1964: annus mirabilis de Clarice Lispector
Por Alfredo Monte
Clarice Lispector. Foto: Bluma Wainer. Detalhe |
“De que Deus estava
querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de
tudo há o sangue! Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o
quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra
espiritual não tem sentido, e nem a palavra terreno tem sentido... Então era
assim? eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de
puro amor inocente, e Deus a me mostrar o rato? A grosseria de Deus me feria e
insultava-me. Deus era bruto...” (de “Fundo de gaveta”, A legião estrangeira, 1964)
“Vida irremediável,
mas não concreta. Na verdade era uma vida de sonho. Às vezes, quando falavam de
alguém excêntrico, diziam com a benevolência que uma classe tem por outra: Ah,
esse leva uma vida de poeta. Pode-se talvez dizer, aproveitando as poucas
palavras que se conheceram do casal, pode-se dizer que ambos levavam, menos a
extravagância, uma vida de mau poeta: vida de sonho.
Não, não é verdade.
Não era uma vida de sonho, pois este jamais os orientara. Mas de irrealidade.
Embora houvesse momentos em que de repente, por um motivo ou outro, eles
afundassem na realidade. E então lhes parecia ter tocado num fundo de onde
ninguém pode passar.” (de “Os obedientes”, A
legião estrangeira, 1964)
I
Se 1956 foi um
ano-chave para Guimarães Rosa, com o aparecimento de suas maiores obras (Corpo de baile e Grande sertão: veredas), 1964 o foi para Clarice Lispector: não só
lançou dois títulos essenciais da nossa literatura, A paixão segundo G.H. e A legião
estrangeira, como também na segunda parte deste último, intitulada “Fundo
de gaveta”, atualmente publicada em separado1, sinalizou os rumos
futuros da sua produção, isto é, uma escrita pautada pelo fragmentário,
sobretudo pela flexibilidade dos textos, os quais puderam ser variamente
utilizados, assumindo a forma de crônica, de parte de um conjunto maior (assim
é formada, por exemplo, a tessitura de Água
viva), reaparecendo aqui e ali.
Esse processo acentuou-se
à medida que, premida por dificuldades financeiras, ela passou a colaborar
regularmente para jornais. Os fragmentos clariceanos se pulverizaram tanto que
são incontáveis os apócrifos atribuídos a ela fazendo seu caminho enganoso
pelas redes sociais e pela internet —
afora os livros espúrios que vêm aparecendo, utilizando seu nome2.
De minha parte,
prefiro francamente sua primeira fase, que chegou ao ápice há 50 anos. Antes
dos livros publicados (ambos pela Editora do Autor) naquele sombrio 1964, quando
o Brasil entrou num prolongado regime ditatorial, foram quatro romances (Perto do coração selvagem, 1944; O lustre, 1946; A cidade sitiada, 1949; A
maçã no escuro, 1961 — este último meu predileto dentro da produção
clariceana) e duas reuniões de contos (Alguns
contos, 1952; Laços de família,
1960).
Daí a importância
do relançamento de A paixão segundo G.H.
numa edição comemorativa, mesmo porque libera essa obra-prima das horrendas e
constrangedoras capas que a Rocco impingiu ao leitor de Clarice, e cujo
objetivo nunca consegui discernir: algo infanto-juvenil?; edições “para
moças”?, autoajuda cor-de-rosa? De todo modo, um atentado contra a estética e o
bom-senso.
II
“Mas se nós, que
somos os reis da natureza, não havemos de ter medo, quem há de ter?” (de “Fundo
de gaveta”, A legião estrangeira)
A paixão segundo G.H. parece ter
sido escrito para dar vida, numa linguagem de cair o queixo, ao que Octavio Paz
descreve (em O arco e a lira) como a experiência
do sagrado: “... é uma experiência repulsiva. Ou melhor, convulsiva. É um pôr
para fora o interior e o secreto, um mostrar as entranhas. O demoníaco, dizem
todos os mitos, brota do centro da terra. É uma revelação do oculto, implica
uma ruptura do tempo e do espaço: a terra se abre, o tempo se parte; pela
ferida ou abertura, vemos o outro lado do ser”.
A ferida ou
abertura da narradora G.H. para o outro lado do ser é o quarto de empregada do
seu apartamento, que ela resolve arrumar numa certa manhã. Lá é surpreendida
por uma barata (e a esmaga com a porta do guarda-roupa, expondo justamente
entranhas, literais e metafóricas) e esse encontro, tão doméstico, será a sua
“paixão”, a desagregação e aniquilação da vida alienada, “humanizada demais”,
rumo à identificação com a Vida, “pré-humana”, o que lhe dará nojo, causará
náusea, como ela nos conta sob a forma cristã da confissão penitente (quando
coloca a barata na boca, para prová-la, evocamos o ato de comungar), para se
livrar do agônico, do “demoníaco”, no sentido das formulações de Paz.
Edição comemorativa de A paixão segundo G. H. |
Ou, nas palavras de
G.H. (ao falar do neutro, do insosso, do inexpressivo que é o estado bruto do
ser): “Pois o inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida
com a esperança, vive o demoníaco. Se a pessoa tiver a coragem de largar os
sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo
que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em si próprio — o demoníaco é
antes do humano”.
Há uma assimilação
muito forte entre o sagrado e o imundo (a barata é chamada, entre outras
coisas, de “amostra de calmo horror vivo”), nessa narrativa onde se tenta,
com um estilo “tateante”, interrogativo , mostrar “a verdade que não se
quer”. Pois a verdade é o horror de ter que admitir que o Ser passa pelo não-Ser,
essa é a metamorfose de G.H, “de mim em mim mesma”, ali, presa no
quartinho de empregada com uma barata.
Para atingir esse
estado é preciso perder tudo, em especial as extensões que nós criamos no mundo
para registrar nossa identidade e que nos tornam objetos de nós mesmos
(construções, cômodos, artefatos, sentimentos, conceitos). Para então abismar-se:
“Cada vez mais eu não tinha o que pedir. E via, com fascínio e horror, os
pedaços de minhas podres roupas de múmia caírem secas no chão, eu assistia à
minha transformação de crisálida em larva úmida… Eu havia prendido defronte de
mim o imundo do mundo — e desencantara a coisa viva”.
III
“A linguagem é o
meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as
mãos vazias. Mas — volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado
através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que
obtenho o que ela não conseguiu.” (trecho de A paixão segundo G.H.)
Clarice escreveu
ainda muita coisa boa, antes de sua morte prematura em 1977: é o caso de Água viva, de suas reminiscências de
infância (que aparecem em Felicidade clandestina),
além da criação da inesquecível Macabéa de A
hora da estrela, sem falar da ousadia em experimentar contos “grossos” e
crus, em A via crucis do corpo3. Contudo, A
paixão segundo G.H. permanece seu texto mais brilhante. Melhor dizendo:
cintilante.
Notas:
1 A
primeira parte, composta por treze contos, muitos dos quais podem ser incluídos
entre os melhores da autora (nascida em 1920): “Os desastres de Sofia”, “A
repartição dos pães”, “A mensagem”, “Macacos”, “O ovo e a galinha”, “Tentação”,
“Viagem a Petrópolis”, “A solução”, “Evolução de uma miopia”, “A quinta
história”, “Uma amizade sincera”, “Os obedientes”, “A legião estrangeira”.
A separação ocorreu
com a publicação nos anos 1970 de dois volumes pela Ática, um mantendo o título
e os contos da coletânea de 1964; outro, com a maioria dos textos da seção
“Fundo de Gaveta” (alguns como o relativamente longo “A pecadora queimada e os
anjos harmoniosos” não foram incluídos, e reapareceram apenas na coletânea
póstuma Outros escritos) e com o lamentável
título de Para não esquecer.
2 Numa
advertência a “Fundo de gaveta”, ela nos diz: “Por que publicar o que não
presta? Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que obviamente
não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado,
do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça
no chão”. Mas é algo bem distante do espúrio e do oportunismo editorial, como a
sequência de títulos póstumos e caça-níqueis, os quais só revelam uma deplorável
incúria dos herdeiros.
3 Cujo
embrião já pode ser encontrado num dos fragmentos de “Fundo de gaveta”:
“– Este aqui, disse
ela apontando o filho menor com um sorriso de carinho, eu só tive porque
descobri tarde demais e já não havia mais jeito de tirar fora.
O menino abaixou os
olhos e sorriu com modéstia.”
Ligações a esta post:
>>> No Tumblr reunimos imagens de sete edições diferentes de A paixão segundo G.H. e quatro edições de A legião estrangeira, obras relembradas aqui e que chegam ao 50º agora em 2014.
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