Patrick Modiano, o Nobel dos territórios obscuros
Por Alfredo Monte
Aos 69 anos,
Patrick Modiano foi anunciado como vencedor do Nobel, exatamente meio-século
após outro francês, bem mais célebre, Jean-Paul Sartre, ter recusado com
veemência a premiação. Será mera coincidência?1
Ao contrário, no
entanto, da suposição generalizada por aqui, Modiano não é um desconhecido. Seus
livros geralmente são sucesso de vendas e, para muitos, trata-se do maior
escritor vivo da França. Aos 33 anos, Uma
rua de Roma (Rue de boutiques obscures,
1978) ganhou o badalado prêmio Goncourt. Nessa obra-prima, ele fixou
definitivamente um inconfundível universo de territórios e tempos obscuros, ao
criar o detetive desmemoriado que investigava indícios, quase todos fugidios e
evanescentes, do próprio passado, ao mesmo tempo uma incógnita e carregado de
marcas opressivas: a Ocupação nazista, o colaboracionismo.
Modiano
obsessivamente nomeia logradouros e fixa datas2. Nem por isso
deixamos de ter a sensação de mergulhar numa atmosfera insubstancial, na falta
de evidências concretas, a realidade tomada pelo fuliginoso, pela penumbra, uma
verdadeira poética do lusco-fusco: “Janeiro de 1965. Às seis horas já estava
escuro no cruzamento do bulevar Ornano com a rua Championnet. Eu não era nada,
eu me confundia com esse crepúsculo, com essas ruas...”, lemos em outro belo
livro, Dora Bruder (1997), onde o
narrador persegue — com clara percepção do fiasco da empreitada — os vestígios
mínimos (“Levei quatro anos para descobrir a data exata de seu nascimento, 25
de fevereiro de 1926. E levei mais dois anos para conhecer o lugar onde
nascera: Paris, décimo segundo arrondissiment. Mas, sou paciente. Posso esperar
horas sob a chuva”) remanescentes da passagem por este mundo de uma adolescente
judia dos tempos da Segunda Guerra: “Os pais perdem a pista da filha, e um
deles vai desaparecer também, nesse 19 de março, como se o inverno daquele ano
separasse as pessoas, destruísse e queimasse as pistas, ao ponto de lançar uma
dúvida sobre a sua existência. E não há nada que possa ser feito. Os mesmos que
são encarregados de o procurar e encontrar fazem fichas para que seja mais
fácil fazer com que você desapareça depois, definitivamente”. Modiano continua
a seu modo — com uma espécie de olhar de esguelha — uma das Grandes Narrativas
da modernidade, cujo grande pai fundador é Kafka: a irrealização do humano (e
especialmente da singularidade individual) pela burocracia. Alguém ficará
surpreso de lhe atribuírem o Nobel por conta “da arte da memória com a qual
evocou os destinos humanos mais inapreensíveis e jogou luz sobre a vida durante
a Ocupação"?
Uma rua de roma, Do mais longe do esquecimento e Dora Bruder, três edições das mais conhecidas de Patrick Modiano no Brasil |
Apesar de tema
recorrente, é injusto dizer que sua obra se limita a esse período histórico. Tome-se,
por exemplo, um romance excelente como Do
mais longe do esquecimento (Du plus
loin de l´oubli, 1996)3, cuja trama transcorre vinte anos depois
da guerra. O narrador, ainda menor de idade, rompeu com os pais e mora num
hotel (sem domicílio fixo, os personagens modianescos transitam por alojamentos
provisórios, muitas vezes precários e sórdidos, nas bordas do escuso4),
vendendo livros de arte para sobreviver.
Ele se envolve com
Jacqueline, viciada em éter, que vive com Van Bever, jogador inveterado, e tem
um caso com o suspeitíssimo dentista Cartaud. A certa altura, Jacqueline propõe
ao protagonista que roube uma mala no consultório do amante e ele o faz sem
pestanejar. As páginas em que narra o intervalo de tempo, após o roubo, até
entrar em contato com Jacqueline, estão entre as melhores que Modiano escreveu.
O jovem narrador, inclusive, se visualiza fugindo sozinho com a mala, arrastado
pelo imaginário das estações e trens que pululam no universo do Nobel 20145,
tanto quanto os hotéis e pensões.
Enfim, os dois vão
para Londres e conviverão com a nascente fauna da Swinging London anos 1960, em
disponibilidade total (e sempre com um pé no submundo), e também com um
sentimento de irrealidade (que pode ter elementos de sonho ou pesadelo), de que
“a vida ainda não começou”. E nem começará: tão gratuitamente como se aproximou
dele, Jacqueline desaparecerá; só irão se reencontrar dali a quinze anos; e
depois de outros tantos, ele perambulará por Paris, recordando e ruminando
esses incidentes e ligações (“Quinze anos se passaram ainda, numa tal bruma, que
se confundem uns com os outros”), possivelmente os únicos um pouco mais nítidos
na nebulosa, no lusco-fusco da sua existência: “...teria sido uma pena acabar
naquele banco, numa espécie de amnésia e perda progressiva de identidade...”,
ele nos diz, manuseando a certidão de nascimento, como se tentando comprovar
via documentação sua presença no mundo6, tal como o narrador de Dora Bruder tentará fazer com a
desaparecida Dora, ou Guy, o detetive de Uma
rua de Roma, com seu passado, antes de adotar esse avatar.
A desconcertante,
fragmentária educação sentimental narrada em Do mais longe do esquecimento pode frustrar leitores que queiram
uma trama unívoca, coesa e dirigida a um fim. Em contrapartida, se o pensador
polonês Zygmunt Bauman estiver correto em sua hipótese de que vivemos em plena
“modernidade líquida”, com o afrouxamento de laços com o real e até da noção de
identidade, poucos a registraram tão poderosamente quanto Patrick Modiano em
seus romances curtos, de linguagem sóbria, quase seca, e perigosamente
movediços: podemos afundar neles7.
Notas
1 E aqui
devo lembrar que somente 21 anos depois
da “desfeita” do autor de A náusea a
França, outrora muito constante nos anúncios de vencedores, ganharia novamente
um Nobel, com Claude Simon, em 1985.
2 Na abertura
de Uma rua de Roma o leitor já pode
ter um vislumbre dessa recorrência obsessiva:
“Atrás de Hutte,
prateleiras de madeira escura cobriam a metade da parede: aí se encontravam
catálogos telefônicos e anuários de todos os tipos, e desses últimos cinquenta
anos. Hutte dissera-me várias vezes que eram instrumentos de trabalho
insubstituíveis, dos quais jamais se separaria. E que tais catálogos e anuários
constituíam a mais preciosa e comovente biblioteca que alguém pudesse ter, pois
em suas páginas estavam registrados muitos seres, coisas e mundos
desaparecidos, sobre os quais só aqueles volumes prestavam testemunho”.
3 Título
tirado de uma citação do poeta alemão Stefan George (1868-1933), o qual foi de
certa forma espuriamente encampado pela propaganda nazista, devido aos
elementos “arianos” da sua obra.
4 Como
acontece com o pai, figura recorrente, metido em negociatas no mercado negro, e
um judeu de ambíguas estratégias de sobrevivência durante o período mais
sombrio (pelo menos no século XX) da França, país em que o antissemitismo
possivelmente aflorou de forma violenta muito antes da Ocupação, a qual de
certa representou apenas o ápice de um longo processo.
5 Inclusive
nos sonhos e pesadelos:
“Mas comecei a
sentir uma espécie de pânico, uma vertigem, como ocorre nos pesadelos, ou
quando não conseguimos chegar numa estação, e as horas passam, e vamos perder o
trem.
Há vinte anos,
experimentei uma aventura parecida. Soube que meu pai fora hospitalizado no
Pitié-Salpêtrière. Eu não o tinha visto mais desde o final da minha
adolescência. Decidi que lhe faria uma visita improvisada.
Lembro que vaguei
durante horas pelo enorme hospital, à sua postura. Entrava em prédios antigos,
nas salas de enfermaria, repletas de camas, e as perguntas que fazia às enfermeiras
recebiam sempre respostas contraditórias. Acabei duvidando da existência de meu
pai (...) Percorri os pátios de cimento até a noite. Não consegui encontrar meu
pai. Nunca mais o revi.”
6 Talvez
seja interessante uma amostra maior, situando melhor a passagem citada acima:
“Por mais que
juntasse outras lembranças mais recentes, estas pertenciam a uma vida anterior
que eu não estava inteiramente certo de ter vivido.
Tirara do bolso
minha certidão de nascimento. Nascera durante o verão de 1945, e uma tarde, às
cinco horas mais ou menos, meu pai fora assinar o registro da prefeitura. Eu
via sua assinatura na fotocópia que me haviam dado — uma assinatura ilegível.
Depois ele voltara para casa a pé, pelas ruas desertas daquele verão, em que se
ouviam as campainhas cristalinas das bicicletas, no silêncio. E era a mesma
estação de hoje, o mesmo fim de tarde ensolarado.
Tornara a guardar a
certidão de nascimento no bolso. Estava num sonho, do qual precisava mesmo
acordar. Os laços que me ligavam ao presente estiravam-se cada vez mais.
Realmente, teria sido uma pena acabar naquele banco, numa espécie de amnésia e
de perda progressiva de identidade, e já não poder indicar aos passantes meu
domicílio... Ainda bem que tinha no bolso aquela certidão de nascimento, como
os cães que se perderam em Paris, mas trazem na coleira o endereço e o telefone
do dono... E tentava explicar para mim mesmo a hesitação que sentia. Fazia
muitas semanas que não via ninguém. As pessoas a quem telefonara não tinham
voltado das férias. Além disso, errara ao escolher um hotel afastado do centro.
No início do verão, pretendia passar ali apenas uma temperada muito breve, e
alugar um pequeno apartamento ou um conjugado. A dúvida insinuava-se em mim:
teria eu realmente vontade de ficar em Paris? Enquanto durasse o verão, teria a
ilusão de ser apenas um turista, mas no início do outono as ruas, as pessoas e
as coisas retomariam sua cor cotidiana: cinza. E eu não sabia se ainda tinha
coragem de me fundir de novo naquela cor.”
7 Os
romances de Modiano acima citados, Uma
rua de Roma, Do mais longe do
esquecimento e Dora Bruder foram
lançados no Brasil pela Rocco e traduzidos respectivamente por Herbert
Daniel-Cláudio Mesquita (1986), Maria Helena Franco Martins (2000) e Márcia
Cavalcanti Ribas Vieira (1998).
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