Leituras de Allen Ginsberg ou o registro de um encontro
Por Pedro Fernandes
Um dos poucos registros do encontro "Leituras de Allen Ginsberg". Entre Cesar Kiraly (esquerda) e Pedro Fernandes (direita), Filippi Fernandes. |
Isso não é uma ata de reunião tornada pública. Se muito, é a crônica de
um encontro. Eis, portanto, o sentido para o termo registro impresso no título. Em meados de agosto, os leitores
receberam o número 9 da edição do caderno-revista 7faces inteirando, assim, um
ciclo de cinco anos de existência de periódico cujas bases foram pensadas a partir do blog Letras in.verso e re.verso. Desse tempo, um ano e meio que
o projeto ganhou outra guinada com a parceria mais que séria entre eu, o
idealizador, e Cesar Kiraly, poeta, professor e um fomentador de ideias, e nós dois editores da
mesma matéria: a poesia de expressão portuguesa contemporânea. Ou mais que
isso: a expressão da poesia contemporânea - se olharmos as edições até então já
publicadas.
Detalhe de capa da 9ª edição do caderno-revista 7faces em homenagem a Allen Ginsberg. © Florian Raiss |
Enquanto preparávamos o número mais recente do caderno-revista, Cesar
dedicava-se ao exercício de trazer ao português outra versão para a poesia de Allen
Ginsberg. Minha ida ao Rio de Janeiro para uma leitura sobre a obra de José Saramago
no Real Gabinete Português de Leitura no mês seguinte ao da apresentação da edição
em homenagem ao Beat-Poeta foi a peça que faltava para uma série de conspirações
inéditas costuradas enquanto era preparada a tradução dos poemas: era minha primeira
ida ao Rio, era meu primeiro encontro pessoal com Cesar, era um primeiro evento
envolvendo o nome do nosso projeto fora de seu lugar natal, eram as leituras das
traduções inéditas de Ginsberg, era a oportunidade de fomentar outros projetos
que a altura do tempo os leitores desse espaço certamente terão contato.
Em letras eletrônicas para o que poderia ser um grafite, um banner eletrônico
espalhado a partir das redes sociais anunciava “Leituras de poemas de Allen
Ginsberg”. Ilustrando o cartaz com ares minimalistas a reprodução da réplica de
um dos óculos usados pelo poeta. Por baixo, os planos iam e vinham. Prontifiquei-me
largar a vergonha e ler um dos poemas. Catei entre os poemas breves e os mais
longos um que tivesse a medida certa e coubesse na minha voz para uma leitura.
Difícil é a arte de ler poesia publicamente. Concluí desde então. Como leitura
que pede o afastamento do mundo ou um fechamento do eu sobre a matéria
oferecida, encontrar o tom adequado para cumprir com a externalização do poema não
é tarefa simples. Mesmo se tratando de Ginsberg cujos poemas são revelações quase
proféticas ou o registro de um desejo pulsante - duas formas externas e à
contramão do ato de recolhimento pedido pela poesia. Digo isso, enquanto me vem
aos ouvidos Cesar - ou poderia ser Claudio Willer, quem magistralmente leu
também o poema numa sessão assim pública - os versos de “América”, talvez o
poema mais conhecido de Ginsberg de uma obra igualmente mais conhecida, Howl and other poems.
Banner de divulgação do evento "Leituras de Allen Ginsberg" |
O cartaz com ares entre o grafite e o minimalismo está mais belo -
muito mais belo - que minha tentativa de leitura. Ver-se fora de si, como
imagem que fala é mais estranho que ver-se em fotografia ou ouvir-se em
registro de voz. Mas, não quero fazer
aqui exercícios de autoavaliação ou de compreensão sobre o eu diante de uma projeção
sua. O banner com chamada para leituras de poemas de Allen Ginsberg circulou
com data, hora e local durante certo tempo nas redes sociais.
Depois de alguns dias de chuva - aquelas chuvas quase torrenciais que
só acontecem em cidades como o Rio de Janeiro - o dia anunciado das leituras
esteve inteiramente azul e ensolarado, mas tomado por uma brisa forte o
suficiente para por qualquer um ao frio se ficasse algum tempo exposto a ela. De
modo que a cidade 40 graus estava fria nesse dia 05 de setembro. Aventureiros por
três dias de cidade maravilhosa, eu e a amiga Cida, depois de charlar por
Copacabana, onde ficamos hospedados, pela noite viva da Lapa, pelos lugares
históricos que resistem quase como uma força bruta à invasão assustadora da
novidade, do moderno achatando memórias, depois de falarmos sobre os autores de
nossa predileção nas letras portuguesas, entre um trecho de metrô e outro de
táxi alcançamos quinze minutos antes das 20 horas a Rua Mario de Andrade, no
Largo dos Leões, n.48.
Estávamos num espaço charmoso e aconchegante, num intervalo de
encruzilhadas e protegidos do frio que corria solto do lado de fora. Numa pequena
sala com pouco mais de vinte pessoas (poderia ser mais ou ser menos, sou
péssimo com números), logo estávamos esquentando voz e ouvidos para ler e ouvir
Allen Ginsberg.
Vencido o tempo de tolerância e o comum intervalo de atraso - esta
cultura do tempo que no Brasil vimos fazendo escola - fomos pela voz e pelo
ouvido modulando com palavras e sons o corpo de pouco mais que duas dezenas de
poemas. Perfurou ouvidos. Congelou atenções. Mas saímos um tanto
rejuvenescidos. Sim, enovelar-se pelas correntezas da literatura é uma forma de
se rejuvenescer.
Eu (Pedro Fernandes) apareço lendo "Mescalina", de Kadish and other poems. |
Cesar leu 19 de seus exercícios de tradução. Em algumas leituras
incorporou o tom forte da poesia Beat. Eu li “Mescalina”, de Kadish and other poems, Filippi
Fernandes, “A resposta”, do mesmo livro. Uma amostra desse exercício de tradução
proposto por Cesar aparece já na edição do caderno-revista 7faces n.9; os 21
poemas lidos estão agora disponibilizados na web. Enquanto isso, um catálogo - ampliando a ideia de uma edição in progress - é preparado com
esse material já tornado público mais outros poemas ainda desconhecidos do
público.
Volto a dizer que, vestidos da prática leitora, esses gestos são responsáveis
por construir um valor muito caro a essa existência mesquinha imposta pelo ritmo
do sistema pelo qual somos regidos: seduzir pelo que de melhor o homem já produziu,
a arte, corações cansados de existir, existências mergulhadas no túnel sem luz, é fazer
tremular uma chama na escuridão, a chama capaz de nos fazer tornar à vida.
Tenho sempre comigo essa convicção quando lido com a literatura: na situação
em que ler ainda é um ato de luxo, fomentar leitores é um ato de
resistência. Resistência contra o achatamento
das experiências com a vida; contra os discursos obscurantistas que nesse tempo de balbúrdia têm ganhado toda corda, têm surgido com toda ignorância em destrate às diferenças que nos constituem humanos; contra os
discursos unilateralistas que se erguem em cada esquina; contra a opressão das
consciências; contra a cegueira que nos impede de ver o que está à nossa volta;
contra a falta de ação diante das mazelas só pioradas pelo desconhecimento do
outro. Ainda mais quando se fala sobre ou se lê uma poesia tão forte e
significativa como a de Allen Ginsberg.
No Youtube, uma playlist com todos os poemas lidos na noite do dia 05 de setembro.
No Youtube, uma playlist com todos os poemas lidos na noite do dia 05 de setembro.
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