (“o homem do meu tempo me
maltrata”), mas a questão tomou outra dimensão. Partiu da cobrança pela
responsabilidade vendida para a simples constatação do descrédito das relações.
o homem do
meu tempo chantageia e sofre:
– minha mãe
só me dava carinho em convalescência.
eu posso
ficar nua e lhe mostrar cada uma das marcas
de minhas
surras
e se não as
guarda meu corpo, carrego na memória.
eu não sou
boa, amo o túlio canalha de hilda hilst como se fosse redenção.
o homem do
meu tempo em se punir, manso, me estrangula e ri:
– tem medo
de mim.
quisera uma
vez mais ser mulher, sagrada prostituta,
quisera
e eu não,
nada.
o homem do
meu tempo saca o rivotril
me mete
pânico e encharca meu corpo cansado, as mãos de perdidas digitais
as tais
marcas de sensibilidade que me são mais
pura ternura.
foi-se
embora o machão, ele é a colombiana que chora por gozar
sofre de
ansiedade antecipatória o homem que lhe abandona.
não, ele não
teve um ataque, um treco, enfarto
o homem do
meu tempo se matou quanto descobriu a vida.
O novo tempo
a que pertence a poeta, apesar de não ser a poema um texto expressamente
datado, reforça até, uma posição seguida pela mão contrária daquilo que cantou Hilda
Hilst. É “contrapoema”, mas poderia ser uma resposta; é “contrapoema” talvez
pela forma, assim tão narrativa, tão distante daquele verso semimedido de Hilda
Hilst. O homem construído pela voz poética de Nina Rizzi não se mostra pelo
nome próprio – “túlio”; mesmo a poeta está colocada no mesmo nível das outras
palavras – “hilda hilst”. Parece que não há qualquer louvor. Note a recorrente presença do corpo, legado
hilstiano. Ou seja, não há louvores aos personagens e nem a poeta, mas o
trabalho não coisa que se descarte. É alimento vivo para o poema. Sim, há algo
mais contemporâneo para a poesia que se alimentar da própria pele ou do sobejo
farto que a tradição nos reserva?
Também em
Nina Rizzi, o corpo é um artificio simbólico para retrabalho com a memória,
outro artifício que, desde sempre e mais ainda na poética contemporânea, tem
servido de estrume fértil para o nascer da poesia. A memória tem uma relevância
indiscutível na poesia de A duração do deserto
– venha ela como sargaço do mar interior, venha ela como cartucho da história,
venha ela ainda como migalha da poesia anterior a poeta.
O corpo,
assinalado desde a silhueta vaga da capa do livro, pousado nesse poema
ilustrativo dessas notas e arquivado noutros versos – “tenho o útero partido /
metade polvo, agarro as presas, desejo” (“I take care, I fit, come to me, come
ye, jot”); “eu gostava de me perder e lambuzar / no acidente entre suas pernas,
adorava” (“pastoral de yansã e a mulher que não se sabe”); “lançar meu corpo ao
cimo” (“poema impossível, dionises variegada”); etc. – preenche uma diversa
força simbólica na poesia de Nina Rizzi; em A
duração do deserto renovada.
Todo esse
movimento, uma vez aqui chegado, terá cumprido para esclarecer aquele ponto que
deixei suspenso, sobre a grandiosidade da não unidade. Não é apenas uma questão
de reacender o papel do leitor diante do texto poético, mas é sobretudo, assinalar
sua diversidade. A unidade estará resistente na fronteira temática ou simbólica
com que o poeta traceja seus desenhos: foi esse o interesse de precisar a
constante do elemento corpo nessa
obra.
Sobre o trabalho de feitura do poema, tem o leitor aí, por esse único poema superficialmente lido, a prova definitiva de que A duração do deserto é um livro necessário. Nele se configuram alguns dos demônios que rondam nosso tempo, mas quer antes de aprisioná-los tê-los como elementos essenciais para suster a dificuldade de existir, ou de atravessar desertos. Não há, pois, contradição, em acreditar na variedade da unidade. Basta apenas que o poeta comprove sua trajetória nessa selva de signos sobre o branco do papel. Se em tambores pra n’zinga Nina apostou na unidade da obra, nesse ela deu outro salto: o de quem já tem algum pulso demonstrado que consegue engendrar criações.
Sobre o trabalho de feitura do poema, tem o leitor aí, por esse único poema superficialmente lido, a prova definitiva de que A duração do deserto é um livro necessário. Nele se configuram alguns dos demônios que rondam nosso tempo, mas quer antes de aprisioná-los tê-los como elementos essenciais para suster a dificuldade de existir, ou de atravessar desertos. Não há, pois, contradição, em acreditar na variedade da unidade. Basta apenas que o poeta comprove sua trajetória nessa selva de signos sobre o branco do papel. Se em tambores pra n’zinga Nina apostou na unidade da obra, nesse ela deu outro salto: o de quem já tem algum pulso demonstrado que consegue engendrar criações.
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