Patrick Modiano
O francês Patrick Modiano é um dos mais influentes romancistas
europeus. Autor de obras, como designado por Ernesto Ayala, muito perfeitas
como Dora Bruder ou O café da juventude perdida*, Patrick recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em
2014. Seus grandes romances, que têm não só poucas páginas como também elevada
intensidade narrativa e intelectual, representa um relato único e corajoso dos
piores momentos da França no século XX: o regime neonazista de Vichy e a
ocupação do país pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
A Academia sueca argumentou que lhe concedeu o prêmio “pela arte da
memória como a qual ele tem evocado os destinos humanos mais difíceis de retratar e
revelado o mundo na Ocupação”. Muitos o tem acusado de escrever sempre o mesmo
livro, o que para estes é um defeito, mas para seus defensores é esta uma
qualidade.
Publicado no Brasil sobretudo pela Editora Rocco – Dora Bruder, Vila triste,
Meninos valentes, Ronda da noite, Do mais longe do esquecimento, Uma
rua de Roma – Modiano é tido como um escritor
humilde. Além da extensa obra já publicada na França pela tradicional
Gallimard, é o autor do roteiro do filme Lacombe
Lucien, escrito em 1974 em parceria com Louis Malle. Esta película foi um
de seus primeiros trabalhos de denúncia sobre algo que até então era tabu na
França: a participação daquele país na perseguição a judeus. Na ocasião o filme
casou uma profunda comoção no país e abriu uma ferida que Modiano nunca deu por
sarada em seus livros.
Pierre Blaisse em cena de Lacombe Lucien. |
Quando J. M. Le Clézio recebeu o Prêmio Nobel em 2008, muitos pensaram
que ele seria apenas o eterno candidato da literatura francesa a merecer o galardão, ainda que o escritor nunca tenha deixado de ganhar
outros importantes prêmios nesse período. A distância a receber o maior deles,
entretanto, dá-se pelo fato não comum de a Academia Sueca não repetir seguidas
vezes o prêmio à literatura de um mesmo idioma. Mas, uma obra construída entre
a lucidez e a brevidade, e um tanto popular no continente europeu, mais ainda,
interessada na intensidade dos dramas e dos conflitos do século XX, chamou a
atenção do prêmio.
Italiano por parte de pai (que era de origem judia) e belga por parte
de mãe, Patrick Modiano nasceu justo no fim da Segunda Guerra Mundial. Publicou
seu primeiro romance, O lugar da estrela
em 1968. A obra teve um reconhecimento da crítica quase imediato. E dez anos
depois, já o escritor recebia o Prêmio Goncourt, um dos mais badalados da cena literária. Para Ernesto Ayala, se tivesse
que eleger um só livro que resumisse o gênio do francês, elegeria Dora Bruder que o escritor
compôs a partir de um anúncio de jornal que dizia: “Procura-se uma jovem, Dora
Bruder, de 15 anos, 1,55m, rosto afilado, olhos castanhos claros, casaco sport cinza, pulôver lilás, saia e chapéu azul-marinho, sapatos sport marrom. Entre em contato com o
senhor e a senhora Bruder, avenida Ormano, 41, Paris.” Suas pesquisas, por que
não, o levaram à colaboração sobre a história de Auschwitz, o levaram ao interior sinistro da
Europa do século XX.
“Logo, com os anos, e como livro já publicado, chegou-me algo mais da
documentação sobre Dora. E me coloquei em questão se isso era merecedor de
fazer com que eu reescrevesse o romance ou não. Decidi que não. Não sou
historiador. Sou romancista. Não importa tanto o resultado da busca como a
busca em si. Assim, o romance ficou como está” – comentou Modiano mais tarde
depois de Dora Bruder já ter
alcançado o reconhecimento mundial.
Sobre sua obsessão por ambientar seus romances no bairro XVI de Paris, elegante e burguês, aparentemente desconhecido, dominado pela sombra da Torre Eiffel e
pelas sólidas mansões, diz o escritor não ter nada de especial – “Muitos o
consideram um típico bairro burguês. Mas não é assim de um todo. Tem uma parte
de bairro anônimo, banal, sem monumentos históricos, onde pode imaginar-se
coisas. Noutros bairros parisienses você se sente bloqueado pela história. Em
Trocadéro e seus arredores alguém pode observar as ruas e a gente que a habita
de uma maneira um pouco onírica”. Essa posição do escritor é corroborada por Manuel Peris: “A Paris de
Patrick Modiano é um território quase onírico com nome e localização reais.”
O
escritor compara seus romances com os quadros de René Magritte onde, ainda
que se destaque sua atmosfera irreal, os objetos estão desenhados de forma
muito nítida. Modiano tem dado atenção especial ao que chama de as zonas
neutras de Paris, bairros sem identidade precisa, “terras de ninguém, onde se
está a fronteira de tudo”.
A Paris de Patrick Modiano é um território difuso que se prolonga desde
a ocupação nazi, de onde parte sua obra, até os dias de hoje e o espaço urbano
apresenta-se perfeitamente definido para deixar constante a vaga melancolia
deixada pelo passar do tempo. Uma Paris que pode começar a percorrer a partir
do Arco do Triunfo e da Praça de l’Étoile, que dá nome à seu primeiro grande
romance. Aqui, estamos em junho de 1942, (Modiano tem certo apego às datas) quando um oficial alemão pergunta a um
jovem: “Onde se encontra a Praça de l’Étoile?” O jovem diz que no lado esquerdo
de seu peito. É um judeu como seu pai, Alberto Modiano, um personagem estranho
cuja busca o escritor consagrou boa parte de sua obra, como um cachorro que
necessita encontrar Um pedigree,
outro título de sua obra.
Alberto, mais conhecido como Aldo, sempre se dedicou aos negócios
escusos. Esteve metido com o mercado negro durante a ocupação nazista e teve
contatos com o grupo de colaboradores da Gestapo conhecido como parte da Rue
Lauriston, pequena artéria próxima a l’Étoile. No número 93 lemos numa placa:
“Em homenagem aos resistentes torturados nesta casa durante a ocupação
1940-1944 por franceses, agentes auxiliares da Gestapo do grupo chamado
Bonny-Lafont”. Paris está cheia de placas como essa, 962 placas, para ser mais
exato, comemorativas da Segunda Guerra Mundial, das quais cerca de 45% delas
fazem referência à Semana da Libertação. Aí talvez esteja um dos motivos para os locais e para as datas no interior da obra de Modiano; não há como esconder-se da história principalmente quando ela está impressa em cada esquina, mesmo que já possa ser trazida ao presente com a mesma força com que parece dizer o monumento.
Os velhos cafés parisienses também são espaços fundamentais na obra de
Modiano. Muitos, como El Condé do romance No
café da juventude perdida, já desapareceram. Outros, como Au Chien Qui
Fume, na esquina de Montparnasse e da Rue du Cherche-Midi, se mantém intactos.
Essa rua, uma das mais charmosas de Paris, termina na Rue du Vieux Colombier,
onde está o teatro do mesmo nome, hoje uma das sedes da Comedie Française e
onde chegou atuar a mãe de Modiano, uma atriz de pouco êxito. Nas imediações,
está a Place Saint Sulpice e o café Mairie, onde o seu amigo George Perec
escreveu uma de suas obras.
A obsessão pelo espaço está nos títulos de sua obra; até de seu último livro, Pour que tu ne perdes pas dans le quartier
(Para que não te perdas no bairro). Como todos os de sua obra, não chega a duzentas páginas. O próprio
Modiano explica o início que não pode ser o mais clássico de sua obra: “O romance
começa com o toque do telefone. O personagem principal, Jean Daragane, depois
de titubear, acaba por responder. Um desconhecido lhe diz que tem em seu poder
uma agenda telefônica que Daragane havia perdido. Mas algo lhe parece suspeito”. É assim que tudo inicia, como a recordação e os mistérios de uma vida que, de uma vez por outra, insiste em reaparecer. Trama que, o leitor
atento deverá ter percebido, muito se parece com o desenvolvimento das películas
do cinema francês, por em grande parte ser nascidas de pequenos acontecimentos do acaso.
Toda a obra de Modiano tem sido construída sob essa base, daquela mesma
maneira que quando se guiava estritamente por um período da história francesa e os espaços tratados em sua
narrativa têm sido, por assim dizer, os mesmos. Desde o primeiro livro, O lugar da estrela – uma referência à
praça parisiense e também à estrela amarela que os judeus foram obrigados a
carregar durante a Shoah – junto com A
ronda noturna – até Dora Bruder
ou Um pedigree, a Segunda Guerra
Mundial aparece no centro de toda sua obra. O grande romancista se volta uma e
outra vez para os dilemas morais, as renúncias, a brutalidade, a perseguição, a
traição, a miséria moral e física, mas também relata a busca do passado e a reconstrução
da memória como ocorre em Dora Bruder.
Patrick Modiano é o escritor do desamparo. Suas personagens buscam o
calor humano que o passado lhes negou, mas que a eles se agarram como erva daninha. Flores de ruina e Cachorro de primavera , por exemplo, são dois romances do início dos anos 1990 e
que seguem essa obsessão de Modiano pela história. Na primeira o narrador se
centra em descobrir porque um casal se suicidou nos anos trinta; na segunda, é semelhante, trata sobre um fotógrafo que desapareceu no México. Jansen necessita expressar o silêncio com
suas fotos. E o jovem organizando seu arquivo compreende que o quer é “criar o
silêncio com palavras”, fazer falar os pontos suspensos de voz. Desemparo, dor,
silêncio: outras três palavras que dão forma o fascinante mundo romanesco imaginado
por Modiano.
Sua escrita tem a sensibilidade de quem trabalha com um mármore.
Sua primeira pessoa é lacônica, fala entre linhas, se expressa mediante
silêncios. E o leitor, apresentado como um intruso no princípio, vai entrando
pouco a pouco em seu território, como quem tivesse de acostumar os olhos às
imagens que a princípio parecem abstratas. Mas são muito concretas. O escritor
francês sabe sempre em que parte do corpo de Paris acomodam-se as dores. Bairro perdido, outro exemplo, nos transporta a um
apartamento da Place de l’Alma. Estamos esperando que Carmen Blin acorde. Aqui o
narrador é um escritor de romance negro, Ambrose Guise, que regressa a Paris
depois de vinte anos de ausência.
Os grandes escritores alcançam contar boas histórias. Os escritores imprescindíveis
conseguem mudar um país, fazer com que o espelho em que se olha uma sociedade
se veja diferente. Há que ter uma enorme coragem e uma lúcida quantidade de
dúvidas para atrever-se a contradizer o discurso dominante, para tratar de
contar que as coisas não foram como queremos recordá-las mas como foram, com
suas matrizes, seus erros e suas misérias. Com uns livros breves, certeiros,
precisos e muito mais duvidosos que afirmativos, essa tem sido a grande contribuição
de Modiano para a história da França durante o século XX.
Ligaçoes a este post:
No Tumblr do Letras, uma galeria com sete momentos raros na vida de Patrick Modiano.
* Os títulos citados neste texto são traduzidos livremente do espanhol para o português. O texto é produto de notas colhidas de "Mucho más Modiano" (José Luis Juan), "Patrick Modiano gana el Nobel de Literatura" (Guillermo Altares), "Modiano, instrucciones de uso" (J Ernesto Ayala-Dip) e "Modiano, un Nobel que cambió el pasado" (Guillermo Altares) publicados no El País.
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