Claraboia, de José Saramago
Por Rafael Kafka
Claraboia é
o primeiro romance póstumo de José Saramago. Mas com uma curiosidade
interessante: a data de sua feitura é de meados dos anos 50 do século passado.
Porém, após o jovem Saramago mandar o original do texto, nunca obteve uma
resposta sobre a publicação ou não do romance. Apenas na década de 80, quando o
autor de Levantado do chão e Ensaio sobre a cegueira tornara-se famoso, a editora decidiu
contactá-lo que, magoado pela recusa, resolveu deixar a cargo de seus herdeiros
o destino do livro. A publicação em terras brasileiras data de 2011, primeiro ano sem o célebre escritor entre nós.
A leitura
do presente romance propicia uma experiência estética e de descoberta bem
interessante. Conforme vemos os escritores avançarem em sua escrita, percebemos
o refinamento e abandono gradual deste ou daquele recurso estilístico por eles
utilizado. Alguns acabam criando verdadeiras marcas registradas, como Gabriel
García Márquez com seus tortuosos cortes temporais, ou Kafka com as suas
descrições de ambientes escuros e angustiantes, perfeitos cenários de situações
aterradoras. No caso de Saramago, a primeira e mais clara de suas marcas (ao
lado do tom fabulesco de seus escritos que em certos momentos parecem parábolas
da vida pós-moderna com um narrador cheio de irônica verborragia sobre os
acasos da vida) é o uso bastante peculiar da pontuação, com a vírgula servindo
de ponto em seguida, travessão, dois pontos, etc. Para complementar isso, nos
seus escritos mais recentes. Saramago praticamente abdicou do uso das letras
maiúsculas, fato que dá ao texto uma atmosfera fria, despojada de
sentimentalismo, mas que justamente por isso acaba sendo tocante, por revelar
de forma mais pura as grandezas e baixezas dos seres humanos.
Além desses
dois recursos, os elementos alegóricos e fantásticos são algo frequente e
marcante em Saramago como em todos os bons escritores do realismo mágico. Vemos
situações das mais insólitas como uma epidemia de cegueira ou uma península que
começa a navegar pelo meio do Oceano Atlântico e ainda assim achamos aquela
história com o mais alto grau de verossimilhança possível. Tal cenário nos faz
ver como o ser humano se apequena diante de um mundo que ele finge controlado,
cuja face só é mostrada diante da lógica vida quebrada, diante do mais puro
absurdo, capaz de revelar desespero, bondade e outros sentimentos paradoxais da
existência humana.
Como eu
disse acima, a leitura de Claraboia causa uma experiência estética e de
descoberta interessante. Isso se deve ao fato de que esses recursos citados por
mim nos parágrafos anteriores ainda não estão a ser usados na obra do jovem
Saramago, entretanto mostram-se ali os primeiros traços do futuro escritor
ganhador do Prêmio Nobel. O livro é mais “seco” do que seus sucessores e foi
escrito em um período da vida de Saramago no qual ele ainda não podia se
dedicar inteiramente à escrita. Ainda assim, consegue ser genial em sua
aparente simplicidade.
A proposta
da história é aparentemente simples e logo no primeiro capítulo do livro fica
clara: estamos em um prédio e diversas vidas são relatadas ao mesmo tempo. Os
capítulos se seguem mudando o foco narrativo como se fosse uma câmera de um
apartamento para outro. Deparamo-nos com situações das mais variadas: conflitos
existenciais, a dureza da vida financeira apertada, os laços familiares
destruídos e mantidos por conveniência ou medo de arriscar um passo novo, o
desejo sexual entre duas irmãs etc.
Para quem
não sabe, Claraboia é uma abertura existente nos prédios, na parte superior, que permite a entrada de luz. O foco da história é múltiplo imitando de
certo modo a visão que teríamos se caso olhássemos a realidade de um edifício
de tal local. Percebemos aí um artifício claro do realismo mágico que é o de
inovar no aspecto narratológico, tornando a narrativa algo além dos modelos
clássicos de narrador onisciente, personagem, observador etc. O narrador se
transforma em uma figura cujo próprio modo de narrar procura causar no leitor
um certo estranhamento metalinguístico e existencial fazendo do próprio ato de
ler algo mais significativo do ponto de vista do entendimento do discurso a ser
trabalhado ali. Para tentar simplificar isso, posso citar o exemplo de alguns
livros que utilizam-se de recursos similares.
Paralelo 42
e 1919 de John dos Passos (escritor norte-americano que não é realista mágico)
fazem parte da trilogia USA (composta ainda de O Grande Capital, o qual ainda
não li). Nele, o foco narrativo se centra ora em um personagem, ora em outro,
todas pessoas comuns da vida norte-americana. Aos poucos, as histórias
independentes, contadas em um ritmo frenético, unem-se ou se interligam de um
forma sutil para criar o panorama social da nação que mais tarde se tornaria a
grande potência imperialista do mundo.
Em Sursis, segundo volume da trilogia Nos
Caminhos da Liberdade, outro exemplo, Jean-Paul Sartre usa recursos similares, mas em um ritmo
ainda mais frenético e “cinzento” para abordar o contexto social do momento em que eclodia a Segunda Guerra Mundial. Vemos personagens
espalhados por diferentes locais dentro e fora da França interagindo com a
ameaça de um conflito de proporções antes nunca imaginadas. Tal tipo de
narrador, que mais parece uma câmera, surge na obra Benjamin de Chico Buarque,
mas aqui com um foco mais centrado nas coisas e na pessoa amada pelo
protagonista, com uma força que passa ao leitor o nível de obsessão que ele
sente pela moça (cuja fisionomia lembra a de outra pessoa amada anos antes).
Tais recursos narratológicos são oriundos das experiências estéticas causadas
por obras do cinema e se encaixam muito bem dentro da obra literária para
exibir a simultaneidade de situações e existências complexas, e por isso muitas
das vezes a leitura de tais romance se parece mais com o ato de assistir a
filmes em uma grande e brilhante tela.
Claraboia se
utiliza muito bem dele para falar de fatos banais da vida cotidiana de pessoas
simples e bastante humanas, mesmo sendo apenas personagens de ficção. É difícil
dizer o que chama mais atenção no livro: se o seu tom seco que enfatiza demais
o silêncio como contato angustiado de seres consigo mesmos e com os outros; os
conflitos familiares que envolvem as eternas brigas de Justina e Emílio, tendo
como testemunha seu filho Henrique; o desejo homossexual que surge entre as
duas irmãs Adriana e Isaura, que residem com a mãe e uma tia em um regime
intenso de trabalho para sempre terem o que comer; Lídia que possui um amante
rico mas que corre o risco de perdê-lo quando resolve pedir a ele que auxilie
Maria Cláudia, filha de outro casal residente do prédio, dona de irresistível
charme que chama a atenção de Abel, jovem que procura viver uma vida de
liberdade e gratuidade, que aluga um quarto na casa do sapateiro Silvestre e
ali aprende o quanto a vida é complexa e a liberdade gratuita é um gesto o qual
não pode ser aceito.
Em
praticamente toda a história, temos a narrativa se passando dentro do edifício
com pouquíssimas “tomadas” fora desse espaço. Já percebemos aqui o discurso de
Saramago bastante implícito no tocante à crítica à família tradicional, que se
mantém muitas vezes unidas devido à dependência emocional ou financeira de um
cônjuge pelo outro. Vemos também a força do discurso sendo utilizada para
contar por meio de flashbacks todos os conflitos psicológicos que se tornam
contexto dos mais diferentes terrenos que lemos alternadamente dentro das mais
de trezentas páginas do texto.
O texto é
bem simples no tocante a narrar os fatos em sua crueza, dando ao leitor um
grande poder de inferência. Por conta disso, é bastante possível se identificar
com muitos dos elementos abordados pelos diversos focos narrativos do autor,
como os conflitos familiares, a sabedoria de uma pessoa mais velha, o machismo
das relações paternais, a descoberta da sexualidade etc.
Por seu
caráter “aberto”, para falarmos como Umberto Eco, o texto de Saramago pode
suscitar em sua aparente simplicidade textual uma série de discussões
importantes. O foco narrativo de Abel, por exemplo, pode servir de discussão
(como os personagens existencialistas de Sartre Mathieu e Roquentin) para
discutir a questão da idade da razão: aquele momento em que o ser se descobre
preso à sua liberdade, responsável pelo que ocorre consigo e pelo que estão ao
seu redor. Abel, fugindo de qualquer prisão ou “tentáculo”, como ele diz,
tornou-se preso de um sonho infantil que na verdade, como bem aponta Silvestre,
é apenas medo das exigências da vida.
Silvestre, por sinal, é um personagem
bastante peculiar. Segundo ele, a vida lhe ensinou a ver além dos limites das
solas de seus sapatos. Descobrimos em sua juventude um contato com o socialismo
e o desejo de tornar a vida menos penosa para os pobres. O amor entre ele e a
esposa é abordado de forma bastante terna pelo autor, que consegue criar um contraste
bastante interessante com as outras famílias residentes no prédio, as quais
nitidamente estão juntas como que por elos de obrigações inquebrantáveis.
Recomendo a
leitura da presente obra não apenas como uma forma de entender onde tudo
começou dentro da obra de Saramago, mas sim pelo seu valor em si como livro.
Mesmo sendo um livro da fase iniciante do autor, o texto de Claraboia consegue
ser primoroso e já demonstra em gérmen muito do que virá no futuro consagrar um
dos maiores e mais engajados escritores de todos os tempos.
Em 2013, Pedro Fernandes escreveu notas sobre Claraboia, de José Saramago. Leia aqui.
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