Política, suas complicações e a leitura
Por Rafael Kafka
Em 2014, eu
percebi uma coisa bem interessante (e óbvia até): política é uma coisa muito
complicada e complexa. Se fosse preciso me descrever perfeitamente agora por
meio de uma metáfora literária, eu faria uma comparação entre mim e Henri
Perron, jornalista e escritor protagonista do romance Os Mandarins de Simone de
Beauvoir. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Perron pensa que finalmente
poderá andar livremente por um mundo em paz e aproveitar ao máximo todas as
possibilidades que se lhe mostrariam. Todavia, o convívio com outros
intelectuais mostra a ele que na verdade a guerra ainda persistia na França e
em todo mundo e aquela ideia de liberdade lírica por ele tinha de dar lugar a
uma nova postura de existência baseada em tomar partido sem medo de estar
errado. Perron começa então a questionar-se de aonde sua vida irá parar: terá
ele tempo de ler e escrever por prazer ou se verá imerso em atividades
políticas enfadonhas? A sua vida seguirá sendo sua ou deixará de ser para se
tornar uma coisa pública em prol da coletividade? Terá ele tempo de estudar
tudo o que precisa para definir seu ponto de vista como sendo seu e não apenas
reificação dos pontos de vista de seu amigo e mentor Robert Dubreuilh?
Pois bem,
são certos questionamentos como esses que têm tomado conta de minha mente. De
uns dois anos para cá, meu processo de formação pessoal deu uma guinada
justamente para a direção dos textos teóricos e políticos. Durante o período de
meus 17 anos até meus 21, minhas leituras eram majoritariamente literárias. Lia
ainda um pouco de Filosofia, mas não suficiente para começar a tecer pontos de
vista sólidos. Quando me formei, percebi que minha leitura não me permitia
tecer pontos de vista concretos nem mesmo em um âmbito acadêmico. Tal fato,
fez-me sentir uma espécie de sentimento de culpa horrível e passei a me
condenar por ter “desperdiçado” muito tempo de minha vida na biblioteca pública
do CENTUR em Belém lendo quadrinhos e literatura. Pensei durante muito tempo que
deveria ter lido mais textos políticos ou críticos de minha área para saber
sobre o que eu estava a dizer. Com desespero, eu percebi-me um alienado.
De 2013
para cá, influenciado demais pelos aspectos filosóficos da obra de Simone,
comecei a ler textos mais pontuais ligados a questões como o feminismo, o
racismo e a luta pelo respeito LGBT. Tanto textos vindos de teóricos renomados
como textos pegos na web, escritos por anônimos como eu, fizeram-me entender o
mundo em que eu vivia e as questões sociais nele imbricadas por um outro
prisma. Antes, eu que ironizava as lutas de gays, mulheres e negros por
respeito (usando o velho discurso humanista burguês de que não devemos lutar
por esta ou aquela classe e sim por um todo social) agora entendia os motivos concretos
de tais movimentos e sua importância e tornei-me seu defensor.
O mais
curioso é que muito do que eu li nos textos teóricos, eu já lera em livros
literários. Todavia, a literatura com sua falta de obrigação de ensinar é muito
aberta e leitores ignorantes como eu poderiam não ser competentes o suficiente
para redimensionar um significado textual em um outro contexto que não era o de
produção daquela obra. Hoje, por exemplo, sou bem capaz de fazer ligações de
leitura básicas entre a questão judaica tal como é apontada por Sartre em seu
curto ensaio dedicado aos judeus às lutas promovidas pelas minorias socialmente
discriminadas e as mulheres que não aceitam o regime patriarcal de vida. Os
textos teóricos me permitiram reler mesmo sem os ler livros lidos anos antes
por mim e me fizeram perceber o quanto eu não entendera o que havia lido.
Por algum
tempo, achei-me ignorante. E critiquei, mais uma vez, o tempo “perdido” na
biblioteca do CENTUR lendo livros e quadrinhos pelo simples prazer de ler.
Foi-me preciso outro tempo considerável de muita convivência e conversa com
outras pessoas para entender o quanto aquele tempo de tardes lendo livros e
quadrinhos ao som de músicas de uma fonoteca pública ou da chuva tipicamente
belenense salvou de ter uma vida extremamente sectária.
*
Em 2007 eu
fazia cursinho no CEFET/Pa em seu campus da capital paraense. Era um projeto
chamado Vestibular Solidário que por questões políticas terminaria no fim
daquele ano. O seu foco eram as pessoas de baixa renda e eu para pegar uma vaga
tive de passar uma noite em frente ao campus com um amigo e uma amiga para
podermos nos inscrever. Havia uma primeira seleção baseada nos dados
socioeconômicos na qual eu e meus amigos não passamos. A segunda, para
complementar o número de vagas disponíveis, era uma prova dedicada aos
candidatos rejeitados na fase de escolha por critérios ligados à renda. Apenas
eu passei e meus amigos ficariam aquele ano sem fazer cursinho. (Ele passou em
Direito na UFPA, ela até hoje peregrina em busca de um lugar no curso
superior.)
O andamento
do ano letivo que foi de maio até dezembro daquele ano foi complexo. Os
problemas familiares com os quais sempre convivi pacatamente passaram a se
mostrar um grande estorvo. Em casa eu não conseguia estudar e um belo dia
decidi passar a frequentar a biblioteca do CENTUR. Todavia, lá eu ia para
emprestar livros que eu devorava em uma semana e ler os quadrinhos, em especial
os japoneses, e nada estudava... Culpado, eu dizia que focaria completamente
nas aulas e assim compensaria a minha incapacidade para estudar. Isso
funcionava com as matérias de ciências humanas e Filosofia, mas não com as
exatas. E o ano se aproximava do fim e eu me sentia péssimo por ver minha mãe
se esforçando em me dar o dinheiro do ônibus e um benfeitor meu pagar meu
almoço todo dia com a justificativa de me ajudar a estudar, quando na verdade
eu estava lendo romances e contos na biblioteca do CEFET, livros emprestados do
CENTUR.
Por
milagre, eu passei em Letras/Português pelo IFPA e conformado com a nova vida
de estudante de ensino superior, passei a frequentar a biblioteca com mais
afinco ainda. Enquanto isso, meus colegas de turma dedicavam-se à vida
acadêmica e hoje alguns deles estão profissional e academicamente bem melhores
do que eu. Por isso mesmo, após formado, comecei a me culpar por essas farras
literárias na biblioteca: eu achava que se tivesse seguido de forma mais
modelar o protocolo acadêmico, hoje estaria em um mestrado e bem empregado.
Contudo, ao me cobrar a leitura de textos teóricos ligados a minhas áreas de
interesse e após começar a ler artigos de opinião de pessoas que abordam temas
caros a mim, entendi que aquelas farras tinham sido importantes para despertar
minha sensibilidade e um saber latente que residia em mim.
Pelo começo
deste ano, ainda procurando me organizar (na verdade, até hoje procuro) para
ler textos e mais textos para ampliar minha visão crítica e política para fazer
análises literárias, lembrei de um ex-amigo mestre em Linguística pela UFPA
cujo diálogo todo girava ao redor de sua imensa capacidade acadêmica. O nosso
rompimento se deu por um motivo muito fútil que se restringia ao fato de eu o
ter questionado em relação a uma visão filosófica sua baseada puramente em
senso comum e por isso mesmo tacanha demais. Isso foi há três anos e seu
orgulho acadêmico jamais aceitaria o questionamento de um mero graduado em um
instituto federal com sua primeira turma de Letras. Ele foi o começo da
desconstrução para mim de que ninguém é o título que tem e de que o discurso capitalista
de produção em série hoje burocratiza tanto o conhecimento que um mestre e um
doutor está enredado em uma grande teia de mesmice discursiva e de práxis
dentro da universidade.
A academia
tem olhos pequenos demais para diversos fatos sociais e humanos. Ao ler os
beats, isso se evidenciou ainda mais para mim. E aquelas tardes “perdidas” em
uma biblioteca pública ao invés de estar a estudar para o vestibular ou o
mestrado me fizeram entender que a leitura me salvara de não enxergar o quão
complexo são os fatos ligados à existência humana. E me salvara por não me
permitir reificar e reproduzir com tanta facilidade discursos prontos e
servidos a minha boca por algum grande irmão qualquer.
*
Hoje eu
compreendo que nossas vidas são um processo de aprendizado constante e dividido
em etapas. Alguns obtêm um título mais rapidamente, mas isso pode ser uma
grande armadilha se levarmos em conta que o ser pode se ver enredado em uma
teia de conhecimentos fechada em si mesma. Outros demoram anos para se interessarem
pelo mundo acadêmico enquanto investem seu tempo em viver ao lado das massas
imersos em seus problemas. Não sei ao certo qual foi o meu processo, mas hoje
eu revejo as cenas do meu passado de tardes a ler romances, contos e poesias,
sem interesse em estudar o que eu “deveria” estudar e penso que naquele momento
eu rompia com uma hierarquia de saberes e discursos altamente excludente.
Já tive uma
verdadeira ojeriza pelo universo acadêmico e hoje digo que tal ojeriza se volta
à possibilidade de me ver fechado nesse universo. Meus dias atuais são cheios
de leitura crítica e política, mas também de literatura. Cada ida ao trabalho
ou cada hora livre é um tempo de ler linhas de autores que dizem suas verdades
de forma metafórica e poética. É o momento de minha vida em que meu cérebro
capta uma profundidade estética na realidade que o rodeia e se sente
rejubilado, como que livre de uma prisão ontológica fechada demais.
Ainda
assim, rejubilo-me em estudar os textos críticos de literatura. Autores como
Umberto Eco, Terry Eagleton e Lawrence Venuti despertaram em mim o olhar mais
acurado no tocante a como os fatos e conflitos sociais estão nas malhas do
discurso literário de forma tácita ou não. A leitura dos artigos de opinião e a
dos discursos defensores de uma visão de mundo mais humana, fazem-me perceber
claramente as ameaças dos imensos discursos de ódio existentes nas redes
sociais que mostram o recrudescer de uma visão conservadora que passa a ganhar
força na voz de indivíduos que não consegue, ou não querem, ver além dos
horizontes captados por seus olhos. Tais pessoas mostram em seus discursos
hermetizados e miméticos de uma grande mídia vendida o quanto é preciso
incentivar a leitura, em especial a literária, não para a defesa de um ou outro
partido: mas para dramatização desse imenso ser que é o ser humano e para que
aprendamos a ver o outro como outro, autônomo, e não um arremedo ou corruptela
daquilo que esperamos que ele seja.
As redes
sociais estão a mostrar como as pessoas se fecham em seus cotidianos e em seus
veículos de verdade e evitam questionar as fontes de onde vêm as informações. É
mais fácil crer no jornal que diz que o partido do candidato tal é corrupto do
que procurar a veracidade das informações ou mesmo saber se o candidato rival
fez coisas piores, tudo porque as grandes mídias nada veiculam acerca do segundo que eles pretendem vender como o nome a
ser honrado e protegido pelos amantes da pátria.
Não consigo
compreender isso se não dando como sendo analfabetismo funcional, a incapacidade
de se entender e questionar o que se leu, de se procurar o contexto em que tal
discurso foi produzido e como ele se relaciona com outros discursos e meios de
produção discursiva. Foucault nunca se mostrou tão atual ao se ler a frase dele
que diz ser o poder não apenas uma força coercitiva, mas também permissiva: o
poder gera subjetividade, formas de conhecer e a forma de conhecer de diversas
pessoas hoje no Brasil, e mesmo em meio letrados, é a de simplesmente usar
verdades ditas por outrem algures sem saber quem é esse outrem onde é esse
algures e se aquela verdade serve para descrever minha vida e suas
problemáticas.
Hoje eu
entendo uma frase de Magda Soares que batiza um artigo seu muito importante:
ler [é um] verbo intransitivo. Antes eu me questionava acerca do que a pessoa
está a ler, mas hoje eu entendo que os livros são uma grande teia viciante e
uma pessoa cujo hábito se inicia em Crepúsculo pode chegar a ler um Ulysses.
Basta que a ela seja dado o incentivo constante e que os livros não sejam um
bem distante de si. Se uma pessoa pode ir de livros em livros sem parar por
meio do incentivo à leitura e à troca de ideias sobre o que se leu, creio que o
mesmo movimento se dê na discussão política, seja ela no bar ou no laboratório
de pesquisa da universidade. A pessoa leitora, que não se limita a ler os
gêneros que interessam ao conforto de sua visão, é alguém que questiona as
fontes que lê com mais competência e pode ser alguém que simplesmente não
repita um discurso pronto e na bandeja de uma mídia vendida.
Talvez eu
seja um sonhador. Mas se isso funcionou para mim, filho de uma senhora a qual
não sabe ler e é vendedora de bombons até hoje, acredito na possibilidade de
ser possível para outros seres. Por esses dias, recebi uma homenagem por conta
do dia dos professores de uma ex aluna já citada por mim em um post de Janeiro
deste ano, Cássia. No grande texto, a jovem com todas as limitações da idade e
dos erros de ortografia tocou-me profundamente ao me agradecer por não
simplesmente dar aulas de Língua Portuguesa e sim por incentivá-la a gostar de
rock (que para ela assim como para mim representou uma abertura de visão de
mundo) e a ler, hábito o qual ela diz não ver mais fora de sua vida.
Penso que
Cássia represente essa chance de perder tempo com literatura para ir-se
descobrindo como a política do mundo é complexa e acima de nossos discursos
prontos. Penso também que ela representa a esperança de que para o mundo ser um
local um pouco melhor, basta que falemos de literatura a quem quer ler para ser
mais e ver mais desse imenso conjunto de fatos que a todo instante se mostra a
nós e que alguns tolos pensam saber como funciona em fórmulas fechadas e
defasadas pegas de empréstimo a algum veículo de fins obscuros.
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