Poesia, saudade da prosa, de Manuel António Pina (Parte II)
Por Pedro Belo Clara
Um
dos aspectos mais originais e extraordinários que no trabalho poético de Manuel
António Pina se poderá apreciar é a projecção do “eu”. Este “self”, digamos
assim, que se apresenta e de si mesmo se descola, é plasmado na realidade que o
envolve. Temos então o íntimo pessoal transposto no outro, sendo ele – o outro
– nada mais do que o íntimo que se transpôs.
Este exercício é deveras curioso,
logo pela diversidade de resultados que pode apresentar. Por exemplo: o “eu”,
ao plasmar-se no outro que vê, perde a noção de individualidade e se acha como
parte de algo ainda incógnito. Ao fazê-lo e senti-lo, contudo, deixa de ser
aquilo que julgava ser. Será ele, agora, o outro? Sendo o outro, como pôde ser
ele? E como pode ser outro se sempre foi ele? As fronteiras são ténues... Além
desta nebulosa troca de identidades, pode surgir a revelação: ele e o outro, se
apresentam tão esbatidos contornos, não poderão ser uma coisa só? A ideia de um
certo “todo” forma-se em antecâmara. Mas antes que se assuma o “eu” como parte
de um “todo” (algo que, aliás, parece nunca conseguir concretizar) o que será,
então? Em D'après D. Francisco de Quevedo, com alusões à última ceia de Cristo,
essa inquietação, fermentada pelo súbito temor que advém da perda da
personalidade, é-nos relatada:
Também eu ceei com os doze naquela ceia
em que eles comeram e beberam o décimo-terceiro.
A ceia fui eu, e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu peito.
(…)
Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.
Em
As vozes, e de modo mais simples e directo, embora de igual modo eficaz quanto
à transmissão do pretendido, a mesmíssima questão se coloca, o mesmíssimo
desassossego é exposto:
Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?
Embora em certos momentos esta característica
temática possa assumir os contornos de uma declarada aporia (ou “complexidade
lógica”, se o leitor preferir), é muito provavelmente um dos assuntos mais
interessantes e ao mesmo tempo desconcertantes (e intrincados, sob o ponto de
vista da substância) que Manuel António Pina expôs em seus trabalhos. Tanto que
a mesma serve de base a uma outra: o confronto entre o sonho e a realidade. De
facto, não será motivo de admiração a forma como ambos se diluem e confundem,
mais ainda aos olhos de um “eu” ausente de personalidade:
Sob este rio real
o rio que me arrasta, de palavras,
corre dentro de mim ou fora de mim?
(…)
É duro sonhar e ser o sonho,
falar e ser as palavras.
(Tudo à minha volta).
Mas
não nos equivoquemos: entre os dois, é o sonho que surge como lar, como conforto,
como resposta à mais sôfrega das questões. Se num momento se confundem, o real
logo se sobressai pela crueza que o assiste, pela dureza do seu espectro, pela
claridade que alberga e que gradualmente cega. Disse-o Pina em La fenêtre
eclairée:
A realidade é uma hipótese repugnante,
fora de mim, entrando por mim a dentro,
solidão errante
órfã de centro.
Que respostas vos darei,
coisas, se tudo é de mais,
se em vós procurei
o que em mim procurais?
Descortinamos
aqui um outro cariz digno de registo. Apesar da aparente tensão, Pina chama
frequentemente a si contrários que expõe em sadia coabitação, ou seja, sem que
um anule ou se submeta ao outro. Ambos são devidamente apresentados e
caracterizados, sem que daí advenham contendas ideológicas. Embora fina, a
linha com que poemas de tais características são tecidos é de sólida e segura
fibra.
Progredindo
e aprofundando a análise do sentido que de tudo parece emergir, chegaremos ao
tempo e ao lugar onde a questão derradeira se coloca: o que somos, afinal? que
sentido tem a existência? Interiores é um poema que abrange a panóplia de
conclusões que a respeito se poderão recolher:
Onde estamos agora que não nos vemos,
tu sentada diante da TV
e eu escrevendo isto, não sei o quê,
como outros dois que não nos conhecemos?
(…)
Talvez percorramos uma rota circular
através da curvatura do espaço e do tempo
onde haveremos de nos reencontrar;
será que então de alguma forma nos
reconheceremos?
No
seio de tanta questão a descrença instala-se e, nos embalos da dúvida, o
sentido da existência é posto em causa. O término de The house of life permite
transparecer essa nova certeza: «também tu estás, como ele, morto, / também tu
não fazes sentido». Talvez assim seja o derradeiro sentido: uma completa
ausência de sentido.
Urdida
a retórica de forma lenta e sustentada, sem jamais perder de vista o propósito
inicial, abre-se um espaço para desabafos sobre as dores da existência, com
vincada tendência para a inutilidade do mundo e da matéria e a insatisfação
emergente da constante indagação de tudo. Afinal, por esta etapa já
compreendemos que a poesia de Pina, além de meditativa, é amiúde interrogativa.
Talvez seja essa a sua veia mais filosófica que não cessa a expressa busca de
algo: o “eu” perdido? a razão da existência? o modo da vida acontecer? Há que
interpretar para desvendar o sentido. Do mesmo modo, paira uma aura mística que
tão frugalmente se anexa às palavras e cujos preceitos podem ser subentendidos.
A última quadra antes exposta, por exemplo, pode, aos olhos de alguns, referir
a possibilidade da reencarnação da alma em corpos distintos ao longo de um
ciclo de vivência, quem sabe se evolutivo. Mas não divaguemos. O sentido mais
lustroso será sempre aquele que, para cada um, maior sentido fará.
Ligações a esta post:
>>> Leia aqui a primeira parte deste texto de Pedro Belo Clara.
>>> Em junho de 2011 quando da recepção do Prêmio Camões para Manuel António Pina editamos um conjunto de notas sobre a vida e a obra do escritor português mais um catálogo com textos seus.
Comentários