Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, de José Saramago
Por Pedro Fernandes
José Saramago vestido como homem bomba - ao invés de bombas, os livros como arma. Foto: Helena Gonçalves |
"É mais fácil mobilizar os homens para a guerra que para a paz. Ao
longo da história, a Humanidade sempre foi levada a considerar a guerra como o
meio mais eficaz de resolução de conflitos, e sempre os que governaram se
serviram dos breves intervalos de paz para a preparação das guerras futuras.
Mas foi sempre em nome da paz que todas as guerras foram declaradas."
José Saramago no Diário de
Notícias
Quando Claraboia veio a lume
em 2011, o romance esteve quase dois anos na estante como se aguardasse uma
maturação do papel para sua leitura; quando na verdade era um receio interno de
quem ainda não havia perdoado a ingratidão do tempo sobre figuras como a de
José Saramago e do luto que é entrar numa livraria e não ter mais aquele anseio
de um livro por vir. A ocasião agora
é outra: desde que soube da notícia de publicação do que seria o último romance
do escritor português, não hesitei em avançar com a leitura costurada numa
tarde livre. Não haverá leitor que saia destas páginas sem acreditar na
grandiosidade do romance se o tempo tivesse sido menos rigoroso e deixado a
forma maquinada pelo autor alcançar o seu limite.
De todo modo, eu creio que não devo (nem tenho o direito) de permanecer
fechado aos anúncios que tem circulado de ser este um romance por acabar; é preferível até, tomar da liberdade crítica
com que o próprio Saramago certa vez tomou para escrever sob o título A viagem do elefante a denominação de que
as aquelas tantas páginas era um conto.
Tomar da liberdade crítica para dizer que Alabardas
finda por ser um conto. Logo, um
texto acabado. E por estarmos diante do incipt
de um romance, a denominação parece ajustar-se; ainda mais se levado a pensar
sobre as várias definições que acodem a teoria estrutural sobre este gênero.
Como um conto, e aqui penso na beleza daquele O conto da ilha desconhecida,
estas páginas trazem aquilo que legitimamente ficou conhecido como estilo
saramaguiano: e digo olhando para além da estrutura narrativa, digo olhando
para o conteúdo. Artur Paz Semedo já figura na extensa galeria de seres
saramaguianos. Funcionário da indústria de armas Belona S.A. resolve, depois de
conseguir autorização da empresa onde trabalha, investigar nos arquivos da
empresa o que nela se produzia e se vendia nos anos de 1930. A motivação para a
investigação se constrói a partir do filme de André Malraux, L’Espoir, que versa sobre a Guerra Civil
na Espanha no final daquela década.
Edição de Alabardas, alabardas. Companhia das Letras O livro traz ilustrações de Günter Grass |
Antes disso, Paz Semedo é o típico funcionário exemplar que nunca
questionou as ordens de seus superiores ou sequer se deu ao trabalho de pensar
sobre a finalidade daquilo que era produzido na Belona. Por isso, até sentia
certo orgulho por pertencer a uma empresa de tal envergadura. Sua mulher (e eis
aqui mais uma das mulheres a também incorporar a galeria das figuras do gênero
criadas pelo escritor), Felícia, o oposto do companheiro, uma pacifista
radical, separa-se dele por não suportar conviver com essa posição inerte de
Semedo, além da profissão que leva na Belona.
Reforça-se, então, aquela capacidade de lucidez alcançada pela figura
feminina na obra de Saramago: a de ser portadora das decisões, a de ser a que
está à frente, tem pulso firme, não está em cima do muro, não titubeia, não se
conforma com a realidade do modo como se apresenta a ela. Radicalismos à parte,
o espírito pacifista de Felícia é tamanho que opta pela mudança do seu primeiro
nome. E os nomes nessas páginas de Alabardas
têm um significado muito rico; o leitor já terá atentado: Felícia, Belona, Paz
Semedo. Os dois últimos, por exemplos, carregados de uma ironia. Mesmo sabedor
de que Belona deriva de bélico, mas o termo assim como se
apresenta tende também para ideia de belo;
e onde estaria a beleza do bélico se não na falsa ideia vendida por empresas do
gênero de que as armas existem como sustentação da paz entre os homens.
Paz Semedo, entretanto, é um nome por nascer. Que as atitudes que
tomaria depois de iniciar sua investigação nos arquivos da Belona certamente
seriam tentativas de rever a posição passiva em que tem vivido desde sempre e
fazer jus a primeira e principal impressão que se tem sobre seu nome – paz sem medo. Seja qual fosse sua
atitude, parece-me que não alcançaria uma reordenação do poder de matar tão
enraizado na cultura humana; como aquele Sr. José em Todos os nomes que mesmo não alcançando reverter os modos como os
sujeitos contemporâneos se relacionam com os outros, desperto de sua postura,
não hesita em perfurar as vias comuns e tentar reinventar a natureza desses
modos de que vimos construindo com a falsa certeza de verdadeiros.
Ainda sobre os nomes, a escolha de um verso de “Exortação a guerra”, de
Gil Vicente, obedece também ao modelo do dizer uma coisa para significar outra
como é visível para outras obras do escritor português. A peça alegórica foi
representa em 1514 para o rei D. Manuel, quando da partida do duque de Bragança
e Guimarães para Azamoura; como um incitamento à guerra contra os mouros,
levanta-se entre as personagens Pantasileia quem proclama “Alabardas,
alabardas!/ Espingardas, espingardas!/ Não queirais ser Genoezes,/ Senão muito
Portuguezes”. Até o fim, Saramago não deixou o caráter de subverter determinados
lugares discursivos já fossilizados na língua. No mesmo instante em que atenta
para um tema que não é de hoje, mas está presente na cultura humana desde
sempre, atenta contra o tom de exortação pelo da crítica. Como se perguntasse o
que há para ser exultado numa atitude de desintegração da vida humana. Ou como bem se refere Fernando Gómez Aguillera
investe em nossa consciência para incomodar, intranquilizar e depositar no
âmbito pessoal o desafio da regeneração; embora cética, a vontade
presentificada na literatura saramaguiana é dar pulsão a alternativa de um
mundo mais humano.
Mas, é conveniente irmos ao tema ou ao apelo impresso em Alabardas. Estamos novamente diante da
voz incansável de alguém que até o
último instante não tencionou outra coisa se não suscitar consciências a pensar
outras vias, outras maneiras de reinventar a comunidade humana ou fazer
repensar as atitudes que vimos acumulando como designativas da razão. Com esse
título, Saramago tocou justamente naquilo que mais tem acentuado o afloramento
da intolerância e o afastamento entre os indivíduos: as armas. É um texto
nascido como os outros que compõem sua bibliografia de uma inquietação; da
mesma natureza do não colocado à frente de muitas outras sentenças com aquele
claro não escritor por Raimundo Silva em História
do cerco de Lisboa.
No encontro que tive em novembro de 2013 com a companheira do escritor,
Pilar del Río, a quem certamente devemos a publicação tão cedo dessas páginas,
contou-me sobre a motivação por baixo da ideia de escrever Alabardas, alabardas: disse-me Pilar que Saramago havia lido que na Guerra Civil da Espanha, um das muitas
bombas lançadas não explodiu. Mais tarde descobriu-se que no seu interior
escondia-se um bilhete dizendo que aquele morteiro não explodiria. A história
foi contada pelo escritor durante a apresentação de Caim, segundo revela Ricardo Viel para a 28ª edição da Revista Blimunda. Na ocasião, acrescentou: “Que
se passa para que a classe operária tão capaz de lutas não tenha conseguido o
entrar nos portões duma fábrica de armas?” Meses antes da fala de apresentação
do romance de 2009 já o escritor havia anotado em seu diário cujas páginas
foram copiadas na edição ora apresentada que estava motivado a escrever mais um
livro.
Os dois editorias redigidos por Pilar – para este número da Revista Blimunda e para o número 26 – são
esclarecedores quanto ao ato desse livro: há que se questionar sobre esse
fatídico mecanismo que até então vimos adotando como justificável à manutenção
da paz. Sabemos que a arma ou guerra só cumprem um benefício que é o de
alimentar a mesa dos que dependem dessa economia macabra. Afinal os dados
manipulados têm atestado a guerra como a saída mais imediata para eliminação do
inimigo. Mas, a pergunta que se faz é quais esforços têm sido feitos para
avançarmos logo para a intolerância? Quem são os meus inimigos se nem ao certo
os conheço? Onde está a capacidade do diálogo? O poder da palavra? Por que não
assumir que esses interesses são escusos e compactuam com o individualismo e a
manutenção de um dos pilares (talvez o mais forte) do sistema capitalista?
Essas perguntas fazemos nós sabedores que não há justificativas – por mais bem
construídas que sejam – que justificam a necessidade de valer-se da violência
para resolver indiferenças.
Desenho de Günter Grass para o livro Alabardas, alabardas. |
O tema da guerra e de suas consequências nefastas tinha de se tornar um
romance de José Saramago; sua literatura está repleta de situações
contestatórias desse mal: em O ano de
1993; em Levantado do chão é a denúncia a Guerra Colonial na África; em Memorial do convento, Baltasar Sete-Sóis
é um soldado maneta que perdeu a mão na guerra; em História do cerco de Lisboa é a própria guerra dos primórdios da
Península Ibérica; em O ano da morte de
Ricardo Reis é a Guerra Civil e o assentamento das ditaduras; em O evangelho segundo Jesus Cristo, Caim e In nomine dei são as denúncias dos crimes cometidos em nome de
Deus; em Ensaio sobre a cegueira, a
guerra dos homens contra as mulheres pela expropriação do corpo; em Ensaio sobre a lucidez, as raízes do
terrorismo e cruel assassinato da mulher do médico e do cão das lágrimas; enfim,
não há como dizer a história do homem sem encontrar em cada encruzilhada dor e
sangue.
Essa breve incursão pela presença do tema na obra do escritor atesta
ainda a necessidade desse texto ser incorporado à sua bibliografia: ao atentar
que o alinhamento de sua obra se dá no seu próprio interior, Alabardas, alabardas, espingardas,
espingardas é a manifestação de alguém que buscou até o último instante
ensaiar um fecho para um projeto literário construído apenas pela motivação de
investigar temas caros ao pensamento humano. Difícil mesmo é que alcancemos
outro escritor com forma com que alcançamos em José Saramago: de postura firme,
nunca esquecido de seu papel enquanto cidadão nem resignado diante das forças
opressoras.
O fato de não me conter diante dessa obra ora apresentada tem a ver com
uma certeza: não importa ir a livraria e saber que ali não chegará mais uma
obra de Saramago. Importa olhar para estante e ver que há uma obra que pede ao
infinito a releitura. Pelas releituras, sempre terá um livro por vir. Que como atesta aquele viajante
de Viagem a Portugal, “o fim duma
viagem é apenas o começo de outra”.
Ligações a este post
Veja no Tumblr do Letras quatro desenhos de Günter Grass para Alabardas, Alabardas.
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