Carta e poema inéditos de Federico García Lorca
Juan Ramírez de Lucas, o último grande amor de Federico García Lorca |
A notícia deu a volta ao mundo. Pouco antes de morrer, o crítico de
arte Juan Ramírez de Lucas pediu à sua família para que fosse publicada a documentação
que comprovava sua relação com Federico García Lorca. No material, uma carta,
um poema e um manuscrito onde consta seu drama pessoal: as vicissitudes de um
jovem apaixonado por um escritor acima de sua posição.
Toda e qualquer novidade em relação à vida e obra do poeta espanhol
chama atenção os olhares do público e dos estudiosos de sua obra, mas a crise
editorial, a indecisão política e a divisão de uma família que não sabe o que
fazer com essa herança fizeram com que esses documentos permanecessem
escondidos de outros olhares que não os dos herdeiros.
A carta escrita por Lorca quando estava em Huerta de San Vicente e o
poema inédito dedicado a ‘Juanito’ ‘o loiro de Albacete’ estão guardados (e bem
guardados!) num cofre. E já se passaram quatro anos da morte do destinatário do
material.
Toda essa documentação esteve debaixo dos olhos de um grupo de pesquisadores;
chegou a receber ofertas de compra para publicação, mas não foi fechado nenhum
contrato. A crise econômica e a situação do mercado editorial obrigou a família
de Ramírez de Lucas a esperar por tempos melhores.
Desde a descoberta do material, que outras especulações, fora as financeiras que estiveram paradas
durante todo esse tempo, ganharam forma: Manuel Francisco Reina recriou o conteúdo
dos documentos no romance Los amores
oscuros; os políticos tomaram partido sobre o assunto. Nesse último
território são poucas as ocasiões que o congresso espanhol tenha se dedicado a
assuntos dessa natureza. A proposta discutida em 2012 é que os documentos
fossem digitalizados e disponibilizados para o público, claro, depois que o
Estado negociasse com os herdeiros de Ramírez de Lucas e a Fundação Lorca.
Apesar de votada por ampla maioria, a resolução não chegou a passar de
uma mera declaração de intenções, mesmo tramitando em negociações entre o
Ministério da Cultura, a direção dos Arquivos Nacionais e a parte envolvida na
posse dos documentos. Laura García Lorca, presidenta da fundação que leva o
nome de seu tio, sustém que esse material não pode ter melhor destino que os
arquivos da instituição, onde estão depositados mais de cinco mil documentos
relacionados com a obra e a vida do autor de Bodas de sangue, tais como correspondências e as primeiras edições de
seus livros, sempre consultados diariamente por pesquisadores dos quatro cantos
do mundo.
Laura reconhece que embora a propriedade intelectual do material inédito
seja de Lorca, os papeis pertencem a família de Ramírez Lucas e cabe a ela o
direito de decidir sobre o futuro dos papéis. Mas é necessário alcançar um
acordo: a publicação do conjunto de documentos é de interesse de pesquisadores
e leitores. Até o fim do ano quando se inaugura uma sede do Centro García Lorca
em Granada para onde vão os arquivos da Fundação, é possível que isso venha ser
resolvido.
As recordações não curam feridas mas ajudam a mitigar a nostalgia. Depois
de confirmar-se o fuzilamento de Federico García Lorca, Juan Ramírez de Lucas
guardou como ouro num pano os restos em papel daquele amor de juventude que lhe
havia arrebatado. A última notícia do poeta chegou em forma de carta à casa dos
Ramírez de Lucas, em Albacete, quatro dias depois da revolta nacional.
Federico García Lorca em Huerta de San Vicente |
Datada de 18 de julho de 1936 em Granada, a missiva saiu do correio
antes que se interrompessem as comunicações. Lorca a escreveu no dia de São
Federico, uma data marcante para sua família acostumada, como em quase toda
Andaluzia, a festejar os santos mais que os aniversários. Impregnada do cheiro
das flores de jasmim do jardim de Huerta de São Vicente, a carta de três páginas que fora escondida entre
outros papeis pedia que Ramírez de Lucas fosse forte e tratasse de convencer
seus pais para respeitarem suas ideias. Tratava-se de sua família, as pessoas
mais importantes de sua vida junto com os amigos. “Comigo contas sempre. Eu sou
teu melhor amigo e te peço que sejas político e não deixes que o rio de leve.
Juan: é preciso que voltes a rir. A mim se passaram também coisas do tipo, para
não dizer terríveis, e eu tenho toreado com graça”, se lê num dos parágrafos. Precisamente
como “amigo”, Federico lhe assegurava que sempre estaria ao seu lado. Despedia-se
desejando que tudo acabasse feliz sem fazer nenhuma referência à “situação política”.
"Em tua carta há coisas que não deves, que não podes pensar. Tu vales muito e tens que ter tua recompensa. Pensa no que possa fazer e comunica-me em seguida para ajudar-te no que for necessário, mas haja com grande cautela. Estou muito preocupado, mas como te conheço sei que vencerás todas as dificuldades porque te sobre energia, graça e alegria, como dizem os flamencos, para para um trem" – diz noutra passagem. Ramírez se encontrava cheio de ilusões e projetos naquela altura e Lorca havia decidido aceitar o convite de Margarita Xirgu para viajar ao México mas queria viajar com o estudante de 19 anos que sonhava em ser ator e que havia feito seus primeiros papéis no Clube Teatral Anfistora. A cumplicidade era mútua, mas necessitavam da aprovação do pai do rapaz, um reputado médico. O poeta estava com 38 anos, mas seu amante estava a dois para alcançar a maior idade. Poderiam ter fugido. Lorca tinha os contatos necessários para saírem da Espanha com papéis falsificados, mas se negou a fazer isso. “Eu penso muito em ti e isto bem sabes tu sem necessidade de dizer-te, mas com silêncio e entrelinhas tu deves ler todo o carinho que te tenho e toda a ternura que trago em meu coração.”
Já o poema foi dedicado por Lorca quando os dois viajaram para Córdoba.
Segundo as provas refletidas em seu diário, o poeta escreveu o texto de uma só
vez no único pedaço de papel que levava consigo, um recibo da Academia Orad,
situada no número 3 da madrilenha Carrera de San Jerónimo, onde Ramírez de Lucas
estudava. O papel do recibo acusa um pagamento realizado em maio de 1935 no
valor de 10 pesetas. Para Manuel Francisco Reina, o documento tem clara e
enorme importância para esclarecer determinadas nuances da vida do poeta porque
revelaria a quem ele havia dedicado os seus Sonetos
del amor oscuro. “Lorca, que corrigia até a exaustão como muitos poetas, começou
a escrevê-los em Valencia em 1935, numa data quase paralela ao andamento de uma
nova relação sentimental” – Juan Ramírez. “Escreveu os poemas como homenagem a
San Juan de la Cruz, mas também como um símbolo do sofrimento silencioso até
encontrar um verdadeiro amor. Seguramente que havia muitos restos de outras paixões,
fruto da experiência deixada por cada um de seus amores nesses versos, mas
sempre o último amor, como é também com os amigos, mas é ele que mais tem
importância”.
No terreno das hipóteses em que nos movemos, outros estudiosos da obra
de Lorca, incluindo o biógrafo Ian Gibson, sublinham como protagonista desses versos
quentes em que o poeta desnudava sentimentalmente o jogador Rafael Rodríguez
Rapún, com quem Lorca teve um breve romance antes. O autor do romance Los amores oscuros reafirma a
importância do material – “A relação de ambos foi rompida antes da viagem de
Federico a Nova York e Urugai”, aponta Gibson. Dentre a grande quantidade de
material que se utiliza para seu romance, o escritor destaca que Luis Rosales
entregou a Ramírez de Lucas, anos depois da morte do poeta, uma pasta com todos
os sonetos datilografados que havia encontrado no sótão de sua casa. “Pensavam
que esses documentos deviam ficar em seu poder”.
A seguir deixamos a versão inédita para o português do poema citado no texto:
Romance
Aquele loiro de Albacete
veio, mãe, e me olhou.
Não posso olhar você!
Aquele loiro dos trigos
filho da verde aurora,
alto, só e sem amigos
pisou minha rua na hora errada.
A noite se tinge e doura
de um delicado fulgor
Não posso olhar você!
Aquela linda cintura
vi sem galanteios...
semeou por minha noite escura
seu amarelo jasmineiro
tanto me quer e eu o quero
que levei meus olhos .
Não posso olhar você!
Aquele jovem da Mancha
veio, mãe, e me olhou.
Não posso olhar você!
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