Crise
Por Rafael Kafka
Um grande problema para todo escritor é quando ele percebe
que está há um bom tempo sem conseguir escrever. Isso está acontecendo em 2014.
Mas já ocorreu antes. Lembro qjue comecei a escrever inspirado pelas letras de
Kurt Cobain do Nirvana, que em si não eram um primor de poesia como as
composições de outras bandas roqueiras, como a nacional Engenheiros do Hawai.
Mas naquele momento de minha vida, com 17 anos e me sentindo um verdadeiro
grunge solitário de Seattle, mesmo morando em Belém e sendo mulato, as letras
tortuosas do cantor que se matou aos 27 anos eram o supra sumo da poesia
cantada.
Inspirado
nelas, comecei a pegar folhas de papel avulsas e colocar ali meus sentimentos e
pensamentos em forma de poesia. E eu era um poeta estranho: li pouquíssimos
livros de poesia e as minhas inspirações na maior parte eram as letras das
bandas que fui conhecendo e os textos lidos em algumas aulas da escola. Eu
queria escrever para me tornar mais eterno e maior do que a minha existência
trivial. Queria como Cobain sobreviver a minha própria morte. Nem imaginava que
anos depois eu leria sobre essa salvação pela obra de arte em um livro muito
interessante de nome A Náusea.
Segui
durante muito tempo, de 2006 a 2010, escrevendo poemas de forma frenética mas
lendo poucos livros de poesia. Os contos saíam de vez em quando e sempre fui
perseguido pela ânsia de escrever um poema. Quando viramos escritores se deve
quase sempre ao processo de imitação: queremos ser como aqueles que nos
inspiraram. Isso em alguns casos pode nos levar a um cenário meio neurótico,
pois acabamos não tendo uma noção exata do quanto devemos nos inspirar por
nossos ídolos.
Digo isso,
pois até hoje (mas isso já se deu com mais frequência e intensidade) eu me pego
me comparando com escritores que produziram obras muito grandes em idades mais
avançadas do que as minhas. A primeira vez que tal fenômeno se deu comigo foi
quando eu era um leitor voraz de Henry Miller e morria de vontade de produzir
aqueles textos autobiográficos cheios de cenas sensuais, loucuras e histórias
dos guetos nova iorquinos. Até hoje eu preciso me convencer de que farei isso
no dia em que tiver pelo menos a quantidade de fatos que constituíam a
experiência de Miller, um dos grandes escritores malditos norte-americanos e inspiração
da futura Geração Beat.
A arte tem
uma forma de sedução muito grande, principalmente as narrativas. Seres
incompletos, indefinidos que somos, vemos na figura fechada da personagem um
norte para nossos atos futuros e por isso nós nos identificamos facilmente com
esta ou aquela personagem, sendo esse fenômeno muito comum nas moças de
antigamente as quais se apaixonavam pelo casal belo que no final da novela
ficaria feliz acima de qualquer intempérie. Em certos momentos, e isso é mais
comum na literatura, nós nos apaixonamos pelos autores e suas existências, o
que fica mais provável de ocorrer quando a vida do escritor se confunde em
diversos pontos com sua obra, como o já citado Miller ou outros como Jack
Kerouac. Acabamos nos encantando com aquele processo de edição que já faz parte
da mentira da arte e transforma os fatos existenciais em belos enredos
biográficos, os quais nos levam a querer imitá-los, seja no estilo de nossa
escrita, seja no tipo de vida que levamos. Por isso muitos se mataram quando o
Werther foi lançado por Goethe: era o norte para suas existências talvez
insossas para si mesmos.
No meu caso
em específico, como eu disse acima, esquecia que eu era apenas um jovem de
menos de vinte anos e que ainda teria um longo caminho de leituras e de escrita
para traçar uma carreira escritora que me deixasse embasbacado com meu
progresso. Eu estava aficionado demais na tarefa de me tornar uma lenda como as
lendas que aprendi a respeitar e admirar e por isso mesmo não via o óbvio: que
cada ser humano tem seu caminho.
Por isso,
quando me vi atolado de trabalho e estudos e fiquei sem produzir muitas coisas,
cobrei-me demais de forma muito infantil. Já me via com quarenta anos de idade,
rumo à meia idade, prestes a morrer quem sabe e doido para produzir algo. Eu
estava extremamente neurótico de uma forma que somente uma boa novela poderia
explicitar. Mas isso aqui é apenas uma crônica, ou um ensaio, e devo me ater ao
seu pequeno limite para expor minha presente angústia.
*
Pois bem,
caro leitor, assim como ocorreu nos anos em que fiquei na secura pelo excesso
de trabalho, estou sem conseguir escrever um bom texto há um certo tempo já. De
um tempo para cá, acho que a partir de 2011, montei um blog e nele comecei a
publicar textos como essa crônica, alguns contos, resenhas de livros lidos por
mim e poemas. Por motivos de prudência, exagerada talvez, decidi não mais
atualizar esse blog como antes. Coincidentemente, tomei essa decisão e meu
ritmo de escrita decaiu brutalmente.
Em 2012 e
em 2013, era muito comum eu estar on-line em meu Facebook conversando com alguém
enquanto lia algo em PDF. De repente, surgia a inspiração e eu mandava ver um
texto de no geral três ou quatro páginas cujo destino era o tal blog. Fazia
isso mais na tentativa de mostrar meus textos a alguém, mas poucas pessoas iam
ao site para ler o que era produzido por mim. (Pedro Fernandes leu e hoje vocês
precisam aguentar minhas viagens existenciais e literárias aqui). Queria que as
pessoas lessem e comentassem o que fora escrito por minhas mãos e ideias e
durante muito tempo essa ânsia por ser notado mobilizou minha inspiração.
Mas 2014
foi um ano atípico não apenas pelo crescimento do reacionarismo e pelo imenso
número de mortes de pessoas célebres. Foi também um ano em que decidi estudar
literatura e ler mais sobre política. Foi um ano em que as obras lidas por mim
tiveram em quase sua totalidade um cunho mais político e de esquerda e isso me
fez pensar demais em problemas até então ignorados por mim, como a injustiça
social e os discursos, muitas vezes de ódio, que as legitima. Foi um ano em que
mergulhei de vez nas águas do realismo mágico e procurei entender o meu passado
de leitor, escritor e ser humano por um viés existencial mais pleno.
Isso tudo
tendo que trabalhar, produzir textos para o blog, fazer leituras de um projeto
de pesquisa e levar um curso de graduação adiante. Agora entendo porque não
escrevi tanto, porém ainda assim me sinto incomodado. Penso que além do fato de
manter um diário (hábito que recomendo a todos os que tiverem problemas de
ansiedade ou coisas as quais querem compartilhar com alguém) poderia ter tido
menos medo de plágio (sim, foi isso que me fez parar de usar o blog por motivos
de prudência exagerada) e ter deixado esse meu lado mais exibido se aflorar e
colocar mais coisas ali. Poderia ter soltado mais a mão e feito mais daqueles
textos de três ou quatro páginas os quais diziam muito de mim para quem
quisesse ler.
O curioso é
que eu achava o tamanho dos textos pequenos. Quatro páginas, a média do tamanho
dos meus textos, soava-me como uma coisa minúscula, pois eu mais uma vez estava
a me comparar com os grandes escritores produtores de textos de vinte ou trinta
páginas com o nome de conto. Parece-me que esqueci de dois gênios essenciais em
minha formação pensadora, sendo um deles Mário de Andrade, que em um começo de
texto muito singelo diz que conto é tudo aquilo que chamamos de conto; e Will
Eisner, que se tornou uma lenda dos quadrinhos produzindo textos de sete
páginas e nada mais do que isso com seu personagem Spirit. O tamanho, em suma,
não é documento para a expressão e para quem sabe se produzir algo decente.
*
Minha
crise, em suma, não se deve hoje ao fato de não estar a escrever. Fazer um
diário foi uma tarefa extremamente profunda do ponto de vista ontológico. Pode
ser meu próximo tema, aliás. Os textos
do Letras saem com uma boa regularidade e os poucos atrasos tidos se deveram a
problemas de força maior. Mas eu poderia ter escrito mais, poderia ter feito o
que falei acima: usado mais de meus dedos para fazer de fatos ao meu redor
histórias. Se com quatro ou mais páginas não importa. O que me importa era ter
escritor. E eu poderia ter feito mais textos se tivesse olhado mais a minha
existência concreta e não a de outros seres cujas vidas se tornaram lendas para
mim: lendas a serem seguidas de forma neurótica, um perigo o qual todo leitor
voraz e apaixonado corre, não importando se ele lê clássicos ou narrativas
triviais.
Escrever
hoje tem uma dimensão existencial muito profunda e de certa forma as crises de
identidade pelas quais passei e que afetaram meus textos e sua escassez, além
das coisas lidas por mim neste ano, fizeram-me entender plenamente que a seca
de contos, crônicas e outros gêneros pode ser um belo momento de hibernação no
qual estamos a aprender mais e mais coisas sobre nosso mundo complicado.
Talvez um
dia eu entenda que peguei pesado demais comigo em dizer que eu deveria ter
escrito mais mesmo sem o tempo e a cabeça para isso. Mesmo sem ser o momento.
Talvez um dia eu entenda que foi-me preciso um tempo comigo mesmo para ver as
mudanças em minha mente e como elas apareceriam em meus escritos. E aí, talvez,
eu pare de me culpar e entenda que a vida é complexa justamente por não ter um
final feliz de obra redentora e só me resta viver com isso de uma forma não
amarga e seguir trabalhando, lendo, tentando escrever.
De repente,
nesse dia, eu entenda que este texto que agora encerro era o reconhecimento do
quanto eu sou bobo em certos momentos e de que vida, para ser mais poética, deve
ser vivida com um ar mais leve, contemplativo e alegre. Os textos vêm depois:
basta sentarmos e não termos medc de nos sermos.
Comentários