António Ramos Rosa
Por alguns redutos da poesia, a obra do poeta António Ramos Rosa
circula no Brasil. É evidente que o seu exercício literário num blog mantido (não
com assiduidade) entre 2008 e 2012 e as participações esporádicas em diversos periódicos
brasileiros são produtos para que não se diga ser o seu nome um total
desconhecido por aqui. Que dos seus livros, até o presente, só conhecemos Animal olhar, uma antologia organizada
por Rosa Alice Branco e publicada pela editora Escrituras. No entanto, é bom que
se sublinhe que a obra e o nome somam como uma das mais interessantes figuras
da literatura portuguesa contemporânea.
Desde a publicação de O grito
claro, seu primeiro título vindo
a lume em 1958, Ramos Rosa escreveu quase uma centena de livros, reiterando uma
observação já traçada por aqui noutra ocasião sobre a proficuidade dos
escritores de além mar. Os últimos título publicados por ele foi Em torno do imponderável, de 2012, e Numa folha leve e livre, publicado no
mesmo ano da sua morte. De modo que não é deselegante afirmar, o que afirmamos
outra vez, mas sobre o trabalho de Urbano Tavares, outro português, que toda a
vida de Rosa foi integralmente dedicada ao exercício da escrita – esse que lhe
tomou como que um vício necessário à própria razão de existir.
Conhecido como poeta pela quantidade de obras do gênero, não é possível,
entretanto, reduzi-lo a esse trabalho com a palavra. António Ramos Rosa, entre
títulos que fizeram história como, compôs ensaios de extrema envergadura e
importância para as discussões sobre poesia, tais como Poesia, liberdade livre (1962) ou A poesia moderna e a interrogação do real (1979). Some ainda entre o
ofício da poesia e o do ensaio, o da tradução; nesse campo não se atreveu apenas
à poesia, também se dedicou em traduzir prosa estrangeira, sobretudo, a de
língua francesa, uma de suas paixões. Autor que revelou outros importantes
nomes para a cena da literatura portuguesa, Rosa, conciliou toda sua dedicação à
palavra com o desenho.
Nasceu em outubro de 1924 em Faro. Sua primeira inserção no mundo das
Letras se dá quando depois de está em Lisboa e trabalhando como professor de
Português, Francês e Inglês se dedica à leitura e à feitura de traduções para
editoras. É desse envolvimento, primeiro com a tradução, mesmo que, às
escondidas escrevesse seus poemas, irá conviver com escritores na capital
portuguesa. O grupo a que pertenceu foi fundador, em 1951, da revista Árvore, um dos períodos mais marcantes
daquela década pela publicação de importantes nomes de poetas e romancistas de então
e de nomes da literatura estrangeira. É incentivado, então, a partir daí a
trazer a luz seus poemas e seus exercícios de crítica. Nesse território dos periódicos,
Ramos Rosa ainda esteve como coeditor das revistas Cassiopoeia e Cadernos do
meio-dia. Já então tralhava não mais como professor, mas num escritório; ofício
que deverá largar porque a atividade literária já lhe tomava boa parte de seu
tempo. Como quem pula num despenhadeiro no escuro, o poeta passa a dedicar-se
exclusivamente às letras. Ainda assim, seu primeiro livro só aparece quando já
tinha 34 anos. Talvez haja aí uma necessidade muito forte de ser o crítico de
si mesmo. A estreia tardia, entretanto, ainda é mais um adendo para se ver quão
longe foi seu trabalho.
É quando se inicia na crítica literária; aparece na mídia como autor de
uma extensa quantidade de artigos e resenhas sobre poesia portuguesa e estrangeira,
além da produção ensaística. Já então é um múltiplo trabalhador da palavra:
poeta, crítico, ensaísta. Num adendo à sua biografia redigida para o Dicionário cronológico de autores
portugueses lê-se que para cada um desses exercícios, buscou uma medida
conveniente que desse cabo de seu estilo literário: “enquanto poeta faz da ignorância
e da radical suspensão de todos os saberes e hábitos adquiridos o único método para
a eclosão da sua palavra poética.” Na verdade, continua a observação “a procura
da palavra justa para dizer as ‘coisas nuas’ e a reflexão sobre a realidade e a
possibilidade dessa palavra é, talvez o único tema desta poesia, na qual é, no
entanto, possível assinalar diferentes fases: recortando-se duma problemática neo-realista
de solidariedade para com o destino dos homens e do mundo, O grito claro (1958) e Viagem
através de uma nebulosa (1960) utilizam uma linguagem e uma vivência ainda
devedoras dessa estética, combinadas com uma imagética herdada do surrealismo.
Mas encontramos já de uma forma incipiente nessas primeiras recolhas algumas
das constantes da obra do poeta: um enraizamento pelo corpo na Terra, não uma
Terra utópica e futura, mas na materialidade mais originariamente primitiva da
natureza; uma libertação pela palavra mais solitária, de todas as prisões e
constrangimentos que a poderiam cercear; uma permanente atenção à materialidade
da própria linguagem poética, que a desliga tanto da sua função representativa
como da sua função expressiva (pois não se trata já de exprimir um real
subjectivo, tão caro aos poetas líricos). Esta particular concepção da Poesia
irá ser retomada mais tarde quer pelo grupo ‘Poesia 61’, quer pelos poetas
experimentalistas.”
Quer dizer, durante toda sua escrita, António Ramos Rosa quis estar
integrado (e integrou-se) na dianteira das produções e preocupações estéticas. Foi,
portanto, um poeta em constante aperfeiçoamento. Para Eduardo Lourenço, “a
Palavra sobre o mundo, a palavra sobre a palavra onde o mundo se diz e se
perde, foram sempre a sua obsessão, fascínio e martírio indissociáveis. Poesia
da reiteração infinita, alguns a encontrarão monótona ou imóvel, mas esse é o
preço da fidelidade à essência mesma de uma visão poética que tem como
horizonte uma Palavra que, por definição, é, sem fim, o som e o eco de si
mesma.”
Para a crítica, é o encontro com a poesia de Paul Éluard, o que faz o
poeta abandonar definitivamente a retórica neorrealista e surrealista, para,
sim, se concentrar nisso que Eduardo Lourenço apresenta como preocupação central
da obra de Ramos Rosa: a palavra. Essa guinada se dá como substituição total da
sua própria voz inicial. O próprio
Lourenço observa que o interesse outro do poeta nunca mais será abandonado. Sua
poética, então, é refundada. Alimenta-se de outra matéria: o erotismo, o corpo
e a palavra. Por longo tempo a poesia de Rosa foi embate com a palavra para
depois, assinala a crítica, a partir de Volante
verde buscar reconciliar-se com ela. É aqui onde se inscreve uma terceira
fase de sua produção do gênero: “jogando com um número relativamente restrito
de vocábulos e de temas, dá predominância às palavras substantivas e
elementares tais como: pedra, água, árvore, cal, mão, muro e mesmo às formas
mais ínfimas e humildes: unha, insecto, pó, cabelo, sopro, espuma, baba do
caracol. Estes são elementos retomados e combinados caleidoscopicamente, em
ciclos que continuamente se reiniciam. A exploração ontológica e poética vai-se
processando em movimentos cada vez mais lentos e subtis, num itinerário em que
a densidade do espaço e a substância
dos objectos se vai tornando progressivamente mais permeável e transparente. A
desmaterialização das coisas e da língua que as diz liga-se intimamente ao modo
como o poeta apreende o ser do universo – misto de presença e de ausência, de
verdade e não-verdade, de sim e de não (O
Não e o Sim é aliás título de uma recolha de 1990). Criando um campo
semântico sobre a finíssima linha de demarcação entre a afirmação e a negação,
o poeta foge da dicotomia, da disjunção, da determinação, num espaço cada vez
mais aberto e ilimitado, que se adequa cada vez melhor à manifestação ‘do que
não tem nome’. O poeta, que procura entrar em consonância com esse horizonte do
real, torna-se também ele corpo místico e mítico do universo, onde se conciliam
por fim todos os contrários.”
Em nota para o Jornal Público
Pedro Mexia, poeta e crítico, observa que Ramos Rosa mostrou, nomeadamente
através das revistas que dirigiu e da primeira fase da sua obra poética, que
era necessário superar a dicotomia fácil entre a poesia social e a poesia pura, e
que o trabalho sobre a linguagem não impedia o empenhamento cívico. Como
ensaísta, diz ele, o poeta esteve atento ao panorama europeu e mundial, de René
Char a Roberto Juarroz, e aos autores portugueses das últimas décadas,
incluindo os novos. Essa dedicação à
palavra não foi vã; a crítica poderia ter melhor reconhecido seu trabalho, mas,
ainda assim, não é de se desprezar aquilo que lhe valeu como o reconhecimento
de várias instâncias; como é longa a obra de António Ramos Rosa, longa é também
a lista de prêmios que recebeu pelo seu trabalho; entre eles, o Prêmio Fernando
Pessoa em 1988.
Também não foi um escritor
fechado no esteticismo ou personagem de uma realidade paralela a realidade de
fora que se impõe sempre mais cruel: logo depois do final de Segunda Guerra
Mundial, António Ramos integrou-se na linha de frente da oposição ao
salazarismo; foi militante e participou de diversas manifestações pela
democracia em Portugal.
Por todo essa vivência, estamos
de uma figura exponencial, cuja obra, principalmente da parte dos brasileiros
carece de ser descoberta; tal como sugere Silvia Beirute, e aqui, encerramos deixando aos leitores um catálogo com alguma mostra poética sua, há na poesia de António Ramos Rosa “como que um espelho falso de um futuro próximo cuja moldura é a consciência, cambiando o seu interior à medida que o poema escorre sobre si mesmo. E escorre sobre si mesmo porque se auto-sobrepõe, valendo-se das suas pausas, dos seus intervalos, das suas existências isoladas, para que as palavras, enquanto produto final, se 'elegantizem' nos seus significados e adaptações profundas, e homogenizem o sono, leve ou pesado, activo ou passivo, que o poema traduz.”
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