Truman Capote, viagem à origem trinta anos depois de sua morte

Por Winston Manrique Sabogal

O jovem Truman Capote


Dizem que as luzes de sua fama logo cedo e o êxito o obnubilaram. Contam que depois de contribuir abrindo um caminho importante na forma de abordar determinados temas e escrever jornalismo ele se perdeu. Asseguram que Truman Capote viveu mais do passado e da promessa de futuro que do presente onde vivia.

Eu creio que ele sempre foi aquele menino nascido há 90 anos em Nova Orleans, em 30 de setembro de 1924, que jogando sozinho com a vida ansiava que alguém aparecesse para convidá-lo a jogar. É então quando seus sentidos aprendem a ver a escutar o mundo, a esquadrinhar a vida, a alma humana, e a buscar ou imaginar diferentes saídas para o que nem todo mundo vê ao primeiro lance de vista.

Capote não inventou o chamado Novo Jornalismo, mas contribuiu com sua divulgação, inclusive o batizou, e com o sucesso de obras como A sangue frio (um livro que lhe marcou durante toda sua vida, para bem e para mal). Tampouco inventou a forma de fazer perfis de personagens ilustres ou retratos de feitos ou pessoas pouco conhecidas, mas forneceu e renovou um olhar sobre a vida que merece ser contada.

Suas peças não inauguraram a união entre jornalismo e literatura, mas sem dúvida criou um estilo e assinalou vias pelas quais os jornalistas podiam entrar sem medo. Ensinou, e esse é talvez o seu principal legado, e incitou a olhar por outro prisma a realidade, a perder o medo na hora de conceber uma história e de escrevê-la.

Mas hoje mais que o jornalismo de Capote quero falar sobre algo que gosto de abordar e explorar em todos os criadores: ir às suas origens, rastrear as pegadas, neste caso de sua escrita. Gosto de ir àquele ou àqueles momentos em que reside o que fará ser o autor, onde palpita a promessa do futuro criador.

Por isso recordo hoje duas obras: Summer crossing seu primeiro romance escrito aos 19 anos (1943), perdido e encontrado no início desse século; e Outras vozes, outros lugares seu segundo romance escrito aos 23 anos (1948), embora sempre tenha figurado como seu primeiro trabalho, talvez porque desde sua apresentação obteve a admiração da crítica e do público leitor.

Portanto, começo por este texto de 1948; também devido às suas ressonâncias autobiográficas da juventude: a vida de um menino no campo que um dia sai em busca de seu pai e ao ir à procura também busca, sem se dar conta, de sua própria identidade. Uma viagem vazio afora que o leva vazio por dentro começar a tomar seu lugar no mundo. Mas, de Outras vozes, outros lugares gosto muito pelo que tem do futuro em Capote, a maneira de ver, sentir e compreender seu entorno, o visível e o invisível.

Esse é um universo pessoal e público, enquanto que Summer crossing recria e desvela um ecossistema mais íntimo, o dos desejos e sonhos mais privados, onde se deixa ver o que pensava esse jovem de 19 anos, idade como já dissemos, de quando começa a escrever o romance; é um universo sobre a atração, a paixão, o desejo e, especialmente, sobre os sentimentos e o amor. E em sua Nova York! Nessas páginas há duas cenas onde Capote revela seu romantismo e o momento fundacional de seu estilo como narrador e jornalista: “– Grady, porque diabos quer ficar em Nova York em pleno verão?

Grady queria que a deixassem em paz; ainda insistiram naquela mesma manhã até à partida do barco: deixou de dizer algo além do que já havia dito? Depois daquilo só queria a verdade e não tinha total intenção em dizê-la.

– Nunca passei um verão aqui – disse, mudando o olhar e olhando pela janela: o brilho do tráfego vazio realçava  o silêncio da manhã de junho no Central Park, e o sol, brilhante do início do verão quando seca o verde da primavera, atravessou as árvores que havia diante da praça, onde ele estava lanchando – Sou teimoso; mas faça o que quiser. [...]

E por dentro de Grady se abria um riso incontido, uma agitação feliz que convertia o verão branco estendido diante dela como se um lenço desenrolado onde fosse possível desenhar esses primeiros traços, puros e toscos, mas que são lives”.

O jovem Truman Capote fala de uma menina de 17 anos que quer dar impulso para alcançar a felicidade, saber o que é isso que chamam assim e em cuja trajetória descobrirá os diversos estágios do amor, a paixão e o erotismo, até desviar-se  por rotas inesperadas. Poucos como Truman Capote contaram sobre uma iniciação em vários âmbitos da vida de uma menina rica e só na grande cidade. Mas, além dessas arandelas que encantavam Capote, é essa sua obra-prima, a narrativa que começou a escrever antes de seu emblemática e oficial estreia autobiográfica de 1948.

Summer crossing começou a ser redigido em 1943 em cadernos escolares que no fim foram perdidos numa das caixas de seu espólio e que só reapareceram em 2004. Um romance breve que é um grande relicário criativo, ou o big bang do universo Truman Capote, o autor de obras como Bonequinha de luxo, The grass harp, o já falado A sangue frio, Música para camaleões, entre outros textos.

Mas voltemos aquele primeiro surto criativo de Capote, o romance protagonizado pela jovem Grady e comecemos a descobrir por que não quer ir com seus pais num cruzeiro para Europa. Ela está apaixonada em segredo por rapaz mais velho que ela, de 23 anos, que trabalha num estacionamento e é de uma classe social inferior à dela. Isso não é obstáculo para ela, se sente correspondida e quer tornar realidade sua felicidade, e é aqui onde, num instante, Capote parece desvelar uma visão de seu mundo:

“Estava dormindo no assento traseiro do carro. Embora a capota estivesse abaixada, não havia visto que estava  enrolado e quase escondido. No rádio soava um débil zumbido do noticiais, e Clyde tinha aberto no seu colo um romance policial. Uma das muitas magias que existem é a de observar como dorme alguém que amamos: sem olhos e inconsciente, por um momento você se apodera de seu coração; indefeso, é então, por irracional que seja, tudo o que esperava que fosse: puro como um homem, terno como uma criança”.

Aí estão os acordes iniciais da prosa rítmica, sensível, direta e transcendente de Truman Capote. O romance desenvolve seu olhar sarcástico sobre seus congêneres e seus juízos inclementes, sua debilidade pela vida glamorosa, suas metáforas e traços sobre a paisagem real, o abismo que circunda a realidade... seu bailado narrativo entre a comédia e a tragédia, sua tendência à aventura e a deixar-se levar pelas emoções até por o freio de mão... e é aí onde, inclusive, nasce uma de suas personagens mais famosas – a Holly Goligtly de Bonequinha de luxo.

O que foi e quis ser como autor, o próprio Capote contou no prefácio de Música para camaleões, quando numa das passagens disse: “Creio que a maioria dos escritores, inclusive os melhores, são recarregáveis. Eu prefiro escrever pouco. Simples, claramente, como um córrego no campo”.

Sempre esteve rodeado de ruído, de todas as classes, desde 1948 quando publicou Outras vozes, outros lugares até sua morte em 25 de agosto de 1984, em Los Angeles. Uma vida, com ou sem êxito, o que se vê é um Truman Capote com o braço estirado tratando de alcançar, com maior ou menor sucesso, o que quis, o que buscava, o que sonhava, o que desejou intensamente, o que o prometeram, o que ele mesmo prometeu a si.

Percebido por todos, escritores e jornalistas, Truman Capote foi precoce na criação literária, foi implacável, engenhoso, cruel, vaidoso. Sempre é um prazer lê-lo. Ele sabia disso, por isso joguei com ele, trinta anos depois de sua morte. Findo com uma epígrafe de seu livro Os cães ladram (uma sorte de autobiografia com textos de diferentes temas, épocas e estilos) que serve para acompanhar parte da filosofia de sua vida; são palavras de um provérbio árabe: “Os cães ladram, mas a caravana avança”. Seguimos adiante!

Ligações a este post:

* versão livre para "Truman Capote, viaje al origen 30 años después de su muerte" publicado em Papeles Perdidos.


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